A multipropriedade imobiliária é uma modalidade de propriedade em condomínio positivada pela lei 13.777/18. O diferencial dela – para as demais espécies de condomínio – está no parcelamento do tempo; um mesmo imóvel-base pode ser comercializado e compartilhado entre dezenas de compradores. O uso, porém, ocorrerá de forma exclusiva e alternada por cada multiproprietário.

 

A ideia da divisão temporal surgiu na França em tempos de recessão econômica, na década de setenta.1 À época, os empreendedores desejavam atrair um novo público-alvo (até então ignorado pelo mercado): Indivíduos interessados em adquirir uma “segunda casa” para passar as férias, mas que não queriam/podiam arcar com a integralidade das despesas decorrentes do imóvel. O produto criado pelos empreendedores recebeu diferentes enquadramentos jurídicos na Europa (como a “multipropriedade” societária e a “multipropriedade” enquanto direito real limitado2), e foi como compartilhamento da propriedade que ela fez mais sucesso, tendo desembarcado em 1985 no Brasil.3

 

Existem diversas razões para a multipropriedade imobiliária ter emplacado pelo mundo; ela pode ser vantajosa sob diferentes perspectivas. Para o multiproprietário, é a chance de ter uma “casa de férias” a um preço mais acessível, tendo em vista que os custos (inerentes a qualquer imóvel) são diluídos com os outros proprietários. Para o empreendedor, é a oportunidade de aumentar a margem de lucro. Com a possibilidade de alienar o mesmo imóvel-base para mais de um proprietário, a lista de potenciais compradores para casas de praia ou de campo cresceu, assim como o valor geral de vendas (“VGV”) do empreendimento. Para a região onde há a multipropriedade, a repercussão é sobre a economia como um todo, que se fortalece com a redução da sazonalidade do turismo. Para uma utilização mais consciente do imóvel.4 Em vez de apenas uma família aproveitar o bem em um curto período (restrito aos fins de semana e eventuais férias), até cinquenta e duas poderão usá-lo o ano todo.

 

Apesar dos benefícios da multipropriedade imobiliária, até 2017 os investimentos no Brasil ainda se mostravam aquém do potencial de mercado. Havia um cenário de insegurança jurídica; faltava para alguns a compreensão do que era a multipropriedade (exemplo disso é a discussão sobre a natureza jurídica, que precisou ser solucionada no julgamento do REsp 1.546.165-SP). Foi sob esse contexto – para tentar conferir segurança à cadeia produtiva – que ocorreu o advento da lei 13.777/18.

 

Essa legislação, ao inserir novos dispositivos no Código Civil e na lei dos registros públicos, contribuiu para consolidação da multipropriedade imobiliária. A essência do instituto foi positivada e, com isso, uma série de controvérsias pretéritas se encerraram. A despeito dos avanços obtidos com a lei 13.777/18, um dispositivo destoou dos demais: O art. 1.358-T, que restringe o direito do multiproprietário renunciar à multipropriedade (renúncia translativa) em favor do condomínio edilício. Duas dúvidas surgem ao observá-lo: (1ª) a verdadeira intenção do legislador ao criar esse dispositivo; e (2ª) a (in)constitucionalidade dele.

 

Tentar desvendar o real objetivo do legislador com a restrição da renúncia translativa não é tarefa simples. Há quem sugira que o art. 1.358-T tenha sido concebido para solucionar um inconveniente: Evitar que o multiproprietário renuncie à propriedade periódica e, assim, torne o poder público titular daquela multipropriedade5, com fundamento no art. 1.276 do CC/02. O receio disso acontecer é compreensível. Ter o poder público como multiproprietário pode ser um entrave para a perpetuidade do condomínio em multipropriedade. Afinal, é provável que o poder público – diante da escassez de recursos, assim como da falta de interesse dele em usar o imóvel-base e manter a multipropriedade – deixará de pagar as contribuições de condomínio. O problema é que a renúncia translativa não obsta essa hipótese de perda da propriedade para a municipalidade, e, sim, a renúncia abdicativa, que nem sequer foi mencionada no art. 1.358-T.

