Introdução
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 dispõe sobre uma vasta gama de direitos fundamentais, abordando diferentes dimensões da vida social e econômica, entre os quais se destaca a proteção à propriedade.
Essa garantia não se limita à propriedade tangível, mas se estende à propriedade intelectual, abrangendo as criações do intelecto humano e os direitos que delas derivam.
O reconhecimento da propriedade intelectual no âmbito constitucional demonstra o compromisso do legislador em assegurar o respeito e a valorização das produções intelectuais, essenciais para o desenvolvimento de uma sociedade que privilegia o conhecimento e a inovação.
Em um mundo em crescente complexidade tecnológica e interconexão global, a tutela desse direito revela-se imprescindível para harmonizar os interesses do criador com as demandas da coletividade.
O presente artigo tem por objetivo examinar a propriedade intelectual sob a perspectiva de seu status como direito fundamental, bem como discutir sua relevância no atual contexto jurídico e social, em que o equilíbrio entre a proteção individual e o bem comum se faz cada vez mais necessário.
Fundamento Constitucional e a Propriedade Intelectual no Contexto Internacional dos Direitos Humanos
A propriedade intelectual é protegida diretamente pela Constituição Federal, notadamente nos arts. 5º, XXVII e XXIX, que garantem a proteção das criações do espírito humano e a defesa dos direitos autorais e conexos. O art. 170, ao tratar da ordem econômica, também confere suporte ao papel da propriedade intelectual como um mecanismo de incentivo à inovação e ao desenvolvimento tecnológico. Vejamos:
Art. 5º, XXVII: “Aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras, transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei fixar”.
Art. 5º, XXIX: “A lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país”.
Art. 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: […] V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação”.
A DUDH – Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 também reconhece o direito à propriedade intelectual, principalmente em seu art. 27:
Art. 27, §2º da DUDH: “Toda pessoa tem direito à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística de que seja autora”.
Além da DUDH, o PIDESC – Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais reitera essa proteção, destacando que a propriedade intelectual também se insere no âmbito dos direitos sociais e econômicos.
Segundo Fiorillo (2022), a Constituição de 1988, ao organizar o Estado democrático de direito com base nos fundamentos da dignidade da pessoa humana, garante pela primeira vez na história constitucional brasileira a inviolabilidade do direito à propriedade. Tal garantia não se restringe apenas aos fundamentos do art. 1º, mas também aos direitos e garantias fundamentais, incluindo os direitos individuais e coletivos, conforme o inciso XXII, que assegura o direito de propriedade. Entretanto, essa proteção é condicionada ao cumprimento da sua função social, conforme previsto no art. 5º, inciso XXIII.
Há que se discutir a função social da propriedade intelectual, salientando que este direito não deve ser visto apenas sob a ótica da proteção dos interesses individuais dos autores ou inventores, mas também em relação ao seu impacto na sociedade como um todo. A propriedade intelectual deve servir a um propósito social, garantindo que os benefícios do progresso científico e cultural sejam acessíveis a todos, especialmente aos grupos mais vulneráveis. Os regimes jurídicos de proteção à propriedade intelectual devem ser avaliados quanto ao seu efeito sobre os direitos humanos, promovendo um equilíbrio entre os direitos de exploração comercial e os direitos sociais, como educação, saúde e cultura. Assim, a função social da propriedade intelectual implica uma responsabilidade dos Estados em assegurar que a proteção desse direito não comprometa o acesso da população a bens essenciais e ao conhecimento. (PIOVESAN, 2009)
Além disso, a incorporação da propriedade intelectual na constituição, juntamente com as obrigações sob os tratados internacionais de direitos humanos, expõe seu peso como um direito indispensável ao desenvolvimento social e econômico.
O fato de a propriedade intelectual ser contemplada tanto na CF/88 quanto nos padrões internacionais de direitos humanos, como a DUDH, a reivindica como uma ferramenta não apenas para garantir os interesses dos criadores, mas também para promover o acesso à informação e à cultura.
Portanto, essa estrutura legal consolida o direito de propriedade intelectual como um direito humano necessário para o equilíbrio de interesses entre criação, desenvolvimento, integração social e sustentabilidade, além de promover o respeito pela dignidade humana.
