Desde que se pretendeu a unificação do direito das obrigações no Código Civil de 2002, têm-se desenvolvido discussões similares àquelas já havidas no século XIX sobre a autonomia do Direito Comercial. Com efeito, por motivos que não resistem a uma análise mais atenta, alguns juristas convenceram-se de que estando as regras relativas às obrigações entre empresários reunidas àquelas aplicáveis a não empresários em um só documento, todas teriam a mesma natureza.
Esse movimento, a rigor, inicia-se mesmo antes. Desde a promulgação da Constituição de 1988 que, por seu caráter analítico, tratou de assuntos cuja pertinência em texto constitucional é questionável, o recurso a princípios abstratos como fonte direta de interpretação/aplicação do direito privado também contribuiu para uma paulatina desconsideração da natureza e características próprias do Direito aplicado às relações entre empresários.
Ainda na mesma linha, há movimento entre civilistas que procura enfraquecer a natureza privada do Direito Civil (e, dentro de sua linha de raciocínio, de partes do Direito Comercial), por meio da utilização de princípios constitucionais de conteúdo subjetivo por vezes em detrimento da própria regra positiva, prejudicando a segurança das relações jurídicas.
Ocorre que os negócios interempresariais têm dinâmica própria e o desvirtuamento das características dessas relações têm consequências para além de uma interação específica. As obrigações civis tendem a abranger um número limitado de pessoas, dizem respeito a interesses particulares como contratos entre pessoas naturais, relações familiares e relações patrimoniais de natureza mais estática, como aquelas envolvendo direitos reais.
As relações empresariais, por outro lado, compreendem uma cadeia interligada de contratos, que pretendem alocar os riscos envolvidos da maneira mais eficiente. Esse “feixe de contratos”1, como uma teia, enfraquece como um todo quando quaisquer de seus componentes esgarça ou parte-se. A alocação de riscos anteriormente pretendida muda, e fatores não previstos acabam por aumentar os custos de transação, o que estimula comportamentos oportunistas por parte dos agentes econômicos.
O respeito aos princípios e características do Direito Comercial quando se analisam casos concretos é essencial para o equilíbrio e saúde do mercado2, do qual, apesar do que diz o senso comum, fazem partes todos os agentes econômicos. São as escolhas dos agentes que definem os vieses do mercado.
Ocorre que não há positivação dos princípios do Direito Comercial, nos moldes de outras relações privadas. Existem princípios bastante delimitados e já com conteúdo bem definido em áreas como Direito do Consumidor, Direito do Trabalho ou Direito Civil, que têm foco em relações interpessoais. Isso não ocorre nas relações entre empresários, o que faz com que o intérprete e aplicador da lei no caso concreto recorra a princípios não adequados à natureza das relações entre empresários.
Nas palavras de Forgioni3
“Portanto, a interpretação do negócio comercial, sob o ponto de vista do mercado, não pode desconsiderar os pressupostos de funcionamento do sistema apontados de funcionamento do sistema apontados no segundo ensaio deste livro, especialmente aqueles referentes à boa-fé, aos usos e costumes, custos de transação, necessidade de segurança e previsibilidade para o tráfico, tutela do crédito e, especialmente, que a função econômica do negócio deve pautar sua interpretação.”
Entre 2011 e 2021, houve forte empenho de segmentos do Poder Legislativo e do Poder Executivo na construção de um Código Comercial, de modo a lançar luzes sobre as diferenças entre as relações entre empresários e as demais relações obrigacionais, assim como estabelecer que forma clara os princípios a serem observados na interpretação do Direito Comercial. A iniciativa não avançou, e mantiveram-se constantes interpretações não adequadas das relações interempresariais:
“Com a análise de posicionamentos do STJ, observa-se que há uma progressiva aplicação de elementos exógenos aos cânones tradicionais da relação privada interempresarial, contaminando essas relações com elementos próprios de subsistemas como o do Direito do Consumidor, ou mesmo dos institutos contratuais filtrados por hermenêutica publicizada ou constitucionalizados, sem que se atente para a especialidade do Direito Comercial.
