Considerado “o mais brasileiro dos contratos” por sua ampla utilização [1], o compromisso de compra e venda de imóvel (CCV) é frequentemente alvo de debate nas cortes nacionais. Dentre as numerosas questões dele decorrentes, constitui objeto do presente estudo os efeitos decorrentes da utilização (ou não) do imóvel pelo promissário comprador nas hipóteses de extinção do referido contrato, por causa imputável ou não a uma das partes.
Busca-se aferir especificamente se é cabível o pagamento de alugueres (i) pelo promissário comprador, quando já imitido na posse do imóvel e, ainda, (ii) pelo promitente vendedor, quando não entrega o imóvel na data acordada. A análise será realizada em contraposição ao posicionamento do Superior Tribunal de Justiça em relação a cada situação.
Extinção do compromisso de compra e venda e utilização (ou não) do imóvel pelo comprador
Na situação (i), o comprador é imitido na posse do imóvel antes do pagamento integral do preço. Nesses casos, o STJ entende que, independentemente da causa da extinção, o promitente vendedor tem direito ao recebimento de alugueres pela utilização do imóvel pelo promissário comprador durante a execução do contrato, até o momento da devolução do imóvel, sob o fundamento da vedação ao enriquecimento sem causa [2] (artigo 884 do CC) — apesar de, por vezes, se referir a tais verbas como “indenização” [3].
Assim, nas hipóteses em que a extinção é fundada em inadimplemento de qualquer das partes (resolução por inadimplemento — artigo 475 do CC) é devida a restituição do valor correspondente à utilização do imóvel, segundo o STJ. A conclusão traz consequências importantes, como a possibilidade de cumulação do valor relativo à utilização do imóvel com cláusula penal compensatória, cuja finalidade é a reparação dos danos [4].
Na situação (ii), o comprador não é imitido na posse do imóvel na data acordada, em razão do inadimplemento do promitente vendedor. A causa superveniente da extinção do compromisso é, na visão do STJ, relevante nesses casos: entende o Tribunal que o montante devido ao promissário comprador pela não utilização do imóvel, em decorrência do descumprimento contratual pelo promitente vendedor, configura indenização, mais especificamente, lucros cessantes, que devem ser presumidos [5].
Nesse particular, o Tribunal oscila a respeito da presunção dos lucros cessantes na hipótese de resolução de compromisso de compra e venda de imóvel não edificado, havendo julgados no sentido de que não seria cabível a presunção [6] e, em sentido oposto, de que se aplicaria a presunção [7]. Recentemente, ao julgar o AgInt no REsp. nº 2.015.374-SP, o STJ afastou a presunção sob o fundamento de que, no caso, os lucros cessantes seriam decorrentes de “especulação imobiliária”, gerando, portanto, “mera expectativa de ganho futuro em relação aos imóveis adquiridos”.
Expostos os principais grupos de casos objeto do presente estudo, importa, agora, analisar de forma crítica o entendimento do STJ a respeito do arbitramento de alugueres pela utilização (ou não) do imóvel pelo promissário comprador.
Utilização do imóvel pelo comprador e restituição por enriquecimento injustificado
Há, como visto, diversos julgados do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que, extinto o compromisso de compra e venda, independentemente de inadimplemento de qualquer das partes, e havendo o promissário comprador utilizado o imóvel durante o período de execução do contrato, é cabível o pagamento ao promitente vendedor do valor correspondente a tal utilização, com fundamento na “vedação ao enriquecimento sem causa”.
É comum ainda a referência a tal verba como sendo indenizatória. De fato, entre “o dano derivado do ato ilícito e o enriquecimento injustificado há de comum serem diferenças do patrimônio de outrem, no momento a e no momento b”. Em ambos, cogita-se de alteração no estado de coisas entre o sujeito ativo e o sujeito passivo [8].
Trata-se, no entanto, de figuras diferentes. “In-denizar” consiste, nas palavras de Judith Martins-Costa, na “ficção jurídica pela qual, mediante a reposição ao estado anterior se torna indene, ‘sem dano [9]’”. Busca-se, pela via indenizatória, conduzir o lesado à situação hipotética em que ele estaria não fosse o evento lesivo [10].
A vedação ao enriquecimento injustificado circunscreve-se, por sua vez, à análise da alocação jurídica dos bens, isto é, “à “justificativa para retenção do enriquecimento na esfera patrimonial de uma e não de outra parte” [11], seja pela aquisição de um direito ou de uma situação jurídica protegida que implica uma vantagem patrimonial (aumento do ativo), seja por meio da diminuição do passivo [12], com o afastamento de despesas ou eventuais perdas, sendo irrelevante, para a caracterização do instituto, a ocorrência de dano [13].
