A usucapião no Código Civil permite adquirir propriedade por posse prolongada. Propriedade é primária, com uso, gozo, disposição e reinvindicação. Direitos reais limitados derivam dela em formas como usufruto, hipoteca e promessa de compra

 

O instituto da usucapião, previsto no Código Civil brasileiro, permite a aquisição da propriedade ou de direitos reais pelo exercício prolongado e contínuo de uma posse, observado os requisitos e peculiaridades de cada modalidade.

 

Com efeito, a propriedade é a chave para a compreensão dos demais direitos reais. A partir dos desdobramentos dos poderes dominiais surgem os direitos de fruição, garantia e aquisição.

 

  • Propriedade – É o único direito real originário, de manifestação obrigatória em nosso sistema jurídico. A propriedade é a manifestação primária e fundamental dos direitos reais, possuindo um caráter complexo em que  se reúnem os atributos de uso, gozo, disposição e reinvindicação. Em contrapartida, os direitos reais em coisa alheiam somente se manifestam quando do desdobramento eventual das faculdades contidas no domínio.

 

  • Direitos na coisa alheia ou direitos limitados – São manifestações facultativas e derivadas dos diretos reais, resultantes da decomposição de diversos poderes jurídicos contidos na esfera dominial. Assim, sua existência jamais será exclusiva, pois coexistem com o direito de propriedade, mesmo que fragmentado. Por exemplo, no usufruto, o nu-proprietário, o nu-proprietário é privado dos poderes de uso e gozo da coisa, mas mantém a faculdade de disposição, apesar dos atributos dominiais concedidos ao usufrutuário.

 

Os direitos reais limitados estão divididos em três grupos, a saber:

 

  • Direitos reais de gozo e fruição;
  • Direitos reais de garantia;
  • Direito real à aquisição.

 

No primeiro grupo, ou seja, no grupo dos direitos reais de gozo e fruição, podemos citar o usufruto, uso e habitação e a servidão, objeto do presente estudo.

 

Na esfera dos direitos reais de garantia, destacam-se a hipoteca, o penhor e a anticrese. No terceiro grupo, a promessa de compra e venda destaca-se como único direito real à aquisição.

 

Diferença entre Direito Real e Obrigacional

 

Nos direitos reais, os titulares exercem controle direto sobre os bens, utilizando-os conforme sua vontade. Trata-se de uma relação de subordinação das coisas às pessoas. Esses direitos são intrinsecamente ligados a um objeto específico e conferem ao titular uma posição de vantagem sobre o mesmo, permitindo a realização de seus interesses pessoais.

 

Por outro lado, nos direitos obrigacionais, o acesso aos bens almejados depende, inicialmente, do comportamento de outra pessoa, como condição de acessibilidade aos bens almejados. Não há uma relação de subordinação do devedor ao credor, mas sim uma cooperação mútua com o objetivo de alcançar o adimplemento, isto é, a satisfação do interesse do credor por meio da prestação, seguida pela restituição da liberdade do devedor. Os direitos obrigacionais são caracterizados pela formação de relações jurídicas de crédito entre partes específicas (ou determináveis), em que o credor possui o direito de exigir do devedor uma determinada conduta, seja ela de dar, fazer ou não fazer.

 

Para melhor compreensão das principais diferenças entre os direitos reais e obrigações, segue, abaixo, a tabela comparativa1:

 

Assim, como direito real, a servidão poderá ser objeto de usucapião, conforme se verá adiante. A combinação destes dois institutos – usucapião e servidão – gera um campo de análise jurídico relevante e complexo. A discussão sobre a usucapião de servidão é essencial para compreender como a legislação brasileira trata a aquisição de servidões por meio da usucapião e os desafios associados a essa prática.