Direitos Humanos e Propriedade Intelectual
A conexão entre os direitos humanos e a propriedade intelectual encontra-se no fato de que a proteção ao fruto da criatividade humana não se trata apenas de incentivo ao desenvolvimento econômico, mas também de respeito à dignidade dos titulares desses direitos. O reconhecimento dessa relação é evidente na necessidade de se ponderar o direito exclusivo desses titulares e o interesse social, como estabelecido nas normas nacionais e internacionais.
A propriedade intelectual protege a criatividade humana, a inovação e a invenção e, portanto, salvaguarda os direitos à cultura e ao acesso ao conhecimento, ambos também tratados como direitos humanos fundamentais. O acesso ao conhecimento e à cultura, entretanto, precisa ser equilibrado com a proteção de quem cria, inventa e inova.
Ao se discutir a proteção da propriedade intelectual como um direito fundamental no Brasil, também é imprescindível considerar a necessidade de incluir os direitos coletivos de grupos tradicionais, como povos indígenas, quilombolas e outras comunidades detentoras de saberes culturais e conhecimentos tradicionais.
Esses grupos frequentemente possuem um amplo conjunto de práticas e tradições que, por sua natureza, não se encaixam facilmente nos moldes clássicos da propriedade intelectual, mas que igualmente merecem proteção jurídica.
A inclusão desses grupos nos processos relativos à propriedade intelectual não é apenas uma questão de justiça, mas também de respeito à diversidade cultural e ao patrimônio imaterial do país.
Nessa conjuntura, destacam-se institutos como as indicações geográficas e as marcas coletivas, que exercem uma importante função ao oferecer uma proteção que transcende o interesse individual, oferecendo diferenciação e valor à coletividade legitimada ao seu uso.
As indicações geográficas (IGs) têm se mostrado um mecanismo eficaz para assegurar o desenvolvimento sustentável de diversas regiões do Brasil, promovendo empoderamento, autonomia e autoestima às comunidades locais. Além disso, garantem retorno econômico ao legitimar o uso exclusivo da IG por aqueles que produzem na região delimitada e consequentemente detêm o conhecimento tradicional associado à produção, reforçando o valor cultural e econômico de tais atividades.
Como dispõe o art. 176 da lei de propriedade industrial (lei 9.279/96), as indicações geográficas, incluindo as denominações de origem, são definidas como a designação de um produto cujas qualidades ou características se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluindo fatores naturais e humanos.
Um exemplo claro de como a proteção da propriedade intelectual está relacionada aos direitos humanos é o caso da região Matas de Rondônia, reconhecida como DO – Denominação de Origem desde 2021.
A região abrange 15 municípios do estado de Rondônia e é conhecida pela produção de um café singular, o “Robustas Amazônicos”. Após o registro da denominação de origem, as transformações positivas já são notórias, como o aumento do turismo local, a inclusão da região em projetos de grande visibilidade, como o projeto Tribos, da marca de cafés Três Corações, que adquire 100% da produção do povo indígena Paiter Suruí, e o reconhecimento da qualidade do café em diversas premiações internacionais. Além disso, o café “Robustas Amazônicos” já é exportado, aumentando o retorno econômico para a região.
O registro da DO Matas de Rondônia também possui um papel importante na luta pela preservação ambiental na Amazônia e no fomento ao cultivo sustentável. De acordo com o art. 177 da lei de propriedade industrial, o produto que faz jus a uma denominação de origem deve ter suas qualidades ou características intrinsecamente ligadas ao meio geográfico. No caso de Matas de Rondônia, isso significa que o café só pode ser produzido dentro das especificações técnicas que respeitam a manutenção da floresta e o equilíbrio ambiental da região. Tal proteção jurídica garante que apenas os produtores situados na região delimitada e que seguem os requisitos do caderno de especificações técnicas possam utilizar a denominação “Matas de Rondônia” em seus produtos, agregando valor à produção local, promovendo o desenvolvimento sustentável e mantendo a floresta em pé.
Além das IGs, outro instituto relevante previsto na lei de propriedade industrial são as marcas coletivas, mencionadas no art. 123, inciso III, que permitem que grupos utilizem uma mesma marca para proteger negócios de uma coletividade. Esse instituto, assim como as IGs, contribui para a valorização de comunidades tradicionais e a consolidação de sua autonomia econômica.
Um bom exemplo de marca coletiva que representa essa valorização dos saberes tradicionais é a Aíra, que possui como titular a ASARIAN – Associação das Artesãs Ribeirinhas de Santarém, uma entidade representativa de um grupo de mulheres artesãs que buscou criar uma identificação para seu produto: Cuias artesanais da Amazônia consideradas patrimônio cultural do Brasil.