Segundo Pontes de Miranda, trata-se de fonte de obrigação que não se pode subsumir no ato jurídico nem no ato ilícito, caracterizando-se pela “atribuição patrimonial defetiva de causa, ou, em geral, de justificação” [14]. A existência de negócio jurídico válido e eficaz, portanto, constitui justa causa para o enriquecimento [15], razão pela qual a restituição recíproca das prestações já realizadas, nas hipóteses de resolução do contrato, não se funda no enriquecimento sem causa [16].
Como bem afirma Menezes Leitão, “a celebração do contrato com determinada pessoa implica sempre a assunção do risco da insolvência da outra parte e a sujeição nesse caso ao regime do concurso de credores, cujas regras não podem ser desvirtuadas através do recurso à acção de enriquecimento sem causa” [17]. O uso retórico da figura deve ser evitado, bem assim a sua utilização como princípio dissociado dos pressupostos do instituto [18].
Isso não significa que não haja, no ordenamento jurídico, instrumentos para a desconstituição de eventuais desequilíbrios em contratos comutativos, como na hipótese de resolução, mas não se afigura correto afirmar que tal recurso se funde no enriquecimento injustificado [19]. Cláudio Michelon destaca que o instituto do enriquecimento sem causa não constitui princípio subjacente à noção de equilíbrio contratual, instrumentalizando, ao revés, o princípio da conservação estática dos patrimônios [20].
Nesse sentido, nos compromissos de compra e venda em que se acorda a imediata transferência da posse ao promissário comprador, o próprio contrato constitui justificação da utilização do imóvel — mesmo antes do pagamento integral do preço e ausente a necessária correspectividade entre esse pagamento e a utilização do bem.
Assim, assumindo-se que, da falta de contraprestação, não se pode deduzir a ausência de causa do que foi prestado, pois a prestação recebida em virtude de negócio jurídico existente, válido e eficaz tem, necessariamente, causa a justificar sua retenção pelo receptor, não se pode fundamentar o arbitramento de alugueres pela utilização do imóvel na vedação ao enriquecimento sem causa. O regime que se ocupa da ausência de contraprestação, portanto, é o do inadimplemento das obrigações [21], e não o do enriquecimento sem causa.
Deve-se perquirir se a resolução do contrato é imputável ao promitente comprador, para efeito de condenação ao pagamento dos alugueres durante o tempo em que permaneceu na posse do imóvel. Ainda que o promitente comprador deva restituir o imóvel ocupado, em todas as hipóteses de resolução contratual, o montante devido a título de alugueres somente podem ser atribuídas ao comprador nos casos em que este tenha dado causa à resolução do contrato [22].
Não se aplica, nesta hipótese, como já afirmado, o regramento relativo ao enriquecimento sem causa, eis que não se pode qualificar de “sem causa” a posse exercida pelo promitente comprador em virtude de contrato existente, válido e eficaz [23]. Tampouco a resolução tem o efeito de “apagar” a obrigação, como se jamais tivesse existido, havendo, em realidade, verdadeira modificação da relação contratual [24].
Parece não ser acertado o entendimento do STJ [25] no sentido de serem devidos os alugueres pelo promitente comprador, desde a data em que a posse lhe foi transferida, mesmo quando constatado o inadimplemento da incorporadora/construtora, sob o fundamento da necessidade de retorno das partes ao estado anterior.
O fator que impulsiona a restituição do bem não é o enriquecimento sem causa, mas a ineficácia superveniente que despontou com o acionamento do instrumento resolutivo [26], enquanto o valor devido a título de alugueres somente poderá ser atribuído ao promitente comprador nas hipóteses de inadimplemento a ele imputável.
*esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma 2 — Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e Ufam).
[1] AZEVEDO JR., José Osório de. Compromisso de compra e venda. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 15.
[2] AgInt no ARESP n. 191.430-DF, 4ª Turma, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 09/03/2017, REsp. n. 955.134/SC, 4ª Turma, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 16/08/2012; AgInt nos EDcl no REsp. 1.811.724-GO, 4ª Turma, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 24/06/2024.
[3] AgInt. no REsp. 1.126.477-RS, 4ª Turma, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Dje. 07/06/2018; AgInt no ARESP n. 191.430-DF, 4ª Turma, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 09/03/2017.
[4] AgRg no REsp. 1.179.783-MS, 4ª Turma, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 19/04/2016, AgReg no AREsp. 394.466/PR, 4ª Turma, rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 03/12/2013.
[5] Por todos: REsp n. 1.729.593/SP, Segunda Seção, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 25/09/2019.
[6] AgInt no REsp. n. 2.015.374-SP, 4ª Turma, rel. Min. Marco Buzzi, j. 02/04/2024.