 

Conceito de Servidão

 

A servidão é, assim, um direito real sobre coisa imóvel que impõe restrições em um prédio em benefício de outro, pertencentes a diferentes proprietários. Em essência, a servidão é um direito real que permite ao titular da servidão (dominante) usar ou ter acesso a um imóvel vizinho (servidão) para a realização de um fim específico, como passagem, acesso a água, ou iluminação, conforme definido no Código Civil brasileiro (arts. 1.378 a 1.387).

 

Classificação das Servidões:

 

  1. Servidões afirmativas/positivas e negativas:

 

a.1 São as que conferem ao titular ou possuidor do prédio dominante o poder de praticar algum ato no prédio serviente, como a servidão de trânsito e a de aqueduto. O prédio serviente fica sujeito a sofrer a prática de determinados atos do titular do prédio dominante.

 

Ex: Buscar água na fonte. O vizinho precisará tolerar que se passe para buscar água na fonte

 

a.2 Servidões negativas: Sãs as que impõem ao titular ou possuidor do prédio serviente o dever de abster-se da prática de determinado ato em seu próprio prédio, como a de não construir e a de não abrir janelas, ou de tolerar, como a de transigir construção de janelas fora dos limites legais.

 

Ex: Não construir dois andares no imóvel.

 

  1. Servidões aparentes e não aparentes – uma das classificações mais importantes, visto que apenas a servidão aparente pode ser objeto de usucapião, conforme se verá adiante.

 

b.1 Servidões aparentes

 

São as que se revelam por obras ou sinais exteriores inequívocos e duradouros – seja no prédio dominante ou no serviente – demonstrando que alguém concedeu visibilidade à propriedade. Aquela que deixa rastro, marcas.

 

Ex: Servidão de passagem

 

b.2 Servidões não aparentes

 

São as que não têm sinal externo de sua existência. Aquela que não deixa rastro.

 

Ex: Servidão de não construir a certa altura.

 

  1. Servidões contínuas e descontínuas

 

c.1 Servidões contínuas

 

São as que, consumadas as obras que lhe servem de pressuposto, dispensam atos humanos atuais para que subsistam e sejam exercidas.

 

Ex: Servidão energia estética, de escoamento e de passagem de água.

 

c.2 Servidões descontínuas

 

São as que dependem, para seu exercício, de atos permanentes do titular ou possuidor do prédio dominante.

 

Ex: Servidão de passagem, de trânsito.

 

Usucapião e sua Aplicação à Servidão

 

A usucapião é a aquisição de um direito real, como a propriedade ou servidão, pela posse prolongada e contínua, com ânimo de dono, conforme previsto no Código Civil brasileiro (arts. 1.238 a 1.244). Os requisitos incluem posse mansa e pacífica, com justo título (a depender da espécie) e boa-fé, ou a posse por um prazo determinado, conforme o tipo de usucapião.2

 

Por esse modo originário de aquisição de propriedade e de outros direitos reais, será possível alcançar a titularidade de servidões aparentes, após o exercício pacífico e contínuo, por dez ou 20 anos, nos termos do art. 1.379, do Código Civil:

 

Art. 1.379. O exercício incontestado e contínuo de uma servidão aparente, por dez anos, nos termos do art. 1.242, autoriza o interessado a registrá-la em seu nome no Registro de Imóveis, valendo-lhe como título a sentença que julgar consumado a usucapião.

 

Parágrafo único. Se o possuidor não tiver título, o prazo da usucapião será de vinte anos.

 

Espécies de Usucapião de Servidão

 

  • Usucapião Ordinária: Requer posse contínua e ininterrupta por um prazo de 10 anos, com justo título e boa-fé e animus de prédio dominante; e
  • Usucapião Extraordinária: Nos termos do Código Civil, permite a aquisição da servidão após 20 anos de posse contínua e ininterrupta, independentemente de justo título, mas exigida a boa-fé.

 

O dispositivo legal deixa evidente a possibilidade de usucapião de servidões, seja na modalidade ordinária (com justo título) ou extraordinária (sem justo título), mas apenas das servidões aparentes. A razão é lógica: Apenas essas admitem posse e, por conseguinte, animus domini (vontade de ser dono).

