A aquisição imobiliária, comumente, passa por diversas etapas negociais e envolve vários intermediários. Entre as várias possibilidades, é comum que uma pessoa, física ou jurídica, queria firmar um contrato forte, obrigando de forma irretratável a contraparte a vender o imóvel, porém com a faculdade de poder, posteriormente e de forma unilateral, confirmar se será ela quem adquirirá o bem, ou se será um terceiro por ela indicado. Esse terceiro pode ser uma pessoa jurídica ainda não constituída, um fundo de investimento, o adquirente ao qual o bem a ser reformado será destinado. O relevante é que, na hipótese narrada, a parte deseja ter a faculdade de decidir, posteriormente, quem ficará com o bem, sendo que, se vier a ser indicando um terceiro, ela não quer ter de arcar com custos tributários ou memos cartorários afetos à aquisição de direitos sobre o imóvel. Para tanto, o CC permite a clausulação da “reserva da pessoa a declarar”.

 

Preceitua o CC, em seu art. 467:

 

“No momento da conclusão do contrato, pode uma das partes reservar-se a faculdade de indicar a pessoa que deve adquirir os direitos e assumir as obrigações dele decorrentes”.

 

O dispositivo em comento institui a possibilidade de, ao ser firmado um contrato, ser previsto o direito de uma parte, no prazo determinado que for previsto no instrumento, designar outra pessoa para assumir a posição contratual. Esse direito, de eleição ou declaração futura do contratante final, é uma faculdade, a qual nasce de um negócio bilateral que, após constituído, concede ao titular uma posição de potestatividade. A declaração pode ou não ser feita, sem que o outro contratante original possa de qualquer modo se opor, dado que, para o posterior ato de eleição, sua vontade não será relevante.

 

Em si, o ato de eleição, isto é, o ato de exercício do direito potestativo de escolha de parte contratante, é um ato unilateral, com efeito ex tunc, receptício e, quanto à causa, independente ou abstrato. Diz-se unilateral, porque adentra ao mundo jurídico pela vontade única da parte que detém o direito de nomear o terceiro. Tem efeito ex tunc, porque, uma vez eleito o terceiro, este assume o contrato como se houvesse a este aderido na data da contratação original, conforme expressamente previsto no art. 469 do CC (“Art. 469. A pessoa, nomeada de conformidade com os artigos antecedentes, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes do contrato, a partir do momento em que este foi celebrado).

 

Dada a retroação de efeitos, não existe qualquer transferência ou cessão de direitos entre a parte nomeante e a parte nomeada ao contrato (existe, isso sim, a “colocação” da parte no contrato). O ato é receptício, porque somente se aperfeiçoa, a colocação do contratante, quando a eleição é comunicada à contraparte. O ato é independente ou abstrato, porque, para o contrato em questão, é absolutamente irrelevante a causa da eleição; O motivo fático ou jurídico que leva uma pessoa a nomear outra não é elemento do ato de eleição. Isto não significa inexistir uma causa ou outro contrato subjacente para a eleição ocorrer, mas que, para o ordenamento civil, a causa da nomeação não é elemento principal ou acidental do negócio jurídico em que ingressará o indicado.

 

Por outro lado, é evidente que o ato de eleição é “unilateral” e “potestativo” em relação ao contrato original e à contraparte deste. O eleito não se torna parte da relação negocial pelo simples fato da eleição, mas pela conjunção da eleição feita pelo outro e por sua aceitação. O ato de aceitação da eleição pelo terceiro não é disciplinado no CC, o que permite que a aceitação seja tácita (ex., após a indicação da eleição, o aderente solicita a entrega das chaves do apartamento adquirido, ou realiza o pagamento do preço devido). Como, na realidade negocial, a cláusula do contratante a declarar é aposta em instrumentos preliminares, a aceitação da eleição, pelo terceiro, no mais das vezes, será expressa quando for celebrado o contrato definitivo, ao qual se apresentará o eleito como parte original.

 

Evidentemente, a eleição não gera qualquer transferência de direitos ou obrigações (decorrentes do contrato com pessoa a declarar) entre o nomeante e o nomeado, dado que não existe uma sucessão de direitos entre estes – repisando-se, o art. 467 do CC prevê a pessoa eleita “deve adquirir os direitos e assumir as obrigações (…) decorrentes (do próprio contrato)”. O que há é uma relação contratual original e nova, formada diretamente entre a contraparte e o nomeado.

