A união estável é um modelo de família pautada na conjugalidade informal muito conhecido entre nós e bastante utilizado pela sociedade brasileira. De acordo com a Constituição Brasileira, no art.226, §3º. “A união estável entre homem e mulher é reconhecida como entidade familiar para efeitos de proteção estatal, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”. Após o julgamento da ADI nº4.277, pelo Supremo Tribunal Federal, também pode ser formada por pessoas do mesmo sexo.

 

As principais normas que disciplinam a união estável estão concentradas nos artigos 1.723 e seguintes do Código Civil e o seu suporte fático ou hipótese normativa se extrai, principalmente, do art.1.723, cuja redação sempre foi alvo de críticas porque enseja confusão interpretativa, em especial quanto à natureza do instituto.

 

Art. 1.723. É reconhecida como (A) entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, (B) configurada na convivência pública, contínua e duradoura e (C) estabelecida com o objetivo de constituição de família.

 

No que toca à parte final do dispositivo, há forte dissidência doutrinária que resulta em três posições distintas quanto à importância atribuída à vontade dos companheiros, classificando a união estável como ato-fato jurídico, ato jurídico ou negócio jurídico.

 

A posição majoritária é liderada por Paulo Lobo1 e qualifica a união estável como um ato-fato jurídico, uma vez que, na hipótese normativa do art.1.723, há fatos decorrentes da ação humana, seja ela volitiva ou avolitiva. Isso porque a família decorrente dessa conjugalidade informal é formada a partir de uma convivência pública, contínua e duradoura. Presentes os pressupostos que demonstram a família já formada, será indiferente que os conviventes tenham firmado um contrato de namoro, de acompanhante, de patrocínio etc. Tais documentos serão ineficazes, e a união estável com seus efeitos pessoais e patrimoniais prevalecerá, desde que estejam presentes os elementos que compõem a hipótese normativa, independentemente da chamada ‘formalização’ ou da manifestação expressa da vontade.

 

Em outra publicação, compartilhando o entendimento do Professor Paulo Lobo, escrevi: “Sendo a união estável um ato-fato jurídico, não haverá necessidade de se perquirir sobre a manifestação volitiva e/ou a conduta intencional dos partícipes. Seria suficiente a configuração da situação de fato com o cerne e os elementos completantes do suporte fático, todos já comentados. Ainda que os companheiros tenham declarado a vontade de estabelecer a sua convivência como união estável, essa tal vontade não seria, em si, relevante para a formação do instituto jurídico.”2 No mesmo sentido, Débora Gozzo e Maria Carolina Nomura Santiago afirmam: “A união estável, por sua vez, é um ato-fato, que não tem data exata de início, não tem tempo mínimo de existência para que assim seja considerada, e não tem o condão de alterar o estado civil”.3

 

A segunda posição qualifica a união estável como ato jurídico stricto sensu e assim, atribui importância à vontade dos conviventes. Nesse caso, a vontade pode ser apenas manifesta a partir da conduta cotidianamente praticada. Rolf Madaleno4 e o saudoso Zeno Veloso defendem a união estável como ato jurídico.5 Marcos Bernardes de Melo6 chegou a pensar do mesmo modo, conforme texto publicado no ano de 2010, havendo alterado o seu posicionamento posteriormente. Se os conviventes agirem como se casados fossem, presume-se que há intenção de formar uma união estável. Para afastar essa presunção, eles poderão fazer uma declaração formal, expressando que sua conduta não deve ser interpretada como consentimento para enquadramento do relacionamento como união estável. Nessa medida, um contrato de namoro, de acompanhante ou de patrocínio poderia ser útil para afastar o enquadramento da relação dos contratantes como uma união estável.

 

A terceira posição é minoritária e segue capitaneada pelo civilista Marcos Bernardes de Melo7 para quem a união estável é um negócio jurídico. Nesse entendimento, a união estável só ocorrerá se houver a declaração de vontade das partes que, inclusive, poderão autorregular o seu relacionamento nos aspectos patrimoniais e existenciais. Sob essa natureza jurídica, a união estável se aproxima bastante do casamento, vez que ambos os tipos de conjugalidade dependerão da prévia declaração volitiva das partes. Diferenciam-se, principalmente, pelo conjunto de formalidades que cercam o casamento, negócio jurídico complexo de direito de família.

