É incontroverso que os seres humanos possuem anseios e aspirações individuais e que cada pessoa tem valores próprios e uma maneira peculiar de viver a sua vida. Ainda que tal premissa seja aceita como verdadeira por todos os que lerão essas linhas, poucas pessoas conseguem compreender que a realidade familiar, especialmente a conjugalidade de um casal, também detém elementos peculiares e individuais.

 

É fato que há muito a legislação em vigor não tem conseguido isoladamente acompanhar a agilidade das mudanças sociais quanto à constituição e formação das famílias. Procedimentos de irresponsabilidade afetiva com filhos, fertilização assistida, vinculação familiar por afinidade e pluralidade de modalidades de conjugalidade e parentalidade têm tido, não raras vezes, guarida maior nas decisões judiciais do que da lei vigente.

 

Diante disso, a construção de um direito de família mais adequado a cada núcleo de pessoas acaba por representar a plenitude da autonomia privada familiar, de modo que cada vez mais são consagrados espaços de normativa própria a cada família,1 traduzidos fielmente nos contratos firmados em âmbito familiar.

 

Os ajustes intrafamiliares, portanto, ganham cada vez mais força e adeptos e têm como objetivo regular tanto questões existenciais quanto patrimoniais.

 

Vale lembrar, todavia, que os ajustes de cunho existencial não possuem relação necessária com patrimonialização questões existenciais. De fato, parece-nos absolutamente possível que questões que digam respeito à parcela existencial de cada qual seja ajustada para que se busque uma plena realização familiar (especialmente dentro do âmbito da busca da plena comunhão de vidas), sem que isso necessariamente reverbere na transformação de aspectos existenciais em compensações de cunho financeiro.

 

Essa ideia se coaduna com a alteração do direito privado que ocorre contemporaneamente, o que Paulo Nalin chama de alteração no sistema do personalismo (superação do individualismo) e patrimonialismo (superação da patrimonialidade voltada a si mesma), caminhando-se para uma despatrimonilização voltada para a dignidade do contratante e a função social do contrato.2

 

Há, portanto, que se considerar que não há nenhuma justificativa razoável para vedar cláusulas com cunho existencial3 constantes nos contratos familiares, sendo imprescindível, no entanto, que contatos não sejam usados para colocar uma das partes em situação de desigualdade ou de dependência, nem para restringir liberdade e tampouco para violar direitos fundamentais de um dos entes da família.

 

No âmbito da contratualização familiar, portanto, tratando o contrato de ajuste que verse exclusivamente sobre a intimidade das partes, compreendemos impossível violação e imposição estatal sobre o tema, de modo que a limitação da participação do ordenamento e da sistemática jurídica deverá ser limitada e compreendida tão somente como controladora e fiscalizadora da observância da dignidade, proteção de vulnerabilidades e ilicitude do ato contratado.

 

Os ajustes familiares com vieses financeiros, por sua vez, são mais facilmente aceitos. Inúmeras situações patrimoniais no âmbito das famílias – amplamente passíveis de negociações e ajustes – são antecedidas por situações existenciais e que delas não se dissociam. Como exemplo, vale indicarmos a fixação de eventual compensação financeira, paga à ex-esposa, a título de indenização compensatória: a situação que antecede a patrimonialização (fixação de indenização) acaba por ser, justamente, o dever de solidariedade relativo ao vínculo conjugal outrora mantido e o ajuste de comunhão de vidas quando ela, em prol da família, deixou sua carreira de lado.

 

De fato, a contratualização parte da ideia de ampliação da autonomia e ingerência estatal menos significativa na vida familiar, especialmente nas questões ligadas à parcela de intimidade vivenciada por cada família. Com efeito, o pensamento de intervenção mínima estatal nas questões de intimidade não é algo de todo contemporâneo. Lições de Lafayette Rodrigues Pereira, no final do século XIX, já traziam a ideia de que as relações que formam a teia da vida íntima pertencem ao domínio da moral e que o direito só intervém para regular e garantir aqueles deveres, cuja inobservância, contrariando o fim do casamento, pode ocasionar graves perturbações.4

 