[7] AgInt no REsp. n. 1.818.212/SP, 3ª Turma, rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 22/03/2021.
[8] PONTES DE MIRANDA, F.C. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, t. 26, p. 122.
[9] MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana Souza. Usos e abusos da função punitiva. R. CEJ, Brasília, n. 28, p. 15-32, jan./mar. 2005, p. 17
[10] STEINER, Renata. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018, p. 152-153.
[11] CID, Henrique Stecanella. Restituição do enriquecimento sem causa. São Paulo: Almedina, 2024, p. 108-109.
[12] MICHELON JR., Cláudio. Direito restitutório. São Paulo: RT, 2007, p. 185.
[13] CID, Henrique Stecanella. Restituição do enriquecimento sem causa…, cit., p. 103.
[14] PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, t. 26, p. 122-128.
[15] Para uma crítica do enunciado 188 do CJF (“A existência de negócio jurídico válido e eficaz é, em regra, uma justa causa para o enriquecimento”), cf. CID, Henrique Stecanella. Restituição do enriquecimento sem causa…, cit., p. 126.
[16] Segundo Pontes de Miranda, tampouco a restituição decorrente da anulação do negócio jurídico se fundaria no enriquecimento sem causa, tendo em vista que, até a sentença desconstitutiva, o negócio jurídico produziria efeitos e, portanto, justificaria a existência da dívida (PONTES DE MIRANDA, F. C. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, t. 26, pp. 135-136).
[17] MENEZES LEITÃO, Luís Manuel Teles de. O enriquecimento sem causa no direito civil. Coimbra: Almedina, 2005, p. 543.
[18] CID, Henrique Stecanella. Restituição do enriquecimento sem causa…, cit., p. 85.
[19] Em sentido contrário, cf. SILVA, Rodrigo da Guia. Enriquecimento sem causa: as obrigações restitutórias no direito civil: São Paulo: Thomson Reuters, 2018, p. 284.
[20] MICHELON JR., Cláudio. Direito restitutório…, cit., p. 184; NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual: requisitos e efeitos. São Paulo: Thomson Reuters, 2021, p. 622.
[21] Com a resolução do compromisso de compra e venda, não se deve assumir que todos os efeitos produzidos pelo contrato sejam reputados como se jamais tivessem ocorrido. Enquanto parte da doutrina advoga a tese de que o efeito extintivo retroativo da resolução atinge a prestação principal e os deveres acessórios, mas não extingue a relação contratual global, que serve como fundamento para o dever de restituir e indenizar (AGUIAR JR., Ruy Rosado de. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor (resolução). Rio de Janeiro: Aide, 2003, p. 258), outros sustentam que a relação de liquidação acarreta apenas uma modificação não retroativa e parcial da relação contratual, não se aplicando o art. 182 do CC/02 à resolução dos contratos (MARCELO VIEIRA VON ADAMEK; ANDRÉ NUNES CONTI. Notas sobre a relação de liquidação dos contratos resolvidos. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 36, n. 10, p. 253–284, 2024, p. 275).
[22] “(…) também não se há de pensar em princípios concernentes ao enriquecimento injustificado, porque há razão para que o figurante culpado ou em mora tenha de restituir, integralmente e quaisquer que sejam as vicissitudes, o que lhe foi prestado. Pelo uso do que foi recebido, e. g. maquinaria, cavalo, automóvel, tem de ser prestado o valor comum do uso ao tempo em que usou (…)” (PONTES DE MIRANDA, F.C. Tratado de direito privado. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1984, t. 25, p. 317-318).
[23] CID, Henrique Stecanella. Restituição do enriquecimento sem causa…, cit., p. 126.
[24] COELHO, Matheus Preima. Frutos percebidos devem ser devolvidos por inadimplemento contratual? In: Direito Civil atual. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-set-09/frutos-percebidos-devem-ser-devolvidos-por-inadimplemento-contratual/, acesso em: 22/11/2024.
[25] AgInt no REsp n. 1.601.141/SP, 4ª Turma, rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 5/6/2023.
[26] “Assim sendo, a restituição não se confunde com o enriquecimento sem causa, que não é aplicável na resolução contratual por inadimplemento. São institutos diversos, cujos requisitos e extensão configuram-se díspares. É equivocado atribuir equivalência às configurações da restituição e do enriquecimento em causa, pois assentam, em extremos distintos: o enriquecimento sem causa é o vento, a mola propulsora e a restituição, a consequência da aplicação desse remédio” (NANNI, Giovanni Ettore. Inadimplemento absoluto e resolução contratual…, cit. p. 639).
Fonte: Conjur
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