A baixa de uma empresa no registro público deveria ser, no mínimo, um ponto de inflexão processual, e não um porto seguro para a evasão de responsabilidades. Entretanto, o que deveria ser uma etapa de resolução ordenada de débitos muitas vezes se transforma em um labirinto jurídico, em que credores são deixados à deriva enquanto sócios de má-fé encontram uma zona de conforto processual.
Imagine um credor que, após anos tentando receber uma dívida, descobre que a empresa devedora foi extinta. Ele recorre ao Judiciário buscando redirecionar a execução para os sócios, mas depara-se com a exigência de instaurar um incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Tudo isso, mesmo com a empresa já formalmente inexistente. Esse cenário reflete uma prática crescente nos tribunais, onde decisões automatizadas prejudicam credores ao insistirem em formalidades que ignoram a essência da questão: se a empresa não existe, não há personalidade jurídica a ser desconsiderada.
Lógica que não se sustenta: por que desconsiderar o inexistente?
A insistência na desconsideração da personalidade jurídica para redirecionar execuções em casos de empresas extintas é uma contradição em termos. Decisões que adotam essa linha ignoram o fato elementar de que a empresa não mais possui personalidade jurídica.
O artigo 110 do Código de Processo Civil prevê, em caso de morte de uma das partes, a sucessão processual por seus herdeiros. Por analogia, a extinção de uma pessoa jurídica permite que seus sócios assumam as responsabilidades remanescentes, especialmente em situações de liquidação irregular.
Esse entendimento é bem exemplificado no julgamento do Tribunal de Justiça de São Paulo (Agravo de Instrumento n.º 2041801-90.2022.8.26.0000), onde o relator destacou: “A baixa da empresa em seu registro oficial retira-lhe a capacidade jurídica para figurar como parte no processo, tornando desnecessária a instauração do incidente”.
Persistir na exigência de um incidente formal é uma leitura engessada e contrária à realidade prática. Em última análise, essa abordagem não apenas atrasa a execução, mas cria um precedente perigoso: a dissolução formal da empresa pode se tornar uma estratégia legítima de blindagem patrimonial, beneficiando maus pagadores.
Prejuízo aos credores: burocracia como aliada da má-fé
Decisões automatizadas que condicionam a responsabilização dos sócios à desconsideração da personalidade jurídica impõem aos credores um ônus desproporcional. Em um cenário onde a empresa já não existe, exigir a comprovação de confusão patrimonial ou desvio de finalidade é, muitas vezes, criar uma barreira intransponível ao exercício do direito de crédito.
Conforme consolidado pela Súmula 435 do Superior Tribunal de Justiça, a ausência de liquidação formal deveria ser suficiente para presumir a dissolução irregular da empresa. A baixa sem quitação das dívidas não é apenas um ato omissivo; é frequentemente indicativa de má-fé.
No REsp n.º 1.652.592/SP, o ministro Paulo de Tarso Sanseverino pontuou: “A extinção da pessoa jurídica […] decorrendo daí a sucessão dos seus sócios, não exige qualquer demonstração de abuso, mas apenas a transmissibilidade da obrigação em questão”. Em outras palavras, quando uma empresa é extinta, as obrigações não desaparecem — apenas mudam de titular.
Confusão entre direito e formalismo
Exigir o incidente de desconsideração em situações de baixa da empresa é confundir o processo com o direito material. O papel do processo não é criar obstáculos, mas garantir que as obrigações sejam cumpridas.
No julgamento da Apelação nº 0000144-73.2022.8.16.0133, o TJ-PR reconheceu: “A extinção da pessoa jurídica autoriza a substituição processual pelos sócios em aplicação analógica das disposições do art. 110 do CPC”. Essa abordagem privilegia o equilíbrio, ao permitir que os credores busquem seus direitos de forma célere, sem o ônus adicional de provar aquilo que já está implícito na extinção irregular da empresa.
Realidade ignorada pela justiça automatizada
A insistência em soluções formais e engessadas perpetua a sensação de impunidade. Sócios que se apropriam indevidamente dos bens da empresa encontram no formalismo do incidente de desconsideração um refúgio seguro. Enquanto isso, os credores — frequentemente pequenos empresários ou trabalhadores — enfrentam um sistema que prioriza a burocracia em detrimento da justiça.
A doutrina é clara: a boa-fé processual não pode ser uma via de mão única. Se credores são obrigados a respeitar ritos e prazos, espera-se do Judiciário uma postura proporcional e conectada à realidade, especialmente em casos em que há evidências de dissolução irregular.
Justiça mais ágil e eficaz
A substituição do polo passivo em casos de empresas extintas não é apenas uma solução prática; é uma exigência ética e jurídica. Quando a empresa deixa de existir, não há personalidade jurídica a ser desconsiderada — há apenas um conjunto de obrigações pendentes que precisam de uma resposta eficiente.
Decisões automatizadas, que insistem na desconsideração da personalidade jurídica em vez de aplicar a substituição processual, representam um retrocesso. O rigor processual não deve ser confundido com burocracia paralisante.
A jurisprudência já aponta o caminho: a substituição do polo passivo é o meio mais eficaz para proteger o credor, sem sacrificar os princípios da boa-fé e da celeridade. O desafio agora é adotar essa postura de forma consistente, garantindo que o Direito continue sendo um instrumento de justiça, e não um escudo para quem age de má-fé.
Fonte: Conjur
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