Apelação nº 1000094-56.2023.8.26.0120

 

Espécie: APELAÇÃO

Número: 1000094-56.2023.8.26.0120

Comarca: CÂNDIDO MOTA

 

PODER JUDICIÁRIO

 

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

 

Apelação nº 1000094-56.2023.8.26.0120

 

Registro: 2024.0000868079

 

ACÓRDÃO

 

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1000094-56.2023.8.26.0120, da Comarca de Cândido Mota, em que é apelante ABÍLIO PASSARELLI, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE CÂNDIDO MOTA.

 

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Deram provimento à apelação, v.u.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

 

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), HERALDO DE OLIVEIRA (PRES. SEÇÃO DE DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

 

São Paulo, 12 de setembro de 2024.

 

FRANCISCO LOUREIRO

 

Corregedor Geral da Justiça

 

Relator

 

APELAÇÃO CÍVEL nº 1000094-56.2023.8.26.0120

 

APELANTE: Abílio Passarelli

 

APELADO: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Cândido Mota

 

VOTO Nº 43.500

 

Registro de imóveis – Escritura pública de compra e venda – Titular de domínio casada sob o regime da separação obrigatória de bens – Alienação de imóvel com natureza de bem próprio, havido por sucessão hereditária – Bem particular – Desnecessidade de outorga uxória ou suprimento judicial – Inteligência do art. 1647, caput, do Código Civil à luz da interpretação contemporânea do STJ sobre a aplicação da súmula 377 do STF – Necessidade de prova do esforço comum atualmente exigida pelo STJ que faz dispensar a outorga uxória para venda de bem manifestamente particular, em razão de sua origem com fundamento em sucessão hereditária – Óbice afastado – Apelação provida.

 

Trata-se de apelação interposta por Abílio Passarelli contra a r. sentença proferida pelo MM. Juiz Corregedor Permanente do Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de Cândido Mota/SP, que manteve a recusa de registro da escritura de venda e compra, tendo por objeto a parte ideal correspondente a 9,72222222221% do imóvel matriculado sob nº 11.856 junto à referida serventia extrajudicial (fls. 76/79).

 

Sustenta o apelante, em síntese, que a vendedora era casada sob o regime da separação obrigatória de bens quando adquiriu o imóvel a título de herança, em virtude do falecimento de seus pais.

 

Assim, afirma que se trata de bem particular, o que dispensa a outorga uxória exigida pelo registrador. Ressalta, ainda, que segundo a atual interpretação jurisprudencial dada à Súmula 377 do E. STF, apenas na hipótese de comprovação do esforço comum na aquisição dos bens é que estes deverão ser partilhados (fls. 122/132).

 

A douta Procuradoria de Justiça opinou pelo provimento do recurso (fls. 146/150).

 

É o relatório.

 

A escritura pública de venda e compra, tendo por objeto a fração ideal correspondente a 9,72222222221% do imóvel matriculado sob nº 11.856 junto ao Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de Cândido Mota/SP (fls. 21/24) foi qualificada negativamente pelo registrador, que expediu nota de devolução nos seguintes termos (fls. 10/11):

 

“1. (…) verifica-se que a senhora MARIA PASSARELLI SILVA, casada sob o regime da separação obrigatória de bens, antes da vigência da Lei nº 6.515/1977, com o senhor ANTONIO SILVA, houve uma parte ideal correspondente a 9,72222222221% do imóvel, a título de herança, em decorrência do falecimento de seus pais.

 

  1. Porém, da leitura do traslado da escritura pública de venda e compra ora apresentado a registro, não é possível inferir que o cônjuge da vendedora (…) tenha efetivamente anuído/consentido com a alienação instrumentalizada.

 

2.1. Com efeito, a Certidão de Casamento dos sobreditos ANTONIO SILVA e MARIA PASSARELLI SILVA, cuja cópia autenticada acompanhou o título, atesta que os mesmos contraíram matrimônio em data de 15.07.1970, sob o regime da separação (legal/obrigatória) de bens (art. 258, parágrafo único, inciso IV, do CC/1916).

