A leitora e o leitor talvez se lembrem de uma época na qual se falar em arbitragem no poder público, em arbitragem em contratos administrativos era quase um palavrão. Época em que se falava “como assim, arbitragem no poder público? Meu Deus, por favor, o poder público é baseado no critério da supremacia do interesse público, não há que se transacionar com questões de interesse público.” [1]

E isso foi gradual, gradativamente, paulatinamente, galgando espaço na legislação brasileira e hoje a gente praticamente não questiona mais que haja algum tipo de consensualidade no Direito Administrativo, não só em matéria contratual, mas no direito público, no Direito Administrativo em geral. Por que trago essa reflexão? Para que possamos perceber como determinados dogmas podem, devem e merecem ser revistos e revisitados. Algo que 20 anos atrás era praticamente uma heresia, hoje é visto com naturalidade.

Alguém que viesse questionar hoje, de uma forma mais veemente, a validade da arbitragem no poder público talvez não encontrasse tanto eco quanto encontraria duas décadas atrás. Penso que é exatamente nesse ponto que nós estamos agora, em matéria de consensualidade no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade. Penso que estamos exatamente nesse ponto de virada, nesse turning point, nesse momento a partir do qual, passado o choque inicial de se deparar com acordos, consensos, câmaras de negociação em âmbito de controle concentrado de constitucionalidade, podemos começar a discutir, afinal de contas, limites e desafios.

Creio que, em primeiro lugar, é preciso trazer sobre essa temática uma questão que caracteriza a sociedade atual: o pluralismo, do qual decorre a existência de desacordos morais razoáveis. Se se perguntar a todos nós, quem é a favor da eutanásia ou contra essa prática, por exemplo? Teríamos uns tantos a favor, outros tantos contrários, e todos iriam provavelmente bradar o mesmo argumento, a dignidade humana.

Essa é uma característica social que já na década de 70 do Século passado um sociólogo do direito do qual eu gosto bastante, Niklas Luhmann, já abordava. A sociedade atual não consegue mais se unificar com base em valores substantivos, materiais, em princípios universalizantes. Não existem mais decisões morais que unifiquem completamente a sociedade. Numa sociedade pluralista, hiperindividualizada, é muito difícil, senão impossível, encontrar um acordo moral que seja abrangente e unificador.

Por que com a constitucionalidade tem que ser diferente? Por que a constitucionalidade, num mundo complexo, tem que ser um conceito simples de “totalmente constitucional” ou “completamente inconstitucional”? Arrisco-me a dizer que isso não existe mais. Não estou dizendo que isso seja bom ou que seja ruim, mas é uma constatação, quase uma análise de sociologia jurídica. Não é assim que acontece mais, e já há algum tempo.

Então, nessa sociedade pluralista e complexa, é preciso que tenhamos instrumentos processuais – inclusive no âmbito do controle abstrato de normas — para dar conta dessa complexidade, inclusive instrumentos processuais para canalizar essa necessidade de consenso. Então é com base nessa questão do desacordo moral razoável — de que nos fala também Rawls, especialmente em sua magnífica obra “Liberalismo Político” — que eu considero deva ser analisada a possibilidade da consensualidade no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade. Mas também preciso ser honesto do ponto de vista acadêmico e dizer que essa visão está longe de ser uma unanimidade.

Longe disso

Há diversos estudiosos e estudiosas do Direito Constitucional que trazem críticas, algumas mais relevantes, outras mais frágeis, em relação a esses mecanismos de consensualidade no âmbito do controle concentrado. Por exemplo, um professor a quem eu admiro bastante, o professor Miguel Godoy, da Universidade Federal do Paraná e da Universidade de Brasília, publicou um artigo defendendo que não se negociam direitos. Considero francamente que essa ideia está incorreta. O que mais fazemos no parlamento é negociar direitos.

Afinal de contas, não existe um direito isolado. Todo direito, frequentemente pelo menos, se contrapõe a outro direito fundamental. Então, o que mais se gente faz ao negociar a redação de um projeto de lei, de um substitutivo, é negociar direitos fundamentais: não negociar no sentido mercadológico, mas negociar no sentido do que a doutrina portuguesa chama de cedência recíproca — os direitos cedem uns aos outros.

