O conceito de educação digital vem ganhando destaque cada vez maior com o incremento da desinformação online, dos crimes cibernéticos e dos perigos relacionados à hiperexposição de dados pessoais na internet. É fato que as implicações éticas, legais e sociais do uso das TICs – Tecnologias da Informação e Comunicação também têm suscitado importantes debates sobre a responsabilidade civil em relação ao uso inadequado dessas tecnologias, principalmente no Brasil, onde o acesso desigual às TICs acentua as discrepâncias socioeconômicas.

 

Em 2023, 92,5% dos domicílios brasileiros tinham acesso à internet, um aumento em relação aos anos anteriores, conforme dados da PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do IBGE. A pesquisa destacou também que a falta de conhecimento sobre o uso da internet e o custo elevado do serviço foram os principais motivos para a ausência de conexão nos lares. Além disso, foi observada uma alta presença de televisores (94,3%) e acesso a serviços de streaming em 31,1 milhões de domicílios, especialmente nas regiões Sul e Sudeste1.

 

Claramente, embora não se possa desconsiderar que, em números absolutos, 7,5% da população brasileira represente um contingente populacional de aproximadamente 16 milhões de pessoas sem algum tipo de acesso à Internet – número superior ao das populações de inúmeros países -, é fato que o Brasil está, em geral, conectado à rede2. Talvez o que falte seja, de fato, acesso letrado, que viabilize a contenção difusa de danos pela postura adequada de uma população mais bem preparada para lidar com os efeitos deletérios do mau uso da internet.

 

A promulgação da lei 14.533, de 11/1/23, que estabelece a PNED – Política Nacional de Educação Digital, representa um avanço significativo na promoção do letramento digital no Brasil. A legislação estrutura-se em quatro eixos principais: Inclusão Digital, Educação Digital Escolar, Capacitação e Especialização Digital, e Pesquisa e Desenvolvimento em TICs – Tecnologias da Informação e Comunicação. O objetivo primordial é garantir que a população brasileira, especialmente as populações mais vulneráveis, tenha acesso a ferramentas e práticas digitais que possibilitem sua inserção no mundo digital de forma responsável e segura.

 

A política pública foi lançada em sintonia com o comando normativo do art. 26 da lei 12.965, de 23/4/14 (Marco Civil da Internet), sobre o qual já comentei em publicação da coluna Migalhas de IA e Proteção de Dados, quando notei que “a compreensão das potencialidades da educação digital ultrapassa as lindes da tecnocracia e deságua no clamor por um Estado capaz de dar concretude normativa aos deveres de proteção que lhe são impostos”3.

 

O eixo da Educação Digital Escolar, conforme o art. 3º da PNED, visa à inserção da educação digital nas escolas, estimulando o letramento digital e informacional, além de promover a aprendizagem de competências como programação e robótica. Este eixo é essencial para garantir que os jovens brasileiros desenvolvam pensamento computacional, uma habilidade crucial para a resolução de problemas e para o desenvolvimento de soluções inovadoras.

 

No mais, essa integração da educação digital no sistema educacional tem um impacto direto na formação de cidadãos críticos e conscientes dos riscos e das responsabilidades que o ambiente digital impõe. No entanto, apesar dos avanços trazidos pela PNED, persiste a necessidade de uma implementação eficaz, que leve em consideração as disparidades regionais e sociais, especialmente no acesso às tecnologias em áreas menos favorecidas do Brasil.

 

A educação digital não se limita ao ensino de habilidades técnicas. Ela também desempenha um papel crucial na conscientização sobre o uso seguro e ético das tecnologias digitais, o que tem implicações diretas na responsabilidade civil, que, como um instituto jurídico ao qual usualmente se recorre para a discussão das diversas vicissitudes da vida em sociedade, não se cogita mais da singela noção de que se deve reparar danos causados a terceiros em decorrência de condutas ilícitas ou do risco criado por atividades potencialmente perigosas. Bem mais do que isso, é preciso construir um ambiente preventivamente apto a sustentar os diversos usos potencialmente lesivos da internet.

 

Nesse contexto, a educação digital pode ser vista como uma ferramenta de prevenção de danos, uma vez que prepara os indivíduos para utilizarem a tecnologia de forma consciente e responsável. Por certo, o uso indevido de dados, a disseminação de informações falsas (fake news) e os cibercrimes são exemplos de situações em que a responsabilidade civil pode ser invocada. No Brasil, a LGPD – Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais estabeleceu uma série de obrigações para os responsáveis pelo tratamento de dados pessoais, impondo-lhes o dever de adotar medidas de segurança que evitem danos aos titulares dos dados.

 

De acordo com o princípio da “accountability”, previsto tanto na LGPD quanto no PL 2338/23, que visa regulamentar o uso da inteligência artificial no Brasil, os agentes envolvidos no tratamento de dados e no desenvolvimento de tecnologias digitais devem adotar práticas transparentes e responsáveis, sendo passíveis de responder pelos danos causados por suas atividades4. Assim, a educação digital pode desempenhar um papel importante na promoção da responsabilidade e da prestação de contas (accountability), ao fornecer aos indivíduos e organizações os conhecimentos necessários para o cumprimento das normas de proteção de dados e o uso ético das tecnologias.

