A ideia de inteligência artificial surgiu a partir do trabalho de Warren McCulloch e Walter Pitts, em 19431. Este trabalho foi estruturado em três premissas: conhecimento da fisiologia básica e função dos neurônios no cérebro; análise formal da lógica proposicional (“e”, “ou”, “não”); e a teoria da computação de Turing (que será descrita abaixo). O resultado foi a proposta de um modelo de neurônios artificiais capazes de responder a estímulos.2

 

A partir destes estudos, a expressão foi utilizada pela primeira vez por John McCarthy,3 considerado como o “pai” da Inteligência Artificial (IA ou Artificial Intelligence – AI). John McCarthy, professor assistente de matemática em Dartmouth College (Hanover, Nova Hampshire), juntamente com outros três pesquisadores: Marvin Minsky de Harvard, Nathan Rochester da IBM e Claude Shannon do Bell Telephone Laboratories, passaram a estudar as possibilidades da IA.

 

McCarthy, um visionário à época, acreditava que um computador poderia simular muitos ou todas as funções cognitivas humanas avançadas, chegando a afirmar: “Every aspect of learning or any other feature of intelligence can be so precisely described that a machine can be made to simulate it.”4

 

Assim como no mito de Pigmalião, no qual este personagem da mitologia grega cria uma estátua tão perfeita que se apaixona por ela e pede aos deuses que a tornem humana. Semelhantemente, McCarthy, tão entusiasmado com as possibilidades da aplicação da inteligência artificial, acabou passando a ideia de que estes sistemas podem parecer ter características humanas, como aprendizado, adaptação e até mesmo “personalidade”.

 

Há quem defenda que estes entes, por ficção jurídica, teriam personalidade como as pessoas jurídicas, e assim como estas teriam um representante legal.5 Todavia tal alegação não pode prosperar,6 na medida em que se deve questionar a conveniência e possibilidade de se atribuir à inteligência artificial personalidade jurídica. Para tanto tais funcionalidades devem demonstrar a capacidade de sentir e raciocinar como seres humanos singulares e não meramente “imitando seres humanos”. Todavia, diante do atual desenvolvimento tecnológico não se pode chegar à tal conclusão, razão pela qual não seria possível atribuir personalidade jurídica às funcionalidades de IA.7

 

No âmbito da União Europeia, o Parlamento Europeu editou a Recomendação 2015/2103 (INL), de 16 de fevereiro de 20178, com recomendações à Comissão de Direito Civil sobre Robótica. Quanto à responsabilidade civil, o documento sugere a aplicação das modalidades de responsabilidade objetiva ou de gestão de riscos (art. 53),9 o que foi levado em consideração pelo Regulamento Europeu sobre Inteligência Artificial, conhecido como AI Act, objeto de análise em diversos textos desta coluna.

 

A resolução recomenda, ainda, que a solução a ser adotada não minimize os danos causados pelo fato de não terem sido provocados por um agente humano, máxime sob a perspectiva da pessoa lesada (art. 52). Segundo o entendimento da Comissão, atualmente a responsabilidade deve ser imputada a um ser humano, não a um robô, aniquilando qualquer intenção de se atribuir ao robô personalidade jurídica para fins de responsabilidade civil.

 

Todavia, em sendo o regime atual insuficiente para solucionar alguma controvérsia futura envolvendo o surgimento de uma IA mais complexa e autônoma, o regime de responsabilidade civil objetiva ou de gestão de riscos deverá considerar proporcionalmente o nível de autonomia da máquina e o tempo de aprendizado que lhe for proporcionado, ressalvado o machine learning (art. 56).

 

O regime de responsabilidade objetiva ali proposto pode ser suportado pelo usuário/consumidor ou pelo produtor/fornecedor. No primeiro caso, imputa-se a responsabilidade pelo comportamento da IA à pessoa jurídica em nome de quem ela age, aplicando-se a ideia de IA como ferramenta, em um regime de responsabilidade similar a dos pais por danos causados por seus filhos, ou donos de animais, relativamente aos danos causados por estes.

 

No segundo caso, o produtor ou fornecedor pode ser responsabilizado pelo fato do produto, ou seja, quando não adotar os cuidados necessários ou legalmente exigidos de segurança e de informação ao consumidor sobre os riscos da IA.10

 

No caso da abordagem pela gestão de riscos, a responsabilidade por danos provocados pela IA se justifica pelo ônus de prova extremamente gravoso que poderá recair ao consumidor em algumas hipóteses de responsabilidade pelo fato do produto, especialmente devido à autoaprendizagem da máquina.11 Daí a importância de se prever a inversão do ônus da prova como o faz o Projeto de Lei brasileiro n. 2.338 (§2º do art. 27 do PL n. 2.338). Por outro lado, a responsabilidade por gestão de riscos também pode ser fundamentada na teoria do deep-pocket, importada do direito estadunidense, segundo a qual o beneficiário possui o dever de compensar os danos causados por sua atividade lucrativa que gera riscos à sociedade. Neste sentido, o atual parágrafo único do art. 927 do Código Civil brasileiro, bem como o Código de Defesa do Consumidor parecem estar alinhados a tal concepção.

 

O Projeto de Lei 2.338 de 202312 traz uma classificação de risco arts. 14 a 16 (sobre o risco excessivo) e arts. 17 e 18 (sobre alto risco), para determinar a responsabilização objetiva na primeira hipótese (§ 1º do art. 27) e responsabilização subjetiva com culpa presumida (§ 2º do art. 27), com previsão de inversão do ônus da prova.