 

Se voltarmos o olhar ao passado, encontraremos fortes evidências que justificam a positivação do instituto como um ato-fato jurídico. Nas atas das sessões da Comissão de Família, na Constituinte “§ 3° do art. 1° realmente cria a possibilidade de se amparar a união estável entre o homem e a mulher. É a antiga luta em que me empenhei, em favor da companheira, que e´ a mulher livre que vive com um homem livre e com quem não se casa, muitas vezes, porque ele não quer casar.”  (Sr. constituinte Mendes Ribeiro – Comissão da Família, da Educação, Cultura e Esportes, Ciência e Tecnologia da Comunicação. reunião em 1º de junho de 1987). Assim como na mensagem presidencial para vetar os artigos 3º., 4º. e 6º. Do projeto de lei que deu ensejo à lei 9.278/96

 

“em primeiro lugar, o texto é vago em vários dos seus artigos e não corrige as eventuais falhas da lei 8.971. Por outro lado, a amplitude que se dá ao contrato de criação da união estável importa em admitir um verdadeiro casamento de segundo grau, quando não era esta a intenção do legislador, que pretendia garantir determinados efeitos a posteriori a determinadas situações nas quais tinha havido formação de uma entidade familiar.” (Trecho do veto presidencial).

 

Não sem razão, a maioria dos julgados do Supremo Tribunal de Justiça qualifica a união estável como um ato-fato jurídico, como se pode verificar nos REsp nº 1.761.887; nº 1.688.836 e nº 2.042.88.

 

É assim que insistimos em afirmar que a união estável e o casamento são modelos de conjugalidades diferentes. Se fossem equivalentes, a Constituição da República não teria determinado que a lei facilitasse a sua conversão em casamento. A distinção resiste tão somente na forma como se constituem vez que, para os fins da proteção do estado, a família decorrente da união estável tem o mesmo status que a família matrimonial.

 

Em suma, o casamento é um negócio jurídico, enquanto a união estável viceja no mundo dos fatos assim como as flores brotam na primavera. Sendo um fato derivado da ação humana, é considerado ato-fato jurídico, figura genuinamente brasileira, idealizada por Pontes de Miranda.8

 

Na vida cotidiana, muitos(as) companheiros(as) que compartilham uma plena comunhão de vida não se preocupam em formalizar essa união ou em refletir sobre como nomear o relacionamento, seja como namoro, amizade ou união estável. Há pessoas tão discretas que não se expõem e amam baixinho, como dizia Mário Quintana: “se tu me amas, ama-me baixinho. Não o grites de cima do telhado. Deixa em paz os passarinhos”.

 

Os dados informados pelo Cartório em Números mostram que de 2006 a novembro 2023, foram lavradas 2.180.948 escrituras de união estável.9 Em período equivalente, de 2002 a novembro de 2023, foram celebrados mais de 20 milhões casamentos.10 Será isso indica uma preferência nacional pelo casamento? Parece que o brasileiro gosta de se casar, mas também parece certo que há muita gente vivendo união estável sem declaração formal e/ou registro. Muitas pessoas de baixa renda só se darão ao trabalho de nominar a sua relação quando precisarem pleitear a pensão por morte, no INSS, após o óbito do(a) companheiro(a). Muitos(as) não se ocupam de “formalizar” a sua união. Esse termo é, aliás, um equívoco: a união estável, enquanto ato-fato jurídico se distingue do casamento exatamente por não ser formalizada.

 

Com a alteração da lei de registros público pela Lei no.14.382/2022, que lhe acrescentou o art.94-A, facultou-se aos conviventes a “formalização” da sua união estável por meio de um termo declaratório, escritura declaratória ou sentença judicial.