 

Renúncia translativa e abdicativa não são, então, sinônimas; elas produzem efeitos distintos. Enquanto a renúncia translativa é a faculdade que o titular tem de renunciar a propriedade em favor de qualquer sujeito – seja para pagar um débito (dação em pagamento)6 ou para beneficiar gratuitamente alguém -, a renúncia abdicativa é a vontade manifestada pelo titular no ofício de registro de imóveis de tornar o bem renunciado vago (res derelicta). A translativa é, portanto, uma espécie de alienação ou doação (atrai o ITBI ou o ITCD)7; a abdicativa, o abandono manifesto da coisa.8 Daí se extrai que o legislador talvez tenha se confundido ao fazer referência à renúncia translativa, em vez da abdicativa.

 

Independentemente se houve equívoco na redação do art. 1.358-T da lei 13.777/18, deve prevalecer o entendimento de que a renúncia abdicativa permanece viável.9 O multiproprietário, no uso de suas atribuições, pode dispor como bem lhe aprouver do seu direito real, inclusive mediante a abdicação da propriedade periódica (a ser titularizada pelo poder público).

 

Defender a ampliação da limitação do art. 1.358-T da lei 13.777/18 para a renúncia abdicativa importaria grave ofensa à faculdade do proprietário de tornar a coisa vaga, bem como prejuízo ao condômino que não pode mais arcar com os débitos condominiais, impossibilitando-o de se desvencilhar dos fatos geradores futuros.10 Na prática, eventual tentativa de aplicação extensiva será inconstitucional, por violação (1º) ao direito de propriedade; e (2º) ao princípio da proporcionalidade, pois o multiproprietário será impedido de estancar o problema (libertar-se das despesas vincendas).11

 

Como solução ao inconveniente da renúncia abdicativa, poderia o legislador submeter o multiproprietário renunciante ao preenchimento de requisitos para perfectibilização desse ato. Seria recomendável

 

  • Exigir que o multiproprietário, antes de renunciar, informasse o condomínio edilício sobre o seu interesse em abdicar da propriedade periódica; e
  • Permitir ao condomínio edilício assumir as eventuais dívidas propter rem, adquirindo a propriedade (ressalvada a discussão sobre a personalidade jurídica do condomínio).

 

A comunicação prévia viabilizaria, portanto, a possibilidade de os multiproprietários buscarem uma forma de contornar a renúncia abdicativa – isso tudo, é claro, sem ofender qualquer direito constitucional do multiproprietário renunciante.

 

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1 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio Edilício e Incorporação Imobiliária. 5ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 111.

 

2 TERRA, Marcelo; CAFFARO TERRA, Guilherme. Férias Compartilhadas: A Experiência do Timeshare e da Multipropriedade no Brasil – Questões Registrais na Multipropriedade Imobiliária. Maceió: Viva Editora, 2017, p. 232.

 

3 TEPEDINO. Gustavo. Multipropriedade Imobiliária. São Paulo: Saraiva, 1993, p. 43.

 

4 CHALHUB, Melhim Namem. Multipropriedade: Uma Abordagem à Luz do Recurso Especial nº 1.546.165/SP. Revista de Direito Imobiliário. Vol. 82/2017. Revistas dos Tribunais, p. 71.

 

5 TEPEDINO, Gustavo. Revista Brasileira de Direito Civil – v. 19 – Belo Horizonte: jan./mar. 2019, p. 12-13.

 

6 BUNAZAR, Maurício. Da Obrigação propter rem: Aspectos Teóricos e Práticos. São Paulo: Atlas, 2014, p. 78.

 

7 PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida (Coord.). Comentários à Lei da multipropriedade imobiliária (Lei nº 13.777/2018). 2ª Ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 60.

 

8 VENOSA, Silvio de Salvo. Código Civil de 2002 Interpretado. 3ª Ed. São Paulo: Atlas, 2013, p. 1.497.

 

9 BORGES, Marcus Vinícius Motter (Coord.); e ABELHA, André. Curso de Direito Imobiliário Brasileiro. 2ª Ed., São Paulo: Thompson Reuters, 2022, p 705.

 

10 DE OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Análise Detalhada da Multipropriedade no Brasil após a Lei nº 13.777/2018: Pontos Polêmicos e Aspectos de Registros Públicos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas, Março/2019 (Texto para Discussão nº 255). Disponível aqui. Acesso em 9/7/2024.

 

11 PEDROSO, Alberto Gentil de Almeida (Coord.). Comentários à Lei da multipropriedade imobiliária (Lei nº 13.777/2018). 2ª Ed., São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 62.

 

Fonte: Migalhas

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