O provocativo título desta coluna justifica-se na medida em que a votação começou no pior cenário possível para as big techs. Após a leitura dos relatórios e as sustentações orais de partes e amici curiae, os ministros Dias Toffoli e Luis Fux proferiram seus votos nos dois recursos extraordinários1 em que é discutida a regra de remoção, por parte dos provedores de aplicações de internet, de conteúdo produzido e postado por terceiros. Na sequência, o presidente do STF, ministro Roberto Barroso, pediu vista e prometeu retomar o julgamento na próxima semana.
Os dois primeiros votos declararam a inconstitucionalidade do art. 19 do Marco Civil da Internet (lei 12.965/14). Os ministros Toffoli e Fux entenderam – de forma resumida – que as plataformas devem remover conteúdo produzido por terceiros tão logo notificadas por algum ofendido, a conhecida regra do notice and take down, que tão bem funciona para grandes gravadoras e estúdios de cinema e TV. Neste ponto, Fux definiu sua proposta como uma inversão da regra atual: “o ofendido notifica e a plataforma retira o conteúdo do ar. Se quiser republicar, a empresa (provedor) que judicialize, não o ofendido”.
Traçando uma comparação com o direito processual civil – já que o ministro Luiz Fux é respeitado processualista – pode-se dizer que a proposta por ele formulada gera efeitos semelhantes à concessão de uma tutela de evidência2, instituto no qual inverte-se o ônus de arcar com o tempo (e a demora) do processo. Normalmente, quem sofre com o tempo do processo é o autor, que depende da citação do réu e de todo o trâmite processual para buscar satisfazer seu direito. Concedida a evidência, especialmente no início do processo, o tempo passa a correr a seu favor e a demora então recai sobre os ombros do réu.
Como explica José Roberto dos Santos Bedaque, na tutela da evidência “as circunstâncias justificam a inversão das consequências suportadas em regra pelo autor, em razão da demora do processo”3. É o que propõe Fux, relator do RE 1.057.258, ao afastar a necessidade de que o ofendido contrate advogado, ajuíze a ação, busque a concessão de liminar e, se e quando concedida, o provedor seja intimado para cumprir a ordem. Tudo isso enquanto o conteúdo ofensivo permanece online e compartilhado.
Dias Toffoli foi além. Não apenas propôs a regra geral de responsabilização civil subjetiva dos provedores de internet após notificação pelo ofendido, como estabeleceu uma responsabilidade civil objetiva e independente de notificação em diversos casos por ele enumerados, entre os quais crimes contra o Estado Democrático de Direito, racismo ou conteúdo proveniente de contas inautênticas (os perfis falsos)4.
Ainda é cedo para dizer que a corrente pela inconstitucionalidade do artigo 19 prevalecerá. Restam nove votos e o próximo a votar, ministro Barroso, tem maior proximidade com as big techs, as quais inclusive convidou publicamente para contribuírem com o STF apresentando soluções de inteligência artificial para resumir processos e que permitam que os diferentes sistemas de processos eletrônicos sejam integrados5.
Mas, se antes do início do julgamento diversos provedores de aplicações entendiam que poderiam sair vitoriosos, com a manutenção da regra atual, parte deles hoje já passa a enxergar uma interpretação conforme que aumente as hipóteses onde basta a notificação extrajudicial e não mais uma ordem judicial de remoção como uma alternativa viável.
Este cenário tem boas chances de prevalecer, principalmente porque a regra é totalmente viável de ser implementada e também porque, com o passar dos anos, o art. 19 do Marco Civil da Internet acabou ganhando um alcance que não estava previsto originariamente, servindo para proteger até anúncios de produtos ilegais ou falsificados, algo que destoa totalmente do “intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura”, expresso naquele dispositivo legal.
A importância do contencioso estratégico
Seja qual for o resultado final, a decisão da Suprema Corte nestes dois recursos extraordinários com repercussão geral será aplicada por juízes e tribunais em todo país e terá alcance muito além das partes diretamente envolvidas. Aqui, vale uma reflexão sobre a importância de pensar o Contencioso de forma estratégica, procurando antever possíveis consequências negativas.
A tarefa não é fácil, mas mostra-se cada vez mais essencial. No meio de centenas ou milhares de processos e recursos em que se discutiu efetivamente liberdade de expressão, críticas sérias que não deveriam ser removidas, conteúdos realmente importantes e de grande impacto social, chegaram ao STF dois casos de Juizados Especiais Cíveis cujos temas em discussão não deveriam sequer ter sido judicializados ou, quando muito, resolvidos definitivamente nas instâncias ordinárias.
Os recursos em julgamento tratam: i) de uma pessoa que solicitou a remoção de um perfil falso em rede social com seu nome e fotografia e que ofendia terceiros de seu círculo familiar e de amizades e ii) de uma comunidade, também de rede social, onde o conteúdo se limitava à ridicularização de uma professora.
Como se verificou nos questionamentos feitos pelos ministros durante as sustentações orais e nos votos já proferidos, as plataformas envolvidas teriam argumentos mais sólidos para sustentar seus pontos de vista – alguns deles muito bons – se os recursos levados a Brasília tivessem sido interpostos em casos selecionados com maior rigor.
Bloqueio do WhatsApp
Com a suspensão da votação dos dois recursos extraordinários pelo pedido de vista, foi apregoada na sessão de julgamentos desta quarta-feira (11/12) a ADPF 403, em que se discute a possibilidade de ordens judiciais localizadas determinarem bloqueio do WhatsApp nacionalmente. O ministro Flávio Dino – que não vota no mérito da questão6, mas pode votar na medida liminar deferida, que ainda está pendente de confirmação pelo Plenário – demonstrou inconformismo com trechos dos votos dos ministros Edson Fachin e Rosa Weber, no sentido de que ordens judiciais não poderiam determinar o rompimento ou o enfraquecimento de comunicações protegidas por criptografia.
No entender de Dino, decisões judiciais não podem se submeter à tecnologia, mas sim o contrário, a tecnologia é que deve respeitar leis e ordens judiciais. Todavia, como o ministro Alexandre de Moraes informou que pediria vista também da confirmação da liminar e a traria para julgamento juntamente com o mérito da ADPF, Flávio Dino acabou não proferindo voto, optando por aguardar o voto-vista. Um dado relevante foi a afirmação de Moraes no sentido de que, nas eleições de 2022, o WhatsApp teria colaborado com a Justiça Eleitoral e tomado medidas efetivas de combate à desinformação. Não é pouca coisa, ainda mais vindo de Alexandre de Moraes, o próximo ministro a votar nesta questão.
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1 São eles, o RE 1.037.396, envolvendo o Facebook, e o RE 1.057.258, que tem como parte o Google. Tratamos dos dois casos em nossa última coluna. (Disponível aqui)
2 A tutela da evidência, uma das modalidades de tutela provisória, está disciplinada no artigo 311 do CPC.
3 BEDAQUE, José Roberto dos Santos. In O novo Código de Processo Civil – questões controvertidas (vários autores). “Tutela provisória: considerações gerais”. São Paulo: Gen-Atlas, 2015, p. 260.
4 A íntegra do voto do ministro Dias Toffoli pode ser conferida aqui (acesso em 12/12/2024).
5 Vide reportagem publicada em Migalhas em outubro de 2023. (Disponível aqui)
6 O ministro Flávio Dino não votará no mérito porque substituiu no STF a ministra Rosa Weber, que já proferiu voto na ADPF.
Fonte: Migalhas
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