Essa “colonização expansiva” do Direito Privado, por sua vez, mascara a necessária diferenciação da lógica e princípios jurídicos aplicáveis entre contratos sujeitos ao direito consumerista (B2C) e os contratos empresariais (B2B).” 4
Nova oportunidade vem com a iniciativa de reforma do Código Civil em 2023. Sob a justificativa de modernizar e adequar o texto do Código às mudanças na sociedade nos últimos 20 anos, forma-se comissão de juristas para propor as alterações julgadas necessárias para tanto.
Ocorre que o texto apresentado oscila entre uma salutar intenção de diferenciar as obrigações oriundas de contratos empresariais daqueles de outra natureza – conforme de depreende de trechos da exposição de motivos5, e o receio vacilante de quem não reconhece a real dinâmica das relações no mercado. Têm-se, como resultado, proposições confusas e mesmo tecnicamente questionáveis, que tendem a aumentar a insegurança jurídica.
Tome-se como exemplo as alterações propostas para o art. 421 do Código. Ainda em 2019, a lei 13.874, conhecida como lei da liberdade econômica, havia modificado esse artigo para incluir seu parágrafo único, bem como o art. 421-A6, na clara intenção de evitar o avanço de intervenções em relações empresariais com fundamento na “função social” do contrato, à qual está submetida a liberdade contratual. Parece claro, para o legislador de 2019, que os agentes econômicos são aqueles que melhor condições têm de alocar seus riscos, e que a intervenção estatal nessa alocação deve ser efetivamente excepcional.
Note-se que a lei da liberdade econômica, com o intuito de proporcionar melhor ambiente para o desenvolvimento da atividade econômica, criou tanto regras de sobredireito, quando trata de balizas na interpretação das normas aplicáveis às relações entre entes privados, e do regulador ou aplicador da norma no caso concreto7, como alterações na legislação já positivada.8 As alterações ao texto em vigor, portanto, não têm o condão de alterar os princípios balizadores de interpretação, o que pode levar a uma insegurança ainda maior caso haja franco conflito entre elas.
A proposta de alteração apresentada traz um parágrafo segundo para o art. 421, determinando que é “nula de pleno direito” a cláusula que violar a função social do contrato. Essa determinação apresenta a nulidade como pena para uma circunstância oriunda de um conceito vago.9 Pode-se observar na jurisprudência a utilização do conceito de função social para os mais diversos fins e com resultados, inclusive, antagônicos para situações similares.
Assim, propõe-se que caso entenda-se que determinada cláusula não atenda à função social do contrato, ela estaria sujeita ao regime de nulidade, o que implicaria em eventual reflexo em relações jurídicas já havidas, e na impossibilidade de convalidação ou confirmação de seus efeitos. Isso, em se tratando de negócios empresariais, poria ter um efeito em cadeia.
O art. 421-C, por sua vez, a pretexto de criar regras específicas para a interpretação de contratos empresariais, inclui em seu parágrafo segundo uma excepcionalidade à autonomia negocial que tem o condão de agravar o quadro de aplicação inadequada de princípios atinentes a outras áreas do Direito, quando determina que “Nos contratos empresariais, quando houver flagrante disparidade econo^mica entre as partes, na~o se aplicara’ o disposto neste artigo.” Assim, trata de positivar algo que a jurisprudência tem feito de maneira daninha: Tratar relações entre empresários como se não integrassem uma teia de contratos que dependem de prévia alocação de riscos.
Importante ressaltar que o relatório não apresenta quaisquer dados que demostrem um problema ou disfunção a serem resolvidos pela inserção dos dispositivos comentados, o que é grave tendo em vista a “insuficiência dos esforços teóricos para entender o Direito e promover reformas”. 10 Por outro lado, reforça a intenção de tratar as relações empresariais com base em princípios inerentes a outras relações. As propostas aparentemente apresentam uma solução para um problema não identificado, e, portanto, não só carecem de razão de ser, como configuram um risco real de aumentar a já tão presente insegurança na atividade econômica no país.