 

Deve-se atentar, é verdade, para o justificável chilling effect (“efeito de medo”) provocado por tentativas de lege ferenda de responsabilização civil de agentes e empresas que trabalham na linha de desenvolvimento e produção de IA, independentemente de culpa. No entanto, o melhor caminho a ser seguido no plano legislativo brasileiro consiste na aplicação de uma tipologia múltipla e setorial de responsabilidade civil por danos causados por IA. Em outras palavras, deve-se considerar o tipo mais apropriado para cada IA em concreto.

 

Do mesmo modo, o interesse de todos os atores no desenvolvimento tecnológico e otimização do bem-estar que pode ser promovido pelo avanço da IA exige uma solução equilibrada de repartição dos riscos entre desenvolvedores, fornecedores e consumidores desses mecanismos inteligentes, o que torna bastante pertinentes as iniciativas como a exigência de seguros e de certificação por parte dos usuários para manejo de alguns tipos mais complexos e sujeitos a riscos de IA.

 

Em suma, toda e qualquer “idealização” da IA seja no sentido de que são ferramentas perfeitas e, portanto, não causarão risco algum; seja no sentido contrário, que pelo desconhecido a responsabilização tem que ser a mais gravosa possível, não são adequadas e vão na contramão do necessário desenvolvimento sustentável das tecnologias para a melhoria da qualidade de vida humana.

 

Inteligência artificial não é perfeita e nem pretende sê-lo; assim como os seres humanos não são perfeitos como na reflexão feita por Ray Kurzweil:13

 

The idea stems from the realization that as software systems become more complex, like humans, they will never be perfect, and that eliminating all bugs is impossible. As humans, we use the same strategy: we don’t expect to be perfect, but we usually try to recover from inevitable mistakes.

 

__________

 

1 McCULLOCH, Warren; PITTS, Walter. A Logical Calculus of Ideas Immanent in Nervous Activity. In: Bulletin of Mathematical Biophysics, vol. 5, no. 4 (1943), pp. 115-133.

 

2 RUSSELL, Stuart J.; NORVIG, Peter. Artificial Intelligence: A Modern Approach. 3. ed. New Jersey: Prentice-Hall, 2010. pp. 17.

 

3 McCARTHY, John; MINSKY, M. L.; ROCHESTER, N.; SHANNON, C. E. A Proposal for the Dartmouth Summer Research Project on Artificial Intelligence. In: Stanford Edu, 1955. Disponível aqui, acessado em 20 de dezembro de 2019.

 

4 McCARTHY, John; MINSKY, M. L.; ROCHESTER, N.; SHANNON, C. E. A Proposal for the Dartmouth Summer Research Project on Artificial Intelligence. In: AI Magazine, vol. 27, número 4 (2006), pp. 12 – 15. p. 12. Disponível aqui, acessado em 20 de dezembro de 2019.

 

5 SOLUM, Lawrence B. Legal Personhood for Artificial Intelligences. In: North Carolina Law Review, vol. 70, n. 4, 1992, pp. 1.231 – 1.287. Disponível aqui, acessado em 17 de junho de 2024; KERR, Ian. Spirits in the material world: intelligent agents as intermediaries in electronic commerce. In: Dalhousie Law Journal, vol. 22, 1999, pp. 189 – 249. Disponível aqui, acessado em 17 de junho de 2024.

 

6 Em sentido contrário à personalidade jurídica dos sistemas de inteligência artificial: RUSSEL, Stuart; NORVIG, Peter. Op. cit., p. 1.036: “To our knowledge, no program has been granted legal status as an individual for the purposes of financial transactions; at present, it seems unreasonable to do so. Programs are also not considered to be “drivers” for the purposes of enforcing traffic regulations on real highways. In California law, at least, there do not seem to be any legal sanctions to prevent an automated vehicle from exceeding the speed limits, although the designer of the vehicle’s control mechanism would be liable in the case of an accident.”

 

7 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de; OLIVEIRA, Cristina Godoy Bernardo de; RUIZ, Evandro Eduardo Seron. Inteligência Artificial e Personalidade Jurídica: Aspectos Controvertidos. In: BARBOSA, Mafalda Miranda [et alli] Direito Digital e Inteligência Artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2020.

 

8 UNIÃO EUROPEIA. Resolução do Parlamento Europeu, de 16 de fevereiro de 2017, com recomendações à Comissão de Direito Civil sobre Robótica. Disponível aqui, acessado em 27 de junho de 2024.

 

9 53.  Considera que o futuro instrumento legislativo deverá basear-se numa avaliação aprofundada da Comissão que determine se a abordagem a aplicar deve ser a da responsabilidade objetiva ou a da gestão de riscos;

 

10 PAGALLO, Ugo. The laws of robots: crimes, contracts, and torts. Heidelberg: Springer, 2013. p. 33.

 

11 CERKA, Paulius; GRIGIENE, Jurgita; SIRBIKYTE, Gintare. Liability for damages caused by Artificial Intelligence. Computer Law & Security Review, Elsevier, v. 31, n. 3, p. 376-389, jun. 2015. p. 386.

 

12 BRASIL. Senado Federal. Projeto de Lei n. 2.338 de 2023. Disponível em: <documento (senado.leg.br)>, acessado em 27 de junho de 2024.

 

13 The Singularity Is Near: When Humans Transcend Biology. Nova York: Viking (Penguin Group), 2005. p. 191: “A ideia deriva da percepção de que, à medida que os sistemas de software se tornam mais complexos, como os humanos, eles nunca serão perfeitos e que é impossível eliminar todos os erros. Como seres humanos, usamos a mesma estratégia: não esperamos ser perfeitos, mas geralmente tentamos nos recuperar de erros inevitáveis.” (tradução livre)

 

Fonte: Migalhas

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