 

  1. Logo, permissa vênia, diante do acima constatado, faz-se necessário que o cônjuge da vendedora, o senhor Antonio Silva, dê expressa e formal anuência/consentimento à alienação retratada na predita escritura, ou o suprimento judicial dessa concordância, de modo a aperfeiçoar o negócio jurídico instrumentalizado, eis que a eventual incomunicabilidade da sobredita fração ideal do imóvel não possibilita a sua alienação por um dos cônjuges sem a devida outorga conjugal, salvo superior entendimento.

 

3.1. Neste caso concreto, a exigência de outorga conjugal decorre do texto legal do art. 1.647, inciso I, do Código Civil. (…)”.

 

No título (fls. 21/24), Maria Passarelli Silva, casada sob o regime da separação obrigatória de bens, consta como outorgante vendedora da fração ideal correspondente a 9,72222222221% do imóvel matriculado sob nº 11.856 junto ao Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica de Cândido Mota/SP. A certidão imobiliária (fls. 37/48) e a certidão de casamento (fls. 33/34) confirmam que o imóvel é de titularidade exclusiva de Maria Passarelli Silva, que o adquiriu por herança, em virtude do falecimento de seus pais, na constância do casamento sob o regime da separação obrigatória de bens.

 

Incontroverso que se cuida de imóvel particular, pois havido a título gratuito por força de sucessão hereditária pela ora vendedora.,

 

Resta analisar a necessidade de outorga uxória para venda de imóvel manifestamente particular, adquirido por sucessão hereditária, por vendedora casada sob o regime da separação obrigatória de bens. .

 

Toda a celeuma repousa, em última análise, nos efeitos da vetusta Súmula 377 do E. Supremo Tribunal Federal, do seguinte teor: “No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento”.

 

Tenho pessoalmente sérias dúvidas sobre a incidência da referida Súmula 377 na vigência do atual Código Civil. Isso porque desapareceu a razão de ser de referida súmula, qual seja, o art. 259 do Código Civil de 1.916, segundo o qual, no silêncio do pacto antenupcial, havia a comunicação dos aquestos. O atual Código Civil não contém dispositivo semelhante.

 

De qualquer modo, o mais recente entendimento do Superior Tribunal de Justiça a respeito da interpretação da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal foi fixado nos Embargos de Divergência em Recurso Especial nº 1.171.820/PR, Rel. o Min. Raul Araújo, julgado em 26/08/2015, com a seguinte ementa:

 

“(…)

 

  1. Nos moldes do art. 258, II, do Código Civil de 1916, vigente à época dos fatos (matéria atualmente regida pelo art. 1.641, II, do Código Civil de 2002), à união estável de sexagenário, se homem, ou cinquentenária, se mulher, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens.

 

  1. Nessa hipótese, apenas os bens adquiridos onerosamente na constância da união estável, e desde que comprovado o esforço comum na sua aquisição, devem ser objeto de partilha.

 

(…)”. (grifo nosso).

 

Do corpo do v. acórdão consta a seguinte passagem, que resume com precisão a controvérsia e a exata interpretação do alcance da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal pelo Colendo Superior Tribunal de Justiça:

 

“Cabe definir, então, se a comunicação dos bens adquiridos na constância do casamento ou da união depende ou não da comprovação do esforço comum, ou seja, se esse esforço deve ser presumido ou precisa ser comprovado. Noutro giro, se a comunhão dos bens adquiridos pode ocorrer, desde que comprovado o esforço comum, ou se é a regra.

 

Tem-se, assim, que a adoção da compreensão de que o esforço comum deve ser presumido (por ser a regra) conduz à ineficácia do regime da separação obrigatória (ou legal) de bens, pois, para afastar a presunção, deverá o interessado fazer prova negativa, comprovar que o ex-cônjuge ou ex-companheiro em nada contribuiu para a aquisição onerosa de determinado bem, conquanto tenha sido a coisa adquirida na constância da união. Torna, portanto, praticamente impossível a separação dos aquestos.

