Na produção da normatividade jurídica, constitui indispensável ressalva de método apontar às cautelas que devem cercar o recebimento de princípios, categorias e institutos advindos do Direito estrangeiro. Com maior razão cabem essas ressalvas quando se está a produzir direito por via da atividade legislativa, cujos traços de vinculabilidade e generalidade sobressaem em face dos modelos jurisprudenciais e dos modelos hermenêuticos oferecidos por via doutrinária1.
Como infelizmente não é incomum na cultura jurídica brasileira, soluções advindas de outros sistemas jurídicos são por vezes transplantadas de modo acrítico, sem que o intérprete tenha em vista a integralidade do entorno normativo que originou a solução “transplantada”, muito embora dentre as mais dificultosas questões do Direito Comparado esteja, justamente, a compreensão do fenômeno da circulação dos modelos jurídicos2. É que modelos podem migrar de um sistema a outro, mas não os seus formantes, inclusivos, para além da lei, da jurisprudência e da doutrina, elementos conformadores de sua estrutura, considerada no seu modo peculiar de articulação; nem seus criptotipos, quais sejam, ideias e concepções implícitas que o jurista, imerso em determinada cultura, acaba por considerar3, ainda que de modo inconsciente.
Em outro contexto, mas igualmente atento às peculiaridades da cultura nacional, há décadas observou Roberto Schwarz que, quando as ideias viajam, elas podem, deslocadas, “ser verdadeiras ou falsas num sentido inverso”, alimentando “contrastes rebarbativos, desproporções, disparates, anacronismos, conciliações, contradições”, tudo levando à “composição arlequinal” de que falara Mário de Andrade4, isto é: “ao desacordo entre a representação e o contexto5”. Por isso, a doutrina avisada recomenda cautela com as “ilusões de ótica”6, bem como com o anacronismo hermenêutico derivado da similitude meramente terminológica,7 utilizando, para tanto, a noção de mutação8. Soluções prestigiadas em outros sistemas e que passam a circular por meio de microrrecepções – expressas ou silenciosas – não são nunca “transplantáveis”, mas tão somente acomodáveis por via de certas mutações e adaptações9. Para ser exitosa e útil, a adaptação há de considerar, para além da necessidade ou não da recepção, os diversos formantes do sistema que recebe o modelo, tudo tendo como efeito uma diversa modelação do instituto, regra, princípio ou solução “recebida”.
Essas lições vêm à mente quando se lê o parágrafo segundo do art. 169 da projetada reforma do Código Civil brasileiro10. Estabelecendo exceção à regra segundo a qual o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo, os anteprojetistas enunciaram: “A previsão contida no caput não impossibilita que, excepcionalmente, negócios jurídicos nulos produzam efeitos decorrentes da boa-fé, ao menos de uma das partes, a serem preservados quando justificados por interesses merecedores de tutela”.
A regra atenta ao sistema e à segurança jurídica por dois problemas graves. O primeiro é a remissão à boa-fé – a qual, pelo contexto do enunciado, deve ser a boa-fé subjetiva (ou “boa-fé fato”, estado anímico do sujeito jurídico que é parte do negócio), o que demandará pesquisa empírica para a determinação da hipótese legal11. O segundo está na consequência, qual seja, o reconhecimento da validade do negócio nulo, se assim for permitido pelo critério do merecimento de tutela, que, retirado do Código Civil italiano por uma espécie de “passe de mágica”, se quer ver agora transplantado ao Direito brasileiro. Mas não apenas “retirado” esse critério do Codice Civile: retirado de forma incompleta, tornando o conceito ainda mais problemático. O interesse de quem é tutelado? Com base em quais parâmetros?
O Código civil italiano não usa o termo “merecimento” de forma genérica, mas o atrela ao parâmetro do ordenamento, quando especifica, no art. 1322, par. 2, que os atos de autonomia privada “devem ser voltados a realizar interesses merecedores de tutela segundo o ordenamento jurídico”12.
Recentemente a Corte di Cassazione italiana, em Seções Unidas, reafirmou que o juízo de merecimento de tutela exprime-se à luz dos princípios fundamentais do ordenamento e dos valores que o caracterizam. Por conseguinte, qualquer ato de autonomia deve ser concretamente submetido a um controle qualitativo e axiológico que respeite a total identidade do sistema, a fim de verificar se, efetivamente, tende à concretização dos valores que fundamentam o ordenamento jurídico italiano e que são contidos nos seus princípios constitucionais. Nessa perspectiva, afirmam as Seções Unidas, evocando uma orientação consolidada, o juízo de “merecimento” a que se refere o art. 1.322, par. 2, do Codice civile, é um juízo que deve afetar não o contrato em si, mas o resultado que as partes almejaram com ele (ou seja, o propósito prático, a causa concreta). Os atos de autonomia negocial devem propender à concretização dos valores que fundamentam o ordenamento jurídico e contidos nos princípios constitucionais.