Por isso considero equivocada a ideia de que não se negociam direitos. Ao contrário, o que mais se faz com direitos fundamentais em situação de conflituosidade e concorrência é negociar qual deles que vai preponderar sobre determinada situação. Numa situação como esta, num contexto de hipercomplexidade social, num contexto de desacordos morais razoáveis, me parece fazer algum sentido colocar as pessoas numa mesa para que essas pessoas possam, de forma livre, aberta, eficaz, discutir, negociar.

É óbvio, precisam ser observados alguns pressupostos. Para citar Habermas, é indispensável um ambiente em que não haja nenhuma coação a não ser a do melhor argumento. Claro que, na prática, isso não existe no planeta Terra, mas é algo que se precisa buscar. Mas me parece que a crítica de que não se negociam direitos não é uma crítica procedente.

Outra crítica, muito frequentemente lançada em relação a esses mecanismos de consenso no âmbito do controle abstrato de normas é que isso vulneraria o exercício da jurisdição, que isso iria contra o caráter substitutivo e imparcial da jurisdição. Parece-me também uma crítica improcedente. Afinal de contas, o acordo, a busca por consensos, a busca por negociação de soluções consensuais, é uma etapa prévia ao exercício da jurisdição, digamos assim, “hard”. Além do “hard law”, daquele direito impositivo, que se impõe com a aplicação de sanção em caso de desobediência, também se tem um “soft law”, um direito “suave”.

Também se tem uma tentativa de auto-composição. Esses mecanismos de acordo, essas audiências, comissões de conciliação no âmbito do controle concentrado, não podem ser lidas ou não devem ser lidas, nem do ponto de vista jurídico, nem do ponto de vista político, como a renúncia à jurisdição.

Sim, devem ser lidos como até uma postura de deferência do Judiciário para com a complexidade da sociedade “lá fora”. Um exercício de humildade jurisdicional, coisa que não é muito frequente no Brasil, humildade jurisdicional. Um reconhecimento de que não adianta o judiciário chegar e dizer esta lei é inconstitucional, se eu não tratar do “day after”.

Isso não é renúncia à jurisdição, assim como as tentativas de conciliação no âmbito de uma reclamação trabalhista não são renúncia à jurisdição da corte. São uma etapa prévia numa tentativa de ter uma decisão que seja mais aderente ao escopo social da própria jurisdição.

É preciso resgatar as lições sobre qual é o escopo da jurisdição — de qualquer jurisdição, inclusive de matriz constitucional: paz social. A jurisdição (e a jurisdição constitucional também) não é uma finalidade em si mesma: existe para gerar paz social. A finalidade é mais importante do que o instrumento.

Além disso, tenho a impressão de que muitas dessas críticas, não todas, mas muitas dessas críticas partem de uma concepção um tanto quanto simplista do fenômeno da inconstitucionalidade. Afinal de contas, entre a constitucionalidade total e a inconstitucionalidade total, nós temos hoje uma miríade de técnicas decisórias no controle de constitucionalidade. Modulação de efeitos para dar efeitos “ex tunc” parciais, efeitos “ex nunc”, efeitos “pro futuro”, declaração de nulidade parcial sem redução do texto, declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade, apelo ao legislador, estado de coisas inconstitucional…

Numa multiplicidade de decisões possíveis de serem resultado da jurisdição constitucional, querer que eu tenha um instrumento processual baseado no tudo ou nada me parece um anacronismo, uma inadequação entre o resultado e o mecanismo processual.

Porém, há um ponto de atenção em relação a essa consensualidade no âmbito da jurisdição constitucional que me parece uma crítica um pouco mais contundente e uma crítica, portanto, que merece nossa atenção: Os riscos de ativismo judicial e os riscos de uma substituição no imaginário popular do “locus” parlamentar pelo “locus” judicial. Essa é uma crítica relevante, com a qual é preciso ter cuidado.

Não é que isso vai fazer com que nós não tenhamos essas conciliações constitucionais, chamemos assim, mas há que se ter cuidado para calibrar a nossa expectativa e calibrar as possibilidades de aplicação desse instrumento. Esse instrumento não é, não pode ser e nunca será substituição à arena parlamentar.

Esse debate de natureza jurisdicional tem que ter finalidades diferentes, bases diferentes, mecanismos diferentes dos debates parlamentares. Esse é um risco concreto: que ocorra uma “colonização”, digamos assim, de uma comissão de conciliação constitucional começar a tomar o espaço do parlamento.