 

  • O termo declaratório de união estável é figura nova. Deve ser realizado perante o Ofício de Registro Civil e parece uma espécie de escrituração registral por meio da qual as pessoas fazem a declaração a existência de sua união, indicam o regime de bens aplicável e também declaram a dissolução da união, a tudo registrando no livro E, aquele livro utilizado para registrar todos os atos para os quais a lei não indicou livro específico.
  • A escritura pública declaratória (de existência ou de dissolução) de união estável é lavrada pelo notário (registrador de notas) e também deve ser levada a registro no livro E.
  • A sentença judicial que reconhece a união estável ou que a dissolve também pode ser levada a registro nesse mesmo livro.

 

Não poderá ser registrado no livro E, a união estável de pessoas casadas e separadas de fato, ressalvado o caso em que já houver separação judicial ou extrajudicial, ou quando a declaração da união estável for decorrente de sentença judicial transitada em julgado.

 

A lei também criou o chamado procedimento de certificação eletrônica que se presta a indicar os marcos inicial e/ou final da união estável, a partir de procedimento administrativo que tramitará no ofício de registro civil. Com essa providência, a certidão de conversão da união estável em casamento poderá apontar o termo inicial da convivência a partir do qual retroagirão os efeitos do casamento. Visando orientar a atividade cartorária, o CNJ editou normas especiais que hoje estão compiladas no Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça – Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra) – Provimento nº149/2023, a partir do art. 537.

 

Essa mudança não altera a natureza da união estável porque a chamada formalização é mencionada pela própria legislação como uma providência facultativa. O termo declaratório ou a escritura pública não são atos constitutivos da união estável, como diz a lei, repita-se. No entanto, observa-se um impulsionamento legal para que se adotem essas medidas, haja vista que os efeitos jurídicos atribuídos à essa “união formalizada” não se estendem à união estável de fato.

 

Na linha do anteprojeto do novo Código Civil, adotada a providência facultativa do registro, os conviventes terão o seu estado civil alterado,11 nelas se aplicando as presunções relativas à filiação (art.1.597) e os efeitos patrimoniais (art.9º., §1º). Embora a redação do art.1.564-A induza ao entendimento de que a união estável é um ato fato jurídico, o art.1.564-C, parágrafo único, ressalta que o termo inicial declarado no registro será o marco para a retroatividade dos efeitos do casamento, em caso de conversão.12

 

Teme-se o esvaziamento da proteção para aqueles casais que vivem uma união estável sem a formalização. Estarão eles expostos ao risco de uma interpretação restritiva do Judiciário que, eventualmente, poderá negar efeitos jurídicos à sua união, argumentando que a falta de formalização reflete a ausência da intenção de estabelecer a união estável.

 

Outras questões mais formais são decorrentes dessa formalização:

 

  • O termo declaratório oficializado no registro civil pode ser utilizado para dissolver a união estável e, nesse aspecto, infringe-se mandamento constitucional segundo o qual medida provisória não pode legislar sobre matéria de direito processual (CF/88, art.62, §1º, I, alínea b).
  • O termo declaratório não é escritura pública e, no entanto, poderá realizar partilha de imóveis. Trata-se de uma exceção ao art.108, do Código Civil, cuja disposição afirma que a escritura pública é essencial à validade dos negócios jurídicos que visam à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior salário-mínimo vigente no País?
  • Uma vez que o termo declaratório é hábil pra escolha de qualquer regime de bens, na hipótese de conversão da união estável em casamento, a regra será a manutenção do regime escolhido. Assim, havendo o casal optado por um regime diverso da comunhão parcial no termo declaratório, o mesmo regime será aplicado ao casamento sem a necessidade de pacto antenupcial por escritura pública
  • “Como o termo declaratório é documento hábil para a escolha de qualquer regime de bens (separação de bens, participação final nos aquestos, comunhão universal), na conversão da união estável em casamento, o regime escolhido será mantido sem a necessidade de pacto antenupcial que só será exigido para os casos em que desejarem a aplicação de um outro regime de bens para o casamento (CC/02 arts.1.640 e 1.653). Portanto, poderá suscitar mudança de regime sem prévia discussão quanto à partilha e admitir-se-á, a aplicação de regime diverso do convencional sem pacto antenupcial.
  • Em caso de óbito, o termo declaratório de união estável é documento hábil para habilitação do companheiro sobrevivente como herdeiro? Eis o problema. O casal poderia não estar vivendo união estável com os seus pressupostos legais.  E assim, a união estável poderá ser questionada pelos interessados.