 

Por sua vez, o entendimento de que a comunhão dos bens adquiridos pode ocorrer, desde que comprovado o esforço comum, parece mais consentânea com o sistema legal de regime de bens do casamento, recentemente confirmado no Código Civil de 2002, pois prestigia a eficácia do regime de separação legal de bens. Caberá ao interessado comprovar que teve efetiva e relevante (ainda que não financeira) participação no esforço para aquisição onerosa de determinado bem a ser partilhado com a dissolução da união (prova positiva).”

 

No mesmo sentido, diversos precedentes recentes da Corte Superior: EREsp 1623858/MG, Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES (DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO), SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/05/2018, DJe 30/05/2018; REsp 1689152/SC, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 24/10/2017, DJe 22/11/2017.

 

Do exposto, conclui-se que no regime da separação obrigatória apenas os bens adquiridos na constância do casamento a título oneroso e mediante esforço comum se comunicam.

 

Em outras palavras, inexistindo prova do esforço comum do casal, não há que se falar em fato jurídico capaz de amparar divisão de bens entre os cônjuges e, nessa hipótese, é de se reconhecer a ausência de interesse jurídico no eventual direito à meação. Nesse sentido, o entendimento de Francisco José Cahali:

 

“(…) Isto porque o novel legislador deixou de reproduzir a regra contida no malfadado artigo 259 (CC/1916).

 

Desta forma, superada está a Súmula n° 377, desaparecendo a incidência de seu comando no novo regramento. Sabida a nossa antipatia à Súmula, aplaudimos o novo sistema. E assim, não mais se admite a prevalência dos princípios da comunhão parcial quanto aos bens adquiridos na constância do casamento pelo regime de separação obrigatória (separação legal). A separação obrigatória passa a ser, então, um regime de efetiva separação de bens, e não mais um regime de comunhão simples (pois admitida a meação sobre os aquestos), como alhures. A exceção deve ser feita, exclusivamente, se comprovado o esforço comum dos cônjuges para a aquisição de bens, decorrendo daí uma sociedade de fato sobre o patrimônio incrementado em nome de apenas um dos consortes, justificando, desta forma, a respectiva partilha quando da dissolução do casamento. Mas a comunhão pura e simples, por presunção de participação sobre os bens adquiridos a título oneroso, como se faz no regime legal de comunhão parcial, e até então estendida aos demais regimes, deixa de encontrar fundamento na lei. (…)”. (CAHALI, Francisco José. A súmula n° 377 e o novo código civil e a mutabilidade do regime de bens.in: Revista do Advogado. n° 75, abril. 2004, p. 29).

 

O caso concreto é ainda mais caro. Não se cogita nem em tese da existência de bem comum. Isso porque, novamente se repete, a aquisição se deu pela ora vendedora e título gratuito, por força de sucessão hereditária.

 

Incontroversa , no caso concreto, a incomunicabilidade do imóvel e a impossibilidade de direito à meação pelo cônjuge, pois o bem foi adquirido a título gratuito por sucessão hereditária e não é produto do esforço comum do casal, não há que se falar em necessidade de outorga uxória para sua venda.

 

E assim é porque a norma trazida pelo o art. 1.647, caput, do Código Civil, que dispensa a outorga uxória para a venda de bens imóveis por um dos cônjuges, quando casados no regime da separação absoluta, deve ser interpretada de maneira funcional e sistemática, alcançando não apenas o regime da separação convencional, mas, igualmente, o regime da separação legal ou obrigatória.

 

O regime da separação absoluta de bens pode ser legal (art. 1.641 CC) ou convencional (art. 1.687 CC). Não há na lei referência a que o termo “absoluta” se restrinja à separação convencional.

 

No caso concreto existe separação legal absoluta de bens. Nem em tese se cogita da incidência da Súmula 377, pois incompatível a interpretação da existência de esforço comum, como hoje exige o STJ, em situações de aquisições a título gratuito – ucessão hereditária.

 

Não faria o menor sentido exigir outorga uxória para a venda de imóvel particular, se a vendedora se casou sob o regime da separação absoluta e legal de bens.

 

Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação.

 

FRANCISCO LOUREIRO

 

Corregedor Geral da Justiça

 

Relator. (DJe de 18.09.2024 – SP)

 

Fonte: DJE/SP

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