Também o entendimento de nossos tribunais, em alguma medida, tem caminhado para a aplicação do direito de família mínimo. De fato, o Superior Tribunal de Justiça, por ocasião do julgamento do REsp 1.119.462/MG, de relatoria do Ministro Luís Felipe Salomão, já teve a oportunidade de ponderar que “o direito de família deve ocupar, no ordenamento jurídico, papel coerente com as possibilidades e limites estruturados pela própria CF, defensora de bens como a intimidade e a vida privada. Nessa linha de raciocínio, o casamento há de ser visto como uma manifestação de liberdade dos consortes na escolha do modo pelo qual será conduzida a vida em comum, liberdade que se harmoniza com o fato de que a intimidade e a vida privada são invioláveis e exercidas, na generalidade das vezes, no interior de espaço privado também erguido pelo ordenamento jurídico à condição de ‘asilo inviolável’. Sendo assim, deve-se observar uma principiologia de ‘intervenção mínima’, não podendo a legislação infraconstitucional avançar em espaços tidos pela própria CF como invioláveis. Deve-se disciplinar, portanto, tão somente o necessário e o suficiente para a realização não de uma vontade estatal, mas dos próprios integrantes da família”.5

 

É certo, como se tem visto, que o caminho da contratualização das questões que contemplem reflexos nas relações familiares é sem volta e poderá ser, sem dúvidas, o ápice da maturidade emocional dos relacionamentos afetivos. Diante disso, não há como não pontuar que se mostra necessária a existência maturidade negocial e emocional para pessoas, ligadas por laços familiares, possam ajustar por contrato situações que, até pouco, eram vividas sem qualquer regulação específica.

 

Diante desse fato, mostra-se válido e recomendável que os contratantes, no âmbito do direito de família, estabeleçam contratualmente também as regras de interpretação e de preenchimento de lacunas de acordo com a peculiaridades daqueles indivíduos e da situação jurídica transformada em relação obrigacional contratual.

 

De fato, a legislação civil contempla ampla liberdade negocial aos contratantes,6 limitada apenas pela função social do contrato.7 A interpretação dos negócios jurídicos, por sua vez, dar-se-á estabelecida por cláusula geral prevista no caput do art. 113, conforme a boa-fé e usos do lugar de sua celebração.

 

Muito embora prevista na cláusula geral acima explicitada, nada impede que as partes criem, por si, regras de interpretação e preenchimento de lacunas, estabelecendo critérios objetivos e pormenorizados para que se dê a devida compreensão à dimensão das cláusulas contratuais encetadas pelos contratantes.

 

Nesse sentido, aliás, é o disposto no § 2º do citado art. 113 do CC, que estabelece que as partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.

 

Não se pode olvidar que a inclusão, pela lei 13.874/19, do parágrafo 2º no art. 113 traduz a mais ampla leitura e compreensão da autonomia privada, incluindo no texto legislativo prática que, incorporada pela prática contratualista, traz evidente segurança aos contratos. A aplicação dessa inovação legislativa acaba por contemplar, em definitivo, a ampla liberdade de escolha e autonomia na contratação.

 

Estabelecer a forma de interpretação de cláusulas contratuais traz às partes contratantes a certeza que, havendo necessidade de interpretação do contrato por terceiro (leia-se, juiz em caso de judicialização da questão), o preenchimento da cláusula aberta prevista no caput do artigo se dará de acordo com valores previamente ditados pelos próprios contratantes, em verdadeira conformidade com o espírito que norteou o ajuste desde a fase contratual.

 

Pode-se considerar, ademais, que a aplicabilidade do disposto no art. 113, CC nos contratos familiares pode, inclusive, permitir que as partes reconheçam a existência de vulnerabilidade de um dos contratantes – por exemplo, em razão da ausência de isonomia entre os gêneros – permitindo uma maior flexibilização no cumprimento e interpretação das regras contratuais em benefício daquele menos favorecido negocialmente.

 

Daí porque é possível afirmarmos que nada impede que, diante da possibilidade de criação de regras de interpretação e preenchimentos de lacunas, possam os cônjuges, por exemplo, afastar a presunção de paridade indicada no art. 421A.