 

Vale frisar, a cláusula da pessoa a declarar não desnatura o contrato. Segundo doutrina de Cario Mario:

 

“O contrato já está formado. Nele fica, todavia, consignado que um dos contratantes reserva-se a faculdade de indicar a pessoa que adquirirá, em momento futuro, os direitos e assumirá as obrigações respectivas (electio amici). As partes contratantes estão definidas e identificadas. O que resta é vir a pessoa designada ocupar o lugar de sujeito da relação jurídica assim criada (CC, art. 467). (…)

 

Desdobra-se, desta sorte, o contrato em duas fases. Numa primeira, o estipulante comparece em caráter provisório, permanecendo a avença entre um contratante certo, e outro, meramente indicado, porém dependente de aceitação. Numa segunda, o nomeado passa a ser o dominus negotii. (…)

 

Segundo a dogmática italiana, que o Código adotou por modelo, o contrato por pessoa a indicar é um negócio jurídico válido, dotado de obrigatoriedade. Se o nomeado aceita na forma e nas condições estabelecidas nos arts. 468 e 469, adquire os direitos e assume as obrigações. Substitui, portanto, quem o designou na titularidade das relações jurídicas.” (SILVA PEREIRA, Caio Mário da, Instituições de Direito Civil, v. III, ed. Eletrônica, revista e atualizada por Regis Fichtner, Rio de Janeiro, 2003, 206-A. Contrato com pessoa a declarar)

 

Ao se adentrar na leitura do CC Italiano, fonte da disciplina nacional, observa-se que a literalidade da norma é elucidativa. O codex italiano disiplina a “Reserva de Nomeação de Contratante” em seus arts. 1.401 a 1.405. Ao que pertinente, assim é previsto:

 

Art. 1401. (Riserva di nomina del contraente).

 

Nel  momento  della  conclusione  del  contratto  una  parte puo ‘riservarsi la facolta’ di nominare  successivamente  la  persona  che deve acquistare i  diritti  e  assumere  gli  obblighi  nascenti  dal contratto stesso.

 

Conforme consta do citado art. 1.401, a pessoa nomeada adquire as obrigações “nascentes do próprio contrato”.

 

Em seguida, o diploma estabelece a retroação de efeitos (igualmente ao feito pelo codex nacional, em seu art 469):

 

Art. 1404. (Effetti della dichiarazione di nomina).

 

Quando la dichiarazione di nomina e’ stata  validamente  fatta,  la persona nominata acquista i diritti e assume gli  obblighi  derivanti dal contratto con effetto dal momento in cui questo fu stipulato.

 

Porque o contratante declarado adquire direitos e assume obrigações do próprio contrato com efeito no momento em que o contrato foi estipulado, não é tecnicamente possível se falar em cessão de contrato. A pessoa que indicou desaparece da relação e esta é tido como existente, desde o início, apenas entre a contraparte e a pessoa eleita. Por isso, após a indicação e aceitação da pessoa a declarar, eventual anulabilidade arguível pela parte que reservara o direito de declarar restará afastada.

 

Do dito, já se observa que em nada se iguala a eleição do contratante à cessão de contrato. A cessão é um negócio jurídico próprio, que em não elimina a relação contratual existente entre as partes originais. Na cessão, existe a transferência de direitos e obrigações de uma parte de dado contrato a um terceiro, que não fazia parte do contrato original. Essa parte não é “colocada” no contrato como contratante original. Daí que os vícios de consentimento do cedente no contrato original poderão tornar ineficaz a cessão sequente, o que não se dá de forma correspondente no contrato que passa a existir entre o eleito e a contraparte. A cessão tem efeitos ex nunc, sem retroação alguma.

 

De forma técnica e sistêmica, o legislador italiano disciplinou, logo após o instituto do “Reserva de Nomeação de Contratante”, a chamada “Cessão de Contrato”, em seus arts. 1.406 a 1.410, para dispor que, neste instituto, existe propriamente uma cessão de direitos e obrigações, dependente de um novo acordo entre as partes e sem eficácia retroativa:

 

Art. 1406. (Nozione).