 

Apesar do parágrafo único do art. 1.379 do CC, prever o prazo de 20 anos para a usucapião extraordinária (maior que o prazo máximo para usucapião de imóvel – 15 anos), o Enunciado 251 do CJF afirma que o prazo da usucapião de servidão extraordinária deveria ser de 15 anos, em uma sistemática interpretação do Código Civil.

 

Contudo, é importante ressaltar que, se a usucapião for pleiteada na via extrajudicial, via de regra, deverá ser observado o prazo de 20 anos previsto em lei, em razão do princípio da legalidade, sendo certo que o registrador não poderá afastar a previsão legal.

 

Assim, é plenamente possível a usucapião de servidão, nos termos previstos no Código Civil, desde que estas sejam aparentes3, observado, ainda, o prazo para a prescrição aquisitiva previsto em lei, quando se tratar de usucapião extrajudicial.

 

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1 FARIAS, Cristiano Chaves de. Curso de Direito Civil – v.5 – reais/Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald- 19. Ed. Ver. E ampl. São Paulo: editoria JusPodivm, 2023, p. 45.

 

2 STJ, REsp n. 1.644.897/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 19/3/2019, DJe de 7/5/2019. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?preConsultaPP=&pesquisaAmigavel=+%3Cb%3Eusucapi%E3o+e+servid%E3o%3C%2Fb%3E&acao=pesquisar&novaConsulta=true&i=1&b=ACOR&livre=usucapi%E3o+e+servid%E3o&filtroPorOrgao=&filtroPorMinistro=&filtroPorNota=&data=&operador=e&thesaurus=JURIDICO&p=true&tp=T&processo=&classe=&uf=&relator=&dtpb=&dtpb1=&dtpb2=&dtde=&dtde1=&dtde2=&orgao=&ementa=¬a=&ref=. RECURSO ESPECIAL. REINTEGRAÇÃO DE POSSE. CORREDOR DE 60 CM EXISTENTE ENTRE OS IMÓVEIS DAS PARTES. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. IMPOSSIBILIDADE DE RECONHECIMENTO. ATOS POSSESSÓRIOS PRATICADOS SOBRE A COISA INSUFICIENTES À CONFIGURAÇÃO DE POSSE QUALIFICADA. PROPRIETÁRIO NÃO DESIDIOSO. SERVIDÃO. OCORRÊNCIA DE QUASE POSSE. POSSIBILIDADE DE USUCAPIR A SERVIDÃO E NÃO A PROPRIEDADE. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO NO ACÓRDÃO RECORRIDO. 1. Não há falar-se em omissão ou contradição do acórdão recorrido, se as questões pertinentes ao litígio foram solucionadas, ainda que sob entendimento diverso do perfilhado pela parte. 2. A usucapião extraordinária, nos termos art. 1.238 do CC/2002, exige, além da fluência do prazo de 15 (quinze) anos, salvo exceções legais, posse mansa, pacífica e ininterrupta, independentemente de justo título e boa-fé. 3. Qualquer que seja a espécie de usucapião alegada, a comprovação do exercício da posse sobre a coisa será sempre obrigatória, sendo condição indispensável à aquisição da propriedade. Isso porque a usucapião é efeito da posse, instrumento de conversão da situação fática do possuidor em direito de propriedade ou em outro direito real. 4. Se não se identificar posse com ânimo de dono, acrescido do despojamento da propriedade, que qualifica a posse, o exercício de fato sobre a coisa não servirá à aquisição da propriedade.