 

Pode-se, portanto, ponderar que a possibilidade de pactuar regras de interpretação e preenchimento de lacunas, no âmbito do direito contratual de família, traz uma compreensão considerável da existência da busca plena quanto a comprovação de que quem contratou tinha, materialmente, um conjunto razoável de escolhas:8 as escolhas feitas pelo intérprete devem ser assumidas expressamente, não para libertá-lo do direito institucionalizado, mas exatamente para permitir o debate argumentativo acerca da sua adequação ao ordenamento: trata-se de responsabilidade do intérprete.9

 

Ajustes sobre a interpretação dos contratos de família ganham ainda mais importância quando consideramos que ao direito, como regra, é irrelevante o que as pessoas sentem. Interessam, ao invés, o aspecto objetivo e exterior da conduta humana, e também os seus reflexos sociais,10 de modo que valorações sobre questões específicas daqueles contratantes podem ser, se não estipuladas previamente, desconsideradas quando for necessária a análise interpretativa do negócio jurídico ajustado.

 

Pontue-se, ademais, que ao estabelecer regras de interpretação e preenchimento de lacunas o casal contratante, de maneira ainda mais ampla, reforça e reafirma a sua boa-fé na consecução do negócio jurídico que se apresenta, mormente porquanto poderão, em um momento em que os ânimos não estejam acirrados, em que estejam plenamente ligados por elos de afeto e confiança.

 

Aliás, ressaltemos que confiança e boa-fé – intimamente ligados na origem, já que a boa-fé muitas vezes tem relação de superposição à confiança, pautada pelo que comumente acontece em certo setor ou situação da vida.11 Com a pactuação quanto aos termos de interpretação e preenchimento de lacunas, as partes poderão agir coerentemente com a contratação, de modo que a exequibilidade do contrato fique ainda mais firme em seu propósito de cumprimento.

 

Ademais, se até mesmo os comportamentos no ato de execução podem evidenciar a intenção e a boa-fé das partes,12 o que se dirá do ajuste claro e objetivo, realizado por elas, quanto a forma que deva ser utilizada para interpretação do negócio jurídico que se visa firmar?

 

Por fim, importante que se diga, mais uma vez, que a questão afeta às vulnerabilidades intrafamiliares não pode passar desapercebida quando se fala em contratualização de situações de direito de família, devendo essa situação ser também contemplada quando se pensa no ajuste interpretativo do contratado e na maneira mais acurada de preenchimento de eventuais lacunas.

 

O fato é que a contratualização das relações familiares está posta e fechar os olhos para essa realidade não auxiliará em nada àqueles que se socorrem dessa alternativa para fazer valer os anseios de seu núcleo familiar. Daí porque, não restam dúvidas, cabe à doutrina, aos estudiosos e aos que integram o sistema judicial pensarem em alternativas e soluções para integrá-la, com validade e eficácia, ao mundo jurídico.

 

__________

 

1 MORAES, Maria Celina Bodin de; TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. Contratos no ambiente familiar. In: TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; RODRIGUES, Renata de Lima (Coord.). Contratos, família e sucessões: diálogos interdisciplinares. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2021. p. 2.

 

2 NALIN, Paulo. Do contrato: conceito pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2008. p. 249.

 

3 Nesse sentido, inclusive, é o Enunciado 635 da Jornada de Direito Civil que pontua: “O pacto antenupcial e o contrato de convivência podem conter cláusulas existenciais, desde que estas não violem os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade entre os cônjuges e da solidariedade familiar.”

 

4 PEREIRA, Lafayette Rodrigues. Direitos de família. Rio de Janeiro: Typ. da Tribuna Liberal, 1889. p. 62. Disponível aqui. Acesso em: 13 jul. 2022.

 

5 Ainda no acórdão: “a melhor interpretação que se deve conferir ao art. 1.639, § 2º, do CC/2002 é a que não exige dos cônjuges justificativas exageradas ou provas concretas do prejuízo na manutenção do regime de bens originário, sob pena de esquadrinhar indevidamente a própria intimidade e a vida privada dos consortes (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.119.462/MG. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Julgamento: 26.02.2013. Órgão Julgador: Quarta Turma. Publicação: DJe 12.03.2013).

 

6 “Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.”

 

7 “Art. 421. A liberdade contratual será exercida nos limites da função social do contrato.”

 

8 RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Institutos fundamentais de direito civil e liberdade(s): repensando a dimensão funcional do contrato, da propriedade e da família. Rio de Janeiro: GZ, 2011. p. 274.

 

9 PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 96.

 

10 NEGREIROS, Teresa. O princípio da boa-fé contratual. In: BODIN DE MORAES, Maria Celina (Org.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. p. 222.

 

11 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: critérios para a sua aplicação. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2018. p. 253.

 

12 MARTINS-COSTA, Judith. Loc. cit.

 

Fonte: Migalhas

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