 

Ciascuna  parte  puo’  sostituire  a  se’  un  terzo  nei  rapporti derivanti da un contratto con prestazioni  corrispettive,  se  queste non sono state ancora eseguite, purche’ l’altra parte vi consenta.

 

O CC brasileiro não prevê, em caráter geral, a cessão de polo contratual.

 

Segundo doutrina, “cessão de contrato é o negócio jurídico que tem por objetivo a transferência por uma das partes (cedente) a um terceiro (cessionário), com a anuência da outra parte (cedido), da posição contratual” (Cabral, Antonio da Silva, Cessão de contratos, Imprenta, São Paulo, Saraiva, 1987).

 

A jurisprudência determina que, na falta de maior regramento, aplicam-se, à cessão de contrato, onde couber, os dispositivos da cessão de crédito (art. 286 a art. 298) e da assunção de dívidas (art. 299 a 303). O requisito da anuência é uma característica prevista no direito comparado e empossado pela doutrina e jurisprudência em geral; aqui, porém, advoga-se não ser ela regra absoluta, dado que, na hipótese em que o cedido não guarde mais qualquer pretensão, não fará sentido a exigência dela. Nesse sentido, a recente lei 14.711/23, introduziu no CC a disciplina do “agente de garantia”, sendo que, no §3º do art. 853-A é previsto que a substituição deste agente é feita de forma unilateral pela parte credora da garantia, sem necessidade de qualquer anuência do devedor e do garantidor.

 

Nesse ponto, ao que mais útil, ao entender deste autor, pode-se definir que cessão de contrato é o negócio jurídico bilateral, pelo qual uma parte cede a um terceiro os direitos e obrigações decorrentes de um contrato, cuja eficácia (da cessão) dependerá da anuência da contraparte, na hipótese em que esta tenha pretensão exercível em relação à parte cedente.

 

Retomando ao ponto central deste artigo, ao passo que o ato de eleição da pessoa contratante não acarreta transmissão de diretos ou obrigações do contrato, mas a formação de um novo contrato entre duas partes, na cessão contratual o que ocorre é justamente a transmissão de direitos e obrigações de uma pessoa a outra, ou seja, coexistem o contrato original e o contrato de cessão.

 

Na seara imobiliária, a legislação esparsa prevê a cessão de contratos imobiliários (ex., art. 26 da lei 6.766/79; art. 32, a, da lei 4.591/64), não havendo uma linha de texto legal que altere o pensamento sistêmico de que a natureza jurídica da cessão de direitos (ou de contrato) é de negócio jurídico bilateral (ou trilateral, quando necessária a anuência do cedido) e autônomo em relação ao crédito ou contrato cedido; a cessão não retroage, valendo a partir de quando realizada.

 

Da inexistência de fato gerador tributário no ato de eleição do contratante (na compra e venda de imóveis)

 

A distinção entre “ato unilateral de eleição” e “contrato de cessão”, retro observada, é fundamental para se analisar a incidência tributária nos negócios imobiliários em que haja pessoa a declarar.

 

Assim prevê a CF/88:

 

Art. 156. Compete aos municípios instituir impostos sobre:

 

(…)

 

II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição;

 

Deste ponto em diante, não se tratará da análise do fato gerador tributário da transmissão de direitos reais ou da cessão de direitos aquisitos de direitos reais. Isto é, ao se pensar, exemplificativamente, numa compra e venda de imóvel, não se analisará o tributo incidente em decorrência da compra e venda em si.

 

O objeto de análise é o ato de eleição do contratante. Ou seja, se há um compromisso de compra e venda (e considere-se que este esteja registrado na matrícula do imóvel), no momento em que é exercido o direito de nomeação do terceiro, existe transferência de direito real ou cessão de direito aquisitivo sobre imóveis? E, havendo transferência ou cessão de direito, seria este passível de tributação?

 

Com base tão apenas no já exposto, já se para na primeira pergunta, que se responde, evidentemente, de forma negativa. Como visto, o ato de eleição é unilateral e somente tem o efeito de criar um novo e original contrato entre a parte declarara e a contraparte. Não existe qualquer cessão de direitos entre o nomeante e o nomeado referentes ao compromisso de compra e venda.

 

Não é demais lembrar que os conceitos de transmissão e cessão, afetos ao direito tributário, são necessariamente os definidos no direito civil.