Isso não pode acontecer, me parece que não vai acontecer, mas é um ponto de atenção, não do ponto de vista jurídico, mas do ponto de vista do imaginário político. Não se pode passar para a sociedade a ideia de que essas comissões de conciliação no âmbito do Supremo Tribunal Federal substituem o parlamento. Mas eu as vejo um espaço muito fértil inclusive de diálogo institucional.

Um espaço muito fértil para os vários poderes se fazerem representar numa mesa de negociação e falarem abertamente sobre suas posições. Até porque nós conhecemos o quão múltiplo e plural é o Poder Legislativo. É a beleza do parlamento, essa pluralidade. E isso traz alguns desafios. Por exemplo, na hora de escolher os representantes do Legislativo numa mesa de negociação.

Vai haver parlamentar que é a favor daquele tema, outros que são contra. Quais parlamentares comporão uma mesa de negociação? Esse foi um problema enfrentado, por exemplo, da mesa de conciliação em relação ao marco temporal das terras indígenas.

O Congresso, inequivocamente, tem uma maioria muito pronunciada pró-marco temporal. Mas isso não significa que se há três representantes do Senado, os três vão ser a favor do marco temporal — é preciso ter algum tipo de pluralismo. Será preciso levar para a mesa de negociação pelo menos um parlamentar que canalize, de certa forma, a linhagem minoritária, porque a beleza do parlamento é o respeito à voz da minoria também.

Há uma outra dificuldade, ninguém fala em nome do parlamento: só quem fala em nome do parlamento é o próprio parlamento. Todos ali estão falando sempre a partir de uma perspectiva parcial, de parte do parlamento, de uma linhagem dentro do parlamento. Isso é algo para ser analisado, para ser objeto de nossa reflexão.

Mas essa questão vem sendo, inclusive, discutida no âmbito da comissão no Congresso, que analisa a questão do processo estrutural e do processo constitucional. Creio que seria muito relevante que nós tivéssemos um regramento jurídico-processual para a convocação dessas comissões de conciliação, com fixação do número de membros,  definição de representantes dos poderes, estabelecimento de mecanismos processuais, inclusive de tomada de decisão. Até agora nós tivemos bons exemplos, bons resultados com isso, mas é preciso que haja uma mínima institucionalização.

Não sei se é de conhecimento geral, mas das primeiras vezes que o Supremo Tribunal Federal realizou audiências públicas, isso também gerou muita resistência. E muitos talvez não se lembrem de que, diante da inexistência de um regramento no regimento interno do STF sobre audiência pública, foi usado, por analogia, o regimento interno da Câmara dos Deputados. O Supremo aplicou, na realização de audiências públicas na Corte, por analogia, o regimento interno da Câmara…

O que — creio eu — comprova a minha tese de que nós precisamos de ter algum grau de institucionalização, algum grau de regramento. Por exemplo, ainda uma vez, nesse exemplo da comissão de conciliação em relação ao marco temporal das terras indígenas, há uma dificuldade, diante, inclusive, do caráter numeroso da comissão. Como é que se faz, por exemplo, um debate franco e aberto com cem representantes? Seria preciso ter algum tipo de dinâmica para garantir a representatividade adequada.

Outro desafio que precisa ser enfrentado diz respeito, portanto, à institucionalização, inclusive, do processo deliberativo e decisório dessas comissões. Isso inclui a possibilidade de delimitação do debate, inclusive para o Judiciário atuar, por vezes, como um agente externo ao lidar com esses desacordos morais razoáveis.

Por último, penso que vale registrar o estado da arte das comissões de conciliação no âmbito do controla abstrato de normas.

Um caso paradigmático foi o da conciliação federativa sobre o ICMS-Combustíveis, uma disputa ferrenha entre a União, que queria, “a fórceps”, reduzir o preço dos combustíveis, e os Estados, que não queriam perder boa parte da arrecadação de um dos seus principais tributos. Um raro caso em que os dois têm razão e os dois estão errados. Foi aprovada — não vou entrar nos detalhes técnicos do ponto de vista tributário — uma lei complementar que, na prática, quase que forçava os Estados a reduzirem a alíquota cobrada em relação ao ICMS-combustíveis (Lei Complementar nº 192, de 2022).