Na Itália, o princípio da causalidade negocial impõe que os atos negociais sejam causais, de modo que o ato é merecedor somente quando responder a uma função jurídica e socialmente útil. Por conseguinte, a ausência de causa ou a sua ilicitude produzem a nulidade do ato, porquanto não são concebíveis atos de autonomia que prescindam da avaliação do fundamento justificador. Logo, mesmo que coubesse recorrer, no Direito brasileiro, a “importação” do critério do merecimento de tutela, não poderia ser feita como foi, incompleta, e para o efeito que foi, impondo-se, ao contrário, atrelá-lo a um parâmetro sólido, como, por exemplo, o ordenamento jurídico.
Ocorre que o Direito Civil brasileiro, para além de admitir a abstração da causa13, conta com um conceito amplo de ilicitude civil. O art. 187, como é por todos sabido, estabelece “balizas de licitude” no exercício jurídico, quais sejam, a boa-fé, os bons costumes, e a finalidade econômica e social do direito. Atos conformes a esses parâmetros são os que, no exercício jurídico, são considerados, entre nós, como “merecedores da tutela do ordenamento”, não havendo nenhuma necessidade do recurso a um conceito atado a diferentes formantes.
Além do mais, são sabidos e ressabidos os graves problemas ligados à indeterminação no Direito, ao estabelecimento de seu conteúdo, do alcance de seu significado, de suas eficácias14.
Tenha-se como exemplo contrastante o princípio da boa-fé objetiva (“boa-fé normativa”), talvez o mais conhecido “caso” de indeterminação semântica no Direito contratual.
Ainda que exaustivamente trabalhado através dos séculos; ainda que considerado um “acquis culturel” do Direito, suscitando, nos diferentes sistemas, os mais aprofundados estudos; ainda assim a sua positivação na legislação brasileira, em 1990, no Código de Defesa do Consumidor e, posteriormente, em 2002, no Código Civil, gerou um ainda inacabado debate. Só agora, passados 30 anos, começa a amainar a sua “hiperinvocação”15 que abarrotou tribunais, começando a ser colhidos frutos da intensa produção doutrinária sobre o seu conteúdo, alcance, distinções e funções. Em suma, só agora – mesmo para princípio tão “antigo” e estudado como o é o da boa-fé objetiva – começa a verificar-se certa estabilização na jurisprudência, que ainda luta, todavia, para melhor precisar o seu campo operativo16.
Se assim ocorre com um princípio como o da boa-fé, o que dizer da importação de um conceito tão altamente indeterminado como o de “interesse merecedor de tutela”, cujo conteúdo e eficácia ainda não foram consolidados na doutrina brasileira17? E que, à diferença do princípio da boa-fé, cujas consequências se situam no plano da eficácia, atingirá – se prevalecer a proposta de redação ao art. 169 – o plano da validade dos negócios jurídicos?
Não custa lembrar que a difusão de um modelo jurídico supõe certo conhecimento empírico por quem o vem a imitar. Esse conhecimento, contudo, ainda não é uma comparação, muito menos comparação aprofundada18. Os diferentes direitos comportam, cada um, conceitos à sombra dos quais exprimem suas regras; categorias ordenantes dos sistemas19, regras específicas das quais, à partida, o comparatista, olhando “de fora para dentro”, não tem sequer a percepção. Uma noção que é explícita em um sistema pode ser implícita em outro, e certamente, não será compreendida via o mero lançamento de expressões sugestivas em texto de lei.
Recordemos, para concluir, nosso escritor maior, Machado de Assis, segundo o qual todo transplante está sujeito à “lei de aclimação”20. Se essa “lei” não for obedecida, ficaremos com três males difíceis de superar: a composição arlequinal de um Código que deveria ser a referência maior em harmonia e sistematicidade; o aumento dos litígios, deixando ao nuto de cada juiz determinar qual negócio é ou não é “merecedor de tutela”; e, como resultado fatal, o crescimento da insegurança que mina a confiança no Direito.
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1 Para a ideia de modelos jurídicos: REALE, Miguel. Fontes e Modelos do Direito. Para um novo paradigma hermenêutico. São Paulo: Saraiva, 1994, pp. 63-122. MARTINS COSTA, Judith. Autoridade e Utilidade da Doutrina: a construção dos modelos doutrinários In: Modelos de Direito Privado. (Org.) São Paulo: Marcial Pons, 2014.?