 

De modo sucinto, tem-se que, na CF/88, em seu art. 146, é determinado que “Cabe à lei complementar: (…) III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes”. A referida lei federal com status de norma complementar é o CTN que, em seu art. 100, determina: “A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela CF/88, pelas Constituições dos Estados, ou pelas leis orgânicas do Distrito Federal ou dos municípios, para definir ou limitar competências tributárias”.

 

Em outros termos, uma vez que, no âmbito civil, já resta definido que o ato de eleição não envolve cessão de direito algum, resolvida está a questão tributária posta: Não há transmissão de direito real ou cessão de direito aquisitivo no ato de eleição, logo, não há, neste momento, fato gerador tributário.

 

No mais, não existe no CTN qualquer referência a possibilidade de tributação em razão de um ato de designação de parte contratante. Também não se conhece nenhuma lei municipal que dê amparo a outro pensamento. Sem pretender analisar cada legislação local, tendo como referência a legislação municipal do município de SP, resta evidente inexistir quaisquer dos elementos que permitiriam a configuração do fato gerador. A lei municipal 11.154/91, em seu art. 2º, lista o rol de negócios jurídicos aptos a ensejar a incidência tributária; Todos, demandam transmissão de direito real ou cessão de diretivo aquisitivo. O art. 6º define quem são os contribuintes, os quais são invariavelmente quem adquire ou cede direito real ou de aquisição de imóvel. E o art. 7º define que a base de cálculo é o valor venal do bem. Ora, ao se pensar na escolha do terceiro contratante, não há transmissão ou cessão de direito (pois há novo contrato), não há transmitente ou adquirente de direito real ou aquisitivo (pois somente se indica quem irá contratar com outrem) e não há valor venal algum no ato da indicação (dada sua abstração).

 

Em avanço, vale mencionar. Embora o tema seja pouco explorado na doutrina e na jurisprudência nacionais, relevante julgado, na Itália, também definiu, mutatis mutantis, que não se observa cabível o imposto na compra e venda em decorrência do ato de eleição da parte contratante:

 

Intitolazione: Elusione fiscale – Imposta di registro – Preliminare di compravendita immobiliare per persona da nominare – Promissario acquirente società immobiliare – Al definitivo designato acquirente il legale rappresentante della società in proprio – Successiva vendita da questi a terzi con restituzione alla società della caparra dalla stessa versata- Indizi di elusività – Insufficienza (Collegati Giurisprudenza – Sentenza del 05/06/15 65 – Comm. Trib. II grado di Bolzano Sezione/Collegio 2.

 

Evidentemente que fraudes e abusos podem ocorrer de modo a desnaturalizar a nomeação de terceiro. Contudo, toda norma é passível de violação e não é isso que desnaturará a norma em si.

 

A reserva do terceiro a declarar é instituto de gigante aplicabilidade prática e enseja maior inteligência aos negócios jurídicos.

 

Finalmente, é de se frisar, o instituto em comento permite que, embora no compromisso de compra e venda conste determinada pessoa como promitente adquirente, por ocasião da escritura definitiva outra apareça como compradora, sem que se avente em qualquer cessão. Em mesma sorte, uma promessa de compra e venda registrada em nome de determinada pessoa poderá ser sucedida por uma escritura de compra e venda definitiva em nome de outrem, sem necessidade de qualquer instrumento de cessão ou averbação correspondente. Em situações como tal, é dever do oficial imobiliário, se instado a registrar uma promessa de compra e venda com cláusula de contratante a declarar, que faça constar, no mesmo assento registral, que o promitente adquirente poderá eleger, dentro do prazo estipulado, terceiro para assumir a posição contratual desde sua origem.

 

________

 

CABRAL, Antonio da Silva, Cessão de contratos, Imprenta, São Paulo, Saraiva, 1987;

 

SILVA PEREIRA, Caio Mário da, Instituições de Direito Civil, v. III, ed. Eletrônica, revista e atualizada por Regis Fichtner, Rio de Janeiro, 2003;

 

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti, Tratado de Direito Privado, t. XXIII, São Paulo-SP, Revista do Tribunais, 2012, p. 494 e ss.;

 

ROSENVALD, Nelson, in Código Civil comentado, doutrina e jurisprudência, coor. Cezar Peluso, 17ª ed., Santana de Parnaíba-SP, Manole, 2023, art. 467 e ss.

 

Fonte: Migalhas

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