Ainda falando de exemplos exitosos de empoderamento de comunidades por meio da proteção de suas regiões, destacam-se a indicação de procedência da região do Jalapão, reconhecida pela renomada produção de artesanato em capim dourado; a indicação de procedência de goiabeiras, que é sinônimo das tradicionais panelas de barro no Espírito Santo; e a Denominação de Origem da Terra Indígena Andirá-Marau, que assegura a qualidade do guaraná produzido no Amazonas e no Pará. Essas iniciativas não apenas valorizam as identidades culturais locais, mas também promovem o desenvolvimento econômico sustentável, reforçando a importância da proteção da propriedade intelectual como um mecanismo de inclusão para essas comunidades.
A importância da propriedade intelectual como direito fundamental também pode ser demonstrada através das marcas, ativos intangíveis que desempenham um papel essencial na promoção da dignidade e do empoderamento de seus titulares, especialmente em contextos de vulnerabilidade socioeconômica.
Previstas no art. 122 da lei de propriedade industrial (lei 9.279/96), as marcas são sinais distintivos que permitem identificar produtos ou serviços no mercado, representando um elemento-chave para micro e pequenos empresários. Para essas camadas da população, muitas vezes desprovidas de informações e conhecimentos sobre os direitos relacionados à propriedade intelectual, a propriedade de uma marca não só oferece proteção jurídica, mas também cria oportunidades para fomentar seus negócios, facilitando o acesso ao mercado e aumentando a visibilidade de suas atividades.
O direito ao desenvolvimento econômico, assim como o direito ao trabalho digno, estão intrinsecamente ligados à proteção das marcas, uma vez que permitem a criação de meios de subsistência e promovem a autonomia dos indivíduos. Ao obter a proteção de uma marca, o micro e pequeno empresário pode agregar valor ao seu empreendimento, diferenciando-o da concorrência e conquistando a confiança dos consumidores. Além disso, a marca registrada possibilita a exploração econômica por meio de licenciamentos ou franquias, o que pode gerar fontes de renda futuras e garantir maior sustentabilidade ao negócio.
Nesse sentido, a marca não é apenas um símbolo comercial; é um instrumento de inclusão que, ao assegurar a proteção dos direitos de propriedade intelectual, contribui para a realização dos direitos fundamentais ao trabalho, à dignidade e ao desenvolvimento econômico. O acesso à proteção das marcas, assim como a disseminação de conhecimento sobre os mecanismos de proteção oferecidos pela legislação, é, portanto, um passo importante na redução de desigualdades sociais e econômicas.
Conclusão
Por fim, é possível concluir que a propriedade intelectual, além de constituir um direito individual, deve ser compreendida como um direito fundamental no contexto de um Estado que visa o bem-estar social e o desenvolvimento econômico.
Sua proteção promove o incentivo à inovação, à criatividade e ao desenvolvimento tecnológico, ao mesmo tempo em que respeita e valoriza o titular e seu direito à dignidade. A relevância da propriedade intelectual vai além do plano econômico, sendo um elemento chave para o desenvolvimento de políticas públicas inclusivas, que contemplem o acesso ao conhecimento e a proteção de culturas tradicionais.
Dessa forma, torna-se indispensável que a legislação e as políticas públicas reconheçam o papel central da propriedade intelectual no fortalecimento da cidadania e na construção de uma sociedade mais justa e igualitária, onde o acesso ao conhecimento e à inovação sejam garantidos a todos e todas, sem abrir mão da valorização e da proteção dos direitos de quem cria.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em: 29 de set. de 2024.
BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre os direitos autorais e dá outras providências. Disponível aqui. Acesso em: 29 de set. de 2024.
BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula direitos e obrigações relativos à propriedade industrial. Disponível aqui. Acesso em: 29 de set. de 2024.
FIORILLO, Celso Pacheco. Função Social das Empresas Transnacionais em Face do Direito Ambiental Constitucional Brasileiro. 2022.
IG MATAS DE RONDÔNIA, DataSebrae, disponível aqui. Acesso em: 30 de set. de 2024.
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível aqui. Acesso em: 29 de set de 2024.
ONU. Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, 1966. Disponível aqui. Acesso em: 29 de set. de 2024.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e propriedade intelectual. 2009.
PROJETO TRIBOS, Cafés Especiais Paiter Suruí. Disponível aqui. Acesso em: 30 de set. de 2024.
Fonte: Migalhas
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