2 FRADERA, Véra Maria Jacob de. Reflexões sobre a Contribuição do Direito Comparado para a elaboração do Direito Comunitário. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 92-114.
3 Para essas categorias, reenvie-se a: SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de La Connaissance du Droit. Paris: Economica, 1991, p. 41 e ss.
4 A expressão está em SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: Ao Vencedor as Batatas. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades-Editora 34, 2000, p. 25.
5 SCHWARZ, Roberto. As idéias fora do lugar. In: Ao Vencedor as Batatas. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades-Editora 34, 2000, p. 21-25.
6 A expressão é de SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de La Connaissance du Droit. Paris: Economica, 1991, p. 42.
7 LEGRAND, Pierre. Sur l’analyse différentielle des juriscultures. Revue Internationale de Droit Comparé, Paris, Societé de Législation Comparée, 4, 1999, p. 1053-1071.
8 SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de La Connaissance du Droit. Paris: Economica, 1991, p. 113 e ss., em especial p. 118-128.
9 Assim se escreveu em MARTINS-COSTA, Judith. Apresentação a PARGENDLER, Mariana. Evolução no direito societário: lições do Brasil. In: Modelos de Direito Privado. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 533-539.
10 Refiro-me à iniciativa de reforma procedida por Comissão instituída pelo Senado Federal que, a pretexto de modernizar o Código Civil, modificou um milhar de seus artigos, promovendo completa subversão na letra, no espírito, na linguagem e no método da Lei Civil. (O arquivo consta do site do Senado Federal, na aba Comissão de Juristas responsáveis pela revisão e atualização do Código Civil. Último acesso em 13 de maio de 2024).
11 Vide PARGENDLER, Mariana. Alcance e limites da presunção de boa-fé. Custos probatórios e normas profiláticas no Direito Privado. In: BENETTi, Giovana et ali. História, Cultura, Método. Leituras da obra de Judith Martins Costa. Rio de Janeiro. GZ, 2019, pp. 259-278. Acerca das distinções entre a boa-fé subjetiva e a objetiva e dos problemas derivados da qualificação da boa-fé subjetiva como presunção, escreveu-se em: MARTINS-COSTA, Judith. o princípio da “boa-fé do particular perante o Poder Público. Comentário ao artigo 2º, inciso II. In: Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica: Comentários. (Coord.). São Paulo: Almedina, 2022 (coord. em co-autoria com Guilherme Nitschke).
12 No original: “Le parti possono anche concludere contratti che non appartengano ai tipi aventi una disciplina particolare, purché siano diretti a realizzare interessi meritevoli di tutela secondo l’ordinamento giuridico”.
13 COUTO E SILVA, Clóvis. A obrigação como processo. 2. ed. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2006, p. 52-61; PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. Tomo III. Atualizado por Marcos Bernardes de Mello e Marcos Ehrhardt Jr. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, § 264, item 1, p. 147.
14 Na doutrina recente: ÁVILA, Humberto. Teoria da indeterminação no Direito: entre a indeterminação aparente e a determinação latente. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2023.
15 TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. A boa-fé objetiva no Código de Defesa do Consumidor e no Novo Código Civil. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Obrigações. Estudos na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 29-44.
16 Assim se examinou em MARTINS-COSTA, Judith. A Boa-Fé no Direito Privado: critérios para sua aplicação. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2024, § 16.
17 Ressalva-se, dentre outros trabalhos: De CICCO, Maria Cristina. Poderes do juiz, função social do contrato e equilíbrio contratual na legalidade constitucional. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de e BARBOSA, Fernanda Nunes. A Prioridade da Pessoa Humana no Direito Civil-Constitucional. Estudos em homenagem a Maria Celina Bodin de Moraes. Indaiatuba: Ed. Foco. 2024, p 199-219. Ainda, entre outros interessantes trabalhos, ligados à “escola” do Direito Civil Constitucional, ver: SOUZA, Eduardo Nunes de. Merecimento de tutela: a nova fronteira da legalidade no direito civil. Revista de Direito Privado, vol. 58, 2014, p. 75-107.
18 SACCO, Rodolfo. La Comparaison Juridique au Service de la Connaissance du droit. Paris: Economica, 1991, p. 7.
19 DAVID, René; JAUFFRET-SPINOSI, Camille; GORÉ, Marie. Les grands systèmes du droit contemporains. 12ª ed. Paris: Dalloz, 2016, § 12, p. 12.
20 MACHADO DE ASSIS. Balas de Estalo. In: Crônicas. Obras Completas de Machado de Assis. Vol. 25. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Ed., 1957.
Fonte: Migalhas
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