Os Estados cobravam, por exemplo, 27%, e esse patamar passou a ser de 17% ou 18%, a chamada alíquota modal. Uma situação que gerou um passivo não desprezível, gerou uma conflagração, inclusive, de governadores com a União, num ano eleitoral, e que só teve como ser resolvida por intermédio de uma conciliação constitucional. Entendo acho que esse exemplo fala por si.

Um outro exemplo, ainda em andamento, diz respeito ao marco temporal das terras indígenas. O marco temporal, em 30 segundos, o Supremo Tribunal Federal, em 2018, Petição nº 3.388 de Roraima, firmou a tese do marco temporal das terras indígenas. Em 2021, o Supremo anunciou que iria revogar essa tese, ou fazer o “overruling”, a superação do precedente.

O Congresso começa então a acelerar um projeto de lei de 2007, que tratava de outro tema, e com um substitutivo que, entre outras coisas, incorporava a decisão do Supremo, transformando-a em lei. Eu estava na CCJ do Senado, no dia em que foi votado o relatório do senador Marcos Rogério, favorável ao marco temporal, e no momento em que chegou a notícia: o Supremo Tribunal Federal acaba de formar a maioria pela inconstitucionalidade do marco temporal.

Mesmo assim, prosseguiu-se na votação do PL, tendo em vista que o efeito — ainda que vinculante — das decisões em controle de constitucionalidade não vincula o Legislador (CF, artigo 102, § 2º). Foi então aprovada a Lei do Marco Temporal, Lei nº 14.701, de 2023, inclusive com a derrubada quase total dos vetos presidenciais ao projeto.

O que acontece no dia em que a lei entra em vigor? São ajuizadas três ADIs e uma ADC. Foi designado relator o ministro Gilmar Mendes que, do meu ponto de vista, de maneira correta, convoca essa comissão de conciliação.

Não há como saber se a conciliação será frutífera. Mas o processo importa. Ainda que não se chegue a um acordo, como se chegou no caso do ICMS, discutir essa matéria, tendo na mesa ruralistas e lideranças indígenas, já é um avanço “per se”. Ainda me parece melhor do que o Supremo se reunir mais uma vez e dizer “não, o marco temporal é inconstitucional” e ignorar a disputa que está lá fora.

E a gente tem um último exemplo, extremamente frutífero, a meu ver, que foi a questão da judicialização de fornecimento de medicamentos. Os temas nº 6 e 1234 da Repercussão Geral. Nesse aspecto, finalmente se chegou a um acordo envolvendo União, estados e municípios, Legislativo, Executivo e Judiciário — isto não é pouca coisa — para trazer diretrizes, regras gerais sobre fornecimento de medicamentos.

Por fim, uma aposta: acho que a próxima comissão de conciliação constitucional vai tratar de uma coisa que impacta, inclusive, nas assembleias, a ADO nº 38, que discute a tormentosa questão do número de deputados federais por Estado. Que, obviamente, reflete no número de deputados estaduais. O estado do Pará ajuizou essa demanda, alegando que o artigo 45 da Constituição exige uma lei complementar antes de cada eleição, para fazer os ajustes das bancadas estaduais às variações populacionais, mas a última lei é de 1993.

É preciso atualizar as bancadas. O problema, porém, é que, sem um agente externo, isso não vai se efetivar. Porque, enquanto o Amazonas ganha dois representantes, a Paraíba perde três.

Não há nenhum estímulo para que a bancada de um estado que vai perder não bloqueie a votação. Nesse caso, ou se busca um acordo, ou será pior, porque aí sim o STF vai declarar inconstitucional a Lei toda e determinar ao TSE que refaça os cálculos das bancadas — e aí não se vai poder reclamar de ativismo judicial.

Espero que as experiências nesse sentido não se percam, e possam ser institucionalizadas — afinal, se vamos negociar direitos, que o façamos de uma maneira ética, controlável e transparente.

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[1] Palestra proferida no LIV Encontro Nacional dos Advogados e Procuradores do Poder Legislativo no dia 22 de novembro de 2024. Agradeço o convite do então Presidente da Associação Nacional dos Procuradores e Advogados do Poder Legislativo (Anpal), doutor Ricardo Benetti Fernandes Moça, e do presidente atual, doutor Grhegory Paiva Pires Moreira Maia.

Fonte: Conjur

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