A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) publicou em sua página oficial uma notícia relevante, tendo sido formalmente apontada como órgão regulador do Sistema Nacional de Regulação e Governança em Inteligência Artificial (SIA).

 

Como explica o próprio comunicado, a partir de agora “caberá também à autarquia representar o Brasil perante organismos internacionais, sob a coordenação do Poder Executivo; celebrar acordos regulatórios com os demais integrantes do SIA; expedir orientações normativas gerais sobre certificados e acreditação de organismos de certificação; entre outras competências”. [1]

 

Mas o que significa, na prática, a atribuição da Autoridade à coordenação da SIA e qual a relevância da sua formalização na compreensão de uma futura regulação da inteligência artificial (IA) no País, tema atualmente capitaneado pelo Projeto de Lei nº 2.338/2023? Para isso, é importante que retroceder à emenda de nº 18, proposta ao referido PL, que propõe alterações aos parágrafos 3º e 4º do artigo 40. Especialmente no que refere a este último, inclui a necessidade de participação social entre os objetivos e fundamentos da criação do Sistema Nacional de Regulação e Governança em Inteligência Artificial. [2]

 

Em grande medida, o SIA tem o intuito de estruturar o debate e os entendimentos proferidos pelas autoridades setoriais regulatórias de maneira a edificar uma abordagem coerente e harmonizada sobre o tema da IA no país, capitaneada pelo órgão gestor ora atribuído à ANPD. Em resumo, portanto, será função da autoridade atuar como um catalisador dos debates e entendimentos sobre as aplicações de IA imanados pelos diversos órgãos regulatórios existentes, tudo isso no sentido de construir interpretações congruentes e aplicáveis aos mais diversos setores, além das funções representativas que terá nos debates internacionais sobre o tema.

 

Embora se trate de uma responsabilidade extremamente importante para a definição de um modelo regulatório adequado ao tema no Brasil, especialmente diante no contexto conturbado e incerto acerca das reais consequências sociais e jurídicas que IA poderá gerar, é fato que a formalização da ANPD como órgão gestor do SIA nos permite inferir que a autoridade exercerá papel de liderança quando da promulgação da derradeira norma sobre IA no país.

 

Cabe pontuar que existem discussões acerca de qual será o escopo de regulação da matéria no país, inclusive a respeito de qual órgão regulatório  será atribuída a responsabilidade por implementar, acompanhar e fiscalizar as aplicações de IA desenvolvidas e administradas por organismos públicos e privados quando da promulgação do chamado Marco da Inteligência Artificial. Norma esta cujas discussões variam atualmente entre ANPD, Anatel ou até mesmo uma nova autarquia a ser criada especificamente esta finalidade, cada uma delas com seus prós e contras.

 

De maneira semelhante ao que vem ocorrendo ao redor do mundo, a formalização da ANPD como órgão gestor do SIA é extremamente salutar, demonstrando não apenas a necessidade de regulamentar a aplicação de IA no país de maneira sistemática com outras normas correlatas, mas também evidenciando a necessidade de que tal abordagem seja efetivada em consonância com os entendimentos, abordagens e modelos de governança já desenvolvidos para a matéria de privacidade e proteção de dados no Brasil.

 

Proteção de dados pessoais

Sendo assim, pode-se interpretar tal formalização a partir da percepção de que a regulação dos referidos temas será efetuada de maneira complementar, a partir de pilares fundamentais de desenvolvimento, inovação, autodeterminação informativa e respeito aos direitos e liberdades individuais dos indivíduos, especialmente sua privacidade e a proteção de seus dados pessoais.

 

A exemplo do que ora verificamos, destaca-se a atribuição conferida ao European Data Protection Supervisor (EDPS), órgão responsável pela interpretação, monitoramento e aplicação das normas de proteção de dados pessoais na União Europeia, no âmbito da regulamentação trazida pelo AI Act, sendo responsável pelo acompanhamento e garantia de direitos individuais em matéria de IA desenvolvida e considerada como de alto-risco:

 

The AI Act designates the EDPS as notified body and market surveillance authority to assess the conformity of high-risk AI systems that are developed or deployed by EUIs; as well as competent authority for the supervision of the provision or use of AI systems by EUIs. Based on its experience with enforcing fundamental rights, the EDPS stands ready to take on the role of AI Supervisor of the EUIs. In this context, the EDPS requests that its role, tasks and powers are clarified under the AI Act, taking into account the particularities of the legal framework applicable to EUIs. The EDPS also reiterates the need for appropriate financial and human resources to fulfil its role as AI Supervisor [3].

 

Em contraponto, é importante esclarecer que, embora a ANPD tenha cada vez mais ampliado a sua gama de atuação para o atendimento às atribuições que lhe foram conferidas pela Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) desde a sua criação, inclusive com a sua importante conversão ao status de autarquia, é necessário salientar que a Autoridade ainda conta com restrição orçamentária e de pessoal, sequer tendo, até o presente momento, efetuado concursos públicos especificamente voltados ao aumento de seu quadro de servidores.

 

Se tal questão traz reflexos em suas atribuições iniciais, a sua formalização enquanto gestora do SIA certamente implicará em outras tarefas ainda mais custosas tanto do ponto de vista de efetivo quanto técnico. Neste sentido, certamente consumirá ainda mais os seus já escassos recursos em discussões, aplicações e fiscalizações em matérias que demandam alta qualificação de pessoal como temas ligados a IA e seus potenciais reflexos na sociedade.

 

Embora seja auspiciosa a formalização da Autoridade como responsável pela construção e gestão do SIA, é necessário que tais definições sejam acompanhadas de complementos orçamentários, refletidos inclusive em contratação de pessoal qualificado de carreira, de modo que a ANPD tenha plenas condições não apenas de edificar um modelo de gestão e aplicação de IA robusto e harmônico em matéria de governança, mas para que possa fazê-lo sempre sobre os pilares já erguidos de privacidade e proteção de dados, dado que os temas invariavelmente têm e terão forte intersecção. Tudo isso, é claro, ao mesmo tempo que seguirá desenvolvendo e ampliando suas atribuição em matéria de proteção de dados pessoais.

 

Portanto, embora não seja possível afirmar que a presente formalização da ANPD como gestora do SIA automaticamente lhe impõe como o derradeiro órgão responsável pela condução da regulação da IA no Brasil, certamente é um importante indício do que os legisladores e o próprio sistema regulatório brasileiro vislumbram para o futuro do país, ou seja, que sejam desenvolvidos em paralelo à garantia de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos.

 

[1] Disponível em: https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/anpd-e-formalizada-como-coordenadora-do-sistema-nacional-de-inteligencia-artificial. Acesso em 24 jun 2024.

 

[2] Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9640105&ts=1718902557011&rendition_principal=S&disposition=inline. Acesso em 24 jun 2024.

 

Fonte: Conjur

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