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1 Ronald Coase desenvolve teoria sobre a natureza da “firma” como forma de diminuir os custos de contratação no mecanismo de preços. Assim, muitos contratos isolados seriam centralizados de forma reduzir os custos envolvidos na contratação : “The main reason why it is profitable to establish a firm would seem to be that there is a cost of using the price mechanism. The most obvious cost of “organizing” production through the price mechanism is that of discovering what the relevant prices are.” (The Firm, the Market and the Law, Chicago and London: The University of Chicago Press, 1992, p. 38)
2 Segundo Rachel Sztajn “Mercados, segundo muitos, levam a que se produzam os bens na qualidade e quantidade correspondentes à demanda existente. Mercados livres aparecem, portanto, coo condição objetiva necessária para a produção e circulação de bens – mercadorias e serviços – existentes, atuais ou em processo, para satisfação das necessidades, com o que se cria bem-estar e se produz riqueza” (Teoria Jurídica da Empresa. Atividade Econômica e Mercados. São Paulo: Atlas, 2004, p. 22)
3 Forgioni, Paula A. Teoria Geral dos Contratos Empresariais. 2ª Ed. Revista. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010, p. 218.
4 CAMINHA, Uinie e ROCHA, Afonso. P. P. . Assimetrias contratuais, dependência empresarial e o ethos comercial no projeto de Código Comercial. In: Coelho, Fábio Ulhoa; Lima, Thiago Asfor Rocha; Nunes, Marcelo Guedes. (Org.). Novas Reflexões sobre o Projeto de Código Comercial. 1ed.São Paulo: Saraiva, 2015, v. 1, p. 355-370.
5 “Atenta à complexidade das relações interpessoais e de mercado, a Comissão reconhece as diferentes funções a que os contratos podem se prestar, além de atentar para as redes contratuais altamente sofisticadas. Sob essa ótica, o texto sugerido respeita os regimes jurídicos das leis especiais para determinadas relações contratuais, inclusive o regime mais livre e menos intervencionista dos contratos empresariais (arts. 421-A, 421-B, 421-E e 421-F). Também se abrem maiores espaços para o exercício da liberdade contratual, com permissão expressa a fideicomissos por ato entre vivos, sempre, porém, respeitados os limites das normas de ordem pública (art. 426-A)”. Trecho do Relatório Final apresentado pela Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil. Disponível aqui. Acesso jun. 2024
6 Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato. Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019
Parágrafo único. Nas relações contratuais privadas, prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual. Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019
Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também. Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019
7 Art. 1º Fica instituída a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica, que estabelece normas de proteção à livre iniciativa e ao livre exercício de atividade econômica e disposições sobre a atuação do Estado como agente normativo e regulador, nos termos do inciso IV do caput do art. 1º, parágrafo único do art. 170 e no caput do art. 174 da Constituição Federal.
- 1º O disposto nesta lei será observado na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente.
8 Nesse sentido, Martins-Costa e Nitschke “Para além das disposições normativas específicas da LLE, muitas delas alterando o Código Civil, o art. 1º plasma norma de sobredireito, assim compreendido por versar sobre a aplicação e interpretação de outras normas de direito privado, tendo, na própria lei formulada, específicos exemplos de tal atuação.” Origem e eficácia da Lei da Liberdade Econômica in Martins-Costa, Judith e Nitschke, Guilherme Carneiro Monteiro. Direito Privado na Lei da Liberdade Econômica. Comentários. São Paulo: Almedina, 2022. Pp. 37-8.
9 Soares e Leite (A função social do contrato sob a ótica do Superior Tribunal de Justiça in Revista Semestral de Direito Empresarial. N. 31, jul/dez 2022, pp. 145-65)) trazem interessante análise sobre a impossibilidade semântica da definição do conteúdo da “função social” e ainda um estudo empírico abrangendo decisões do STJ sobre a utilização desse conceito em litígios contratuais. Apesar de, nesse Tribunal, o conceito não ter sido utilizado, isoladamente, para justificar a intervenção no conteúdo dos contratos, foi utilizado prodigamente pelos jurisdicionados nos assuntos mais variados. Deve-se, todavia, atentar para o fato de que apenas uma parcela pequena dos casos julgados pelos Tribunais pátrios ascende ao STJ e, portanto, não se pode afirmar que as cortes brasileiras têm tido esse mesmo cuidado.
10 Nunes, Marcelo Guedes. Jurimetria. Como a estatística pode reinventar o Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 30.
Fonte: Migalhas
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