A Constituição da República Federativa do Brasil é um texto normativo cujas regras exprimem normas simples, princípios e preceitos, a ponto de reclamar sistematização que as hierarquizem.

 

Essas regras contêm prerrogativas inatas da pessoa humana, por isso, fundamentais e garantias que lhes asseguram a observação e a proteção do Estado.

 

Essas regras completam-se com a sua natureza de objetivos fundamentais da República e da Federação, dentre os quais está o de construção de uma sociedade justa, mediante a promoção do bem-estar social.

 

A observação do Estado significa o respeito que lhe deve, quando da prática dos atos que lhe incumbem, porque estes não são um fim em si mesmos, mas, uma função primordial para propiciar esse bem-estar.

 

A proteção estatal corresponde à vigilância permanente do poder público para assegurar essas prerrogativas, inclusive, contra terceiros.

 

A doutrina do Direito Constitucional, primeiramente, construiu a teoria dos direitos fundamentais, classificando as suas dimensões em subjetiva, objetiva e privada. Esta última para situar as ofensas que essas prerrogativas sofrem nas relações entre particulares, reclamando a interferência do Estado, até pelo exercício de sua função jurisdicional.

 

Essa constitucionalização do direito privado, pelo prisma dessas relações entre particulares, foi percebida por Orlando Gomes, quando elaborou seu anteprojeto de CC1, por encomenda do Governo Federal, inspirando-se no CC italiano de 16 de março de 1942 que lhe deu originalidade, fazendo-o por ampla sistematização atinente aos chamados direitos de personalidade.

 

A dimensão subjetiva é a proteção que os direitos fundamentais representam para o proveito próprio de um indivíduo. A objetiva, para os interesses da comunidade ou para os bens coletivos.

 

Enfim, os direitos de personalidade são muitos daqueles encarados na possibilidade de sofrerem atentados por parte de outros homens ou de serem auto sacrificados. Luís Roberto Barroso2 estuda-os sob o tema da eficácia privada dos direitos fundamentais, lembrando que há três correntes em relação a esse tema: (i) a que nega (ii) a que admite a aplicação indireta e (iii) a que admite a aplicação direta e imediata nas relações privadas.

 

Exemplifica com a jurisprudência do STF a aplicação indireta, mediante a técnica da intepretação conforme e a aplicação direta3.

 

Esse pensamento anima a conclusão de que o CC agasalha o entendimento, aqui, perfilhado, no sentido de que podem ocorrer abusos nas “relações privadas, seja no mercado, na empresa, nos contratos, nos vínculos de trabalho, na família, nas associações profissionais ou em outros espaços”4.

 

O direito à moradia no texto de 2002 do CC

 

A Constituição agasalha, como direito social fundamental, a moradia.

 

A moradia é a habitação, ou seja, o lugar onde se mora ou o lugar de estada habitual.

 

Caracteriza-se, aqui, a posse porque, assim, exerce-se um dos poderes inerentes à propriedade, qual seja, o uso do bem imóvel, especialmente, se forrado esse uso pela celebração de um contrato de compra e venda desse bem, mesmo por instrumento particular, porque o instrumento público, somente, é essencial à validade de negócios jurídicos dessa natureza, relativos a imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário mínimo do país, embora, hoje, essa remuneração tenha quantidade de moedas uniformizada em todo o país.

 

A propriedade desse bem imóvel adquire-se, formalmente, pelo modus acquisitionis que consiste na transcrição do titulus adquirendi, isto é, o título translativo, no registro de imóveis.

 

Esse titulus é a escritura pública, porque o instrumento particular não opera esse efeito, salvo se este veicular um contrato de compromisso de compra e venda que, por força do Decreto-lei 58/37, confere direito real ao compromitente comprador, porque qualquer dúvida está dissipada em face de esse instrumento está incorporado como veículo de outorga de direito real ao adquirente, conforme o rol “numerus clausus” do art.1.225 do CC5.

 

A simples apresentação desse título ao oficial do registro, para que este faça a prenotação no protocolo, gera a eficácia do registro que é, no Brasil, a forma de transferência, entre vivos, da propriedade.

 

A escritura pública é documento dotado de fé pública, quando lavrado em notas de tabelião, por isso, faz prova plena, exigidos os requisitos descritos no §1º do art.215 do CC.

 

O direito à moradia no texto do anteprojeto de revisão do CC

 

Passa-se a exigir, na modificação do art.108 do atual texto, o de 2002, a escritura pública como essencial à validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis.

 

Significa que não importa o valor do bem imóvel.

 

Há transversalidade desse texto proposto com a Constituição porque, assim, assegura-se o direito à cidadania, que hoje preside as disposições do Direito Constitucional.

 

A evolução desse direito passou por fases sucessivas – embora cada uma incorporando-se à subsequente – quais foram: Direitos políticos; civis; econômicos e sociais; da cidadania.

 

O texto proposto está conforme esse direito da cidadania porque agasalha segurança jurídica, na medida em que entrega ao notário público a guarda desses negócios entre particulares, tal como convém à efetividade da dimensão objetiva dos direitos fundamentais.

 

O notário público pratica atos jurídicos de garantia da publicidade, da autenticidade, da segurança e da eficácia das relações entre particulares.

 

O notário, tanto no exercício notarial, propriamente dito, quanto no de registro, tem função de caráter privado, por delegação do poder público, por isso, é que a lei regula as suas atividades; disciplina a sua responsabilidade civil e criminal; define a fiscalização de seus atos pelo Poder Judiciário.

 

O texto proposto está, obviamente, em consonância com essas regras da Constituição, mas, é bom gizar que ele agasalha disposição no sentido de que os emolumentos de escrituras públicas de negócios cujo objeto seja bem imóvel, com valor venal inferior a trinta vezes o maior salário mínimo vigente no país, terão seus custos reduzidos em cinquenta por cento.

 

A atividade notarial e de registro é deferida ao habilitado em concurso público de provas e títulos, de nacionalidade brasileira, graduado em Direito e de conduta condigna para o exercício dessa profissão.

 

Assim, o texto proposto para o art.108 do CC objetiva a regulação de prerrogativas outorgadas pela Constituição ao indivíduo e, em uma transversalidade, completa a efetividade de objetivos fundamentais republicanos na construção de uma sociedade justa, mediante a promoção do bem-estar social desse indivíduo que, fora dessa regulação, encontra-se à mercê de uma legislação que não lhe assegura o direito de propriedade de bem imóvel, à medida em que lhe expõe aos riscos dos chamados contratos de gaveta, isto é, negócios não oficiais na compra e venda de imóveis que não são lavrados por notário público e, por isso, não se submetem à regência das normas jurídicas aplicáveis.

 

_______

 

1 cf. CC; Projeto Orlando Gomes. Rio de Janeiro: ed. Forense, 1985, p.17. Também, Direitos de personalidade. In. Revista de Informação Legislativa. Senado Federal – set.1966. p.39-48

 

2 cf. Curso de direito constitucional contemporâneo. 12ª ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p.473

 

3 cf. Luís Roberto Barroso, ob. cit., p.474/475

 

4 cf. Luís Roberto Barroso, ob. cit. p.473/474

 

5 cf. Orlando Gomes. Direitos reais 19ª ed. atualizada por Luiz Edson Fachin. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.358

 

Fonte: Migalhas

Deixe um comentário