 

3 STJ, AgInt no REsp n. 1.642.689/MS, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 10/8/2020, DJe de 21/8/2020.  Disponível em: https://processo.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?preConsultaPP=&pesquisaAmigavel=+%3Cb%3Eusucapi%E3o+e+servid%E3o%3C%2Fb%3E&acao=pesquisar&novaConsulta=true&i=1&b=ACOR&livre=usucapi%E3o+e+servid%E3o&filtroPorOrgao=&filtroPorMinistro=&filtroPorNota=&data=&operador=e&thesaurus=JURIDICO&p=true&tp=T&processo=&classe=&uf=&relator=&dtpb=&dtpb1=&dtpb2=&dtde=&dtde1=&dtde2=&orgao=&ementa=¬a=&ref=. PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO INDENIZATÓRIA C/C OBRIGAÇÃO DE FAZER. COMPROVAÇÃO DE FERIADO LOCAL. OMISSÃO. INEXISTÊNCIA. SERVIDÃO APARENTE. REEXAME DO CONTEXTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. 1. Inicialmente, cumpre destacar que a partir do julgamento do REsp 1.813.684/SP, proferido pela Corte Especial, o STJ firmou o entendimento de que, “sob a vigência do CPC/2015, é necessária a comprovação nos autos de feriado local por meio de documento idôneo no ato de interposição do recurso”. Contudo, houve a modulação de efeitos da decisão, a teor do § 3º do art. 927 do CPC/2015, estabelecendo-se que este posicionamento é aplicado tão somente aos recursos interpostos após a publicação do acórdão respectivo, que ocorreu em 18/11/2019, para possibilitar, nesta hipótese, a comprovação posterior do feriado local. 2. No caso concreto, compulsando os autos, observa-se que a parte recorrente, em Agravo Interno, comprovou a ocorrência de feriado local e a respectiva tempestividade do recurso. 3. Todavia, o Recurso Especial não merece prosperar no que diz respeito aos demais requisitos de admissibilidade. 4. Com efeito, não se configura a ofensa ao art. 535 do Código de Processo Civil de 1973 (art. 1.022 do CPC/2015), uma vez que o Tribunal de origem julgou integralmente a lide e solucionou a controvérsia, em conformidade com o que lhe foi apresentado, manifestando-se de forma clara que as tubulações para condução de água somente se tornaram visíveis no momento em que os requerentes deram início à construção de sua residência no terreno que haviam adquirido no ano de 2004 e que, somente após a retirada de terra, os canos puderam ser percebidos, não havendo, portanto, que falar em servidão aparente e, por isso, em usucapião. 5. Outrossim, extrai-se do acórdão vergastado e das razões de Recurso Especial que o acolhimento da pretensão recursal demanda reexame do contexto fático-probatório, mormente da data da instalação de tubulação no terreno da parte recorrida e de fatos que atestem eventual ocorrência de usucapião, o que não se admite ante o óbice da Súmula 7/STJ. 6. Agravo Interno parcialmente provido, apenas para reconhecer a tempestividade do Recurso Especial.

 

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No caso concreto, ainda que os recorrentes tenham se utilizado do corredor de propriedade dos recorridos, por longos anos, como forma de acesso aos fundos de sua casa, isso não importou constatação de abandono, desídia ou não exercício de posse pelos proprietários da área. 6. Servidão é a relação jurídica real por meio da qual o proprietário vincula o seu imóvel, dito serviente, a prestar certa utilidade a outro prédio, dito dominante, pertencente a dono distinto. Sendo assim, o poder de fato exercido pelo titular do prédio dominante não constitui posse qualificada para usucapir a propriedade.

 

Na servidão, o sujeito exerce quase posse e age com animus domini, mas não da propriedade do bem serviente. O animus domini relaciona-se à própria servidão: a posse é exteriorização da propriedade, enquanto a quase-posse seria a expressão da exteriorização da servidão. 8. Na hipótese, não ocorrendo desídia do proprietário em relação à área reivindicada e a natureza de quase-posse dos atos praticados, além de não posse, essencial à aquisição da propriedade, configura-se o direito à usucapião da servidão, expressada pela intenção de transitar, como se fossem donos daquela servidão, e não da coisa sobre a qual o direito real recaía.

 

Fonte: Migalhas

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