 

E quanto aos preços: será que a providência formalizadora é atrativa ou acessível à população mais pobre? Receia-se que não. No estado do Ceará, o custo para a formalização do casamento é de  R$389,05 enquanto o custo do termo declaratório com o registro é de R$222,10 e o da escritura declaratória, é de  R$252,86. A certificação eletrônica, conforme o provimento no.149/2023, do CNJ deve custar 50% do valor da habilitação para o casamento. Nas hipóteses de termo declaratório com a certificação eletrônica, somam-se os valores; assim como na escritura pública declaratória.

 

Cuide-se para que a medida não venha a desnaturar a união estável, ainda que a legislação ressalte a sua facultatividade. À margem continuarão aquelas pessoas a quem o constituinte queria prestigiar quando positivou a figura da união estável no texto constitucional. A quem a providência atenderá e a quem prejudicará? Essa é a reflexão.

 

__________

 

1 LOBO, Paulo Luiz Neto. Direito Civil: Famílias. 14. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2024, p.154.

 

2 MENEZES, Joyceane Bezerra de. União estável: conceito. In: União estável: aspectos materiais e processuais. MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). 1ed. Indaiatuba: Editora Foco, 2024, p. 34.

 

3 GOZZO, Débora; Santiago, Maria Carolina Nomura. Regime da separação legal de bens na união estável: impossibilidade de aplicação por analogia. Revista de Direito Civil Contemporâneo. v.33, p.4, out. /dez.2022.

 

4 MADALENO, Rolf. Direito de família. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p.455.

 

5 VELOSO, Zeno. União estável e o chamado namoro qualificado. Direito Civil: temas. Belém: ANOREG, 2018, p.296.

 

6 Marcos Bernardes de Melo adotou essa posição em artigo publicado no ano de 2010. Dizia ele que a união estável requer o “[…] consentimento, configurado na vontade determinante de formar uma união ao estilo do casamento, de viver como se tratasse de uma relação conjugal, compartilhando duas vidas, que antes transitavam separadas, agora, em uma real união de fato, onde cada um dos conviventes tem a exata dimensão e a natural capacidade de entender e, principalmente, querer viver como se casado fosse, e para isso o tempo é irrelevante. ” (MELO, Marcos Bernardes. Sobre a classificação do fato jurídico da união estável. In: Famílias no Direito Contemporâneo: Estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. ALBUQUERQUE, Fabíola Santos; EHRHARDT JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de (Coord.). Salvador: JusPodivm, 2010, p. 160-163.

 

7 MELO, Marcos Bernardes. Breves notas sobre o perfil jurídico da união estável. Revista Fórum de Dir. Civ. – RFDC, Belo Horizonte: ano 9, n. 24, p. 256, maio/ago. 2020.

 

8 MIRANDA, Pontes de. Coleção Tratado de Direito Privado: parte geral. São Paulo: Ed. RT, 2012, v.2. p.457.

 

9 ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL. Cartórios em números: 5ª edição 2023 – Especial Desjudicialização. Brasília: ANOREG-BR, 2023, p.93. Disponível aqui. Acesso em: 11 out. 2024.

 

10 ASSOCIAÇÃO DOS NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL. Cartórios em números: 5ª edição 2023 – Especial Desjudicialização. Brasília: ANOREG-BR, 2023, p.48. Disponível aqui. Acesso em: 11 out. 2024.

 

11 Art. 1.564-A. E´ reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, mediante uma convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida como família.

 

  • 3o E´ facultativo o registro da união estável, mas, se feito, altera o estado civil das partes para conviventes, devendo, a partir deste momento, ser declarado em todos os atos da vida civil.”

 

12 Art. 1.564-C. A união estável poderá converter-se em casamento, por solicitação dos conviventes diretamente no Cartório de Registro Civil, das Pessoas Naturais, após o oficial certificar a ausência de impedimentos, na forma deste Código. Parágrafo único. Ter-se-á como data do início da união que se pretende converter em casamento a do registro e em caso de união estável de fato a data declarada pelos interessados ao oficial.”

 

Fonte: Migalhas

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