 

O desenvolvimento e a implementação de sistemas de IA – Inteligência Artificial têm revolucionado diversos setores, mas também levantam importantes questões sobre a responsabilidade civil em casos de danos causados por esses sistemas. A aplicação da IA em áreas como a educação, a saúde e os serviços públicos tem o potencial de aumentar a eficiência e a acessibilidade, porém, também envolve riscos que precisam ser mitigados por meio de uma regulamentação adequada.

 

O PL 2338/23 estabelece diretrizes para o uso de IA no Brasil, incluindo princípios de boa-fé, prevenção, precaução e mitigação de riscos. Um dos pontos-chave do projeto é a previsão de responsabilidade e prestação de contas pelos danos causados por sistemas de IA, tanto de forma intencional quanto não intencional. Isso significa que, mesmo sem a culpa direta de um operador humano, o uso inadequado de IA que cause danos pode resultar em responsabilidade civil.

 

Nesse contexto, a educação digital desempenha um papel crucial. Ao capacitar os profissionais e usuários a compreenderem o funcionamento e os limites das tecnologias de IA, almeja-se contribuir para a prevenção de danos e a mitigação dos riscos associados a essas tecnologias. Além disso, ao promover uma cultura de responsabilidade e transparência, a educação digital ajuda a garantir que os sistemas de IA sejam utilizados de maneira ética e segura, evitando a violação de direitos fundamentais, como a privacidade e a dignidade humana.

 

A desigualdade no acesso às tecnologias digitais é um dos maiores desafios para a implementação de uma política efetiva de educação digital no Brasil. Como visto, de acordo com dados da pesquisa realizada pelo IBGE, ainda existe uma disparidade significativa no acesso à internet e a equipamentos tecnológicos entre as diferentes regiões do país e entre as classes sociais. Essa desigualdade tecnológica não apenas limita o acesso à educação digital, mas também aumenta a vulnerabilidade de populações marginalizadas a práticas ilícitas no ambiente digital. Indubitavelmente, a exclusão digital pode levar à violação de direitos, como o direito à educação, ao trabalho e à privacidade, gerando responsabilidades civis para os agentes que não asseguram o acesso universal às tecnologias da informação. Por outro lado, a inclusão digital, como prevista na PNED, visa mitigar essas desigualdades, promovendo uma distribuição mais equitativa das oportunidades geradas pela digitalização.

 

Nesse sentido, é fundamental que as políticas públicas de inclusão, educação e letramento digital não apenas forneçam diretrizes para a maximização do acesso às tecnologias digitais emergentes, mas também promovam o uso consciente e responsável das mesmas, de modo a prevenir a ocorrência de danos.

 

Logo, a interseção entre a educação digital e a responsabilidade civil apresenta-se como um campo fértil para a discussão de novas formas de prevenção de danos e de regulação do uso das TICs. O avanço das políticas públicas, como a PNED, e a implementação de leis como a LGPD e o eventual avanço do PL 2338/23, representam importantes passos na direção de uma maior responsabilização dos agentes envolvidos no ambiente digital.

 

Por fim, é imperativo que o Brasil continue investindo na expansão da educação digital, assegurando que ela seja acessível a todos e que inclua a formação ética e legal dos indivíduos quanto ao uso das tecnologias digitais. Apenas por meio de uma educação digital inclusiva e consciente será possível minimizar os riscos associados à digitalização e promover uma cultura de responsabilidade civil no ambiente digital.

 

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1 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Informações atualizadas sobre tecnologias da informação e comunicação. Disponível aqui. Acesso em: 1 out. 2024.

 

2 O uso da internet globalmente tem crescido exponencialmente, e em 2023, 63% da população mundial estava conectada à rede. Essa expansão tem proporcionado benefícios como a comunicação global, educação e desenvolvimento econômico. No entanto, há disparidades significativas no acesso, particularmente em regiões menos desenvolvidas. A internet se tornou uma ferramenta essencial para o progresso social e econômico, mas desafios relacionados à inclusão digital ainda precisam ser enfrentados para garantir o acesso equitativo a todos. Cf. RITCHIE, Hannah; MATHIEU, Edouard; ROSER, Max; ORTIZ-OSPINA, Esteban. Internet. Our World in Data, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 1 out. 2024.

 

3 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Proteção de dados pessoais e a Política Nacional de Educação Digital. Migalhas de IA e Proteção de Dados, 12 abr. 2024.  Disponível aqui. Acesso em: 1 out. 2024.

 

4 A conotação relacional do termo é apontada pela doutrina: “Accountability can be defined as a social relationship in which an actor feels an obligation to explain and to justify his or her conduct to some significant other”. DAY, Patricia; KLEIN, Rudolf. Accountabilities: five public services. Londres: Tavistock, 1987, p. 5.

 

5 FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Da mera inclusão à necessária educação digital: tecnologia e direitos humanos como vetores da efetiva cibercidadania. In: GUIMARÃES, João Alexandre Silva Alves; ALVES, Rodrigo Vitorino Souza (org.). Os direitos humanos e a ética na era da inteligência artificial. Indaiatuba: Foco, 2023, p. 129-152

 

Fonte: Migalhas

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