A Deliberação CVM nº 896/2025 (“Stop Order“) foi editada em razão da oferta e intermediação, pelo Mercado Bitcoin (MB), de oportunidades de investimentos em ativos digitais (tokens) lastreados em fluxos financeiros, originários de direitos creditórios, cedidos por Fundo de Investimento em Direitos Creditórios Não Padronizados. Escrevi sobre o tema em artigo anterior.

Nesse contexto, vale lembrar que, em 2023, os Ofícios-Circulares CVM/SSE nº 4/2023 e nº 6/2023 foram editados pela CVM para sinalizar ao mercado que tokens de recebíveis e produtos de “renda fixa digital” poderiam ser enquadrados como valores mobiliários e, por isso, deveriam ser ofertados em observância aos requisitos da regulação vigente. Para tanto, foi permitida a oferta por meio de plataformas de crowdfunding sob o rito da Resolução CVM nº 88/2022.

A referida stop order foi revogada pelo Colegiado da CVM em 25/03, com fundamento na falta de indicação explícita dos tokens que seriam valores mobiliários e por dificuldades processuais enfrentadas pelo MB. Tanto para o diretor Otto Lobo como para o diretor João Accioly, a revogação da stop order decorre da vagueza do seu teor — não foram indicados quais ativos deveriam ter a intermediação cessada — e da violação ao devido processo legal devido à ausência de notificação adequada e dificuldades no acesso ao processo. Para ambos, a vagueza da stop order impossibilitou a correta orientação do mercado e dos investidores.

Desta decisão decorrem três perguntas importantes:

  1. Os tokens de recebíveis ou “renda fixa digital” são valores mobiliários?
  2. Os Ofícios Circulares CVM/SSE representam mudança de entendimento da CVM sobre o tema e, por isso, exoneram a responsabilidade de participantes que ofertaram tokens antes de sua edição?
  3. O que o mercado pode esperar depois dessa decisão?

Passemos a explorar estas questões.

Afinal, os tokens de recebíveis são valores mobiliários?

Para afastar o enquadramento dos tokens como valores mobiliários, o MB argumentou que os Tokens de Cotas de Consórcio não se referiam a um investimento coletivo, pois não haveria uma união de recursos para um único empreendimento ou projeto, nem uma ligação direta entre os investidores e os esforços do empreendedor. Além disso, alegou que a expectativa de ganho não dependia dos esforços do empreendedor ou de qualquer outro participante da oferta, mas sim de fatores externos.

Para o diretor Accioly, os tokens intermediados não são valores mobiliários e as questões de mérito trazidas deveriam ser objeto de deliberação subsequente do colegiado, em sede de juízo definitivo. Porém, ele não analisou em profundidade a qualificação dos tokens em seu voto liminar, focando nas questões processuais e na imprecisão da stop order. Na mesma linha, o diretor Otto Lobo deixou para um momento posterior a análise da qualificação dos tokens de recebíveis como valores mobiliários.

Houve mudança de entendimento?

O MB sustentou que os Ofícios da CVM/SSE representariam uma mudança no entendimento da CVM sobre a caracterização de criptoativos como valores mobiliários e que as ofertas objeto da stop order ocorreram em consonância com o entendimento consolidado antes da emissão dos referidos ofícios. Assim, a stop order deveria ser revogada porque a Lei nº 9.784/1999 veda a aplicação retroativa de uma nova interpretação por parte da Administração Pública e a Lei nº 13.655/2018 determina que decisões administrativas que estabeleçam um novo dever ou condicionamento de direito devem prever um regime de transição quando necessário para o seu cumprimento.

Em seu voto, o presidente João Pedro Nascimento rebateu estes argumentos, afirmando que os Ofícios-Circulares nº 4 e 6/2023, assim como o Parecer de Orientação CVM nº 40/2022, têm caráter orientativo e visam transmitir instruções e esclarecimentos aos participantes do mercado, não alterando o regime legal vigente sobre a definição de valor mobiliário estabelecido no artigo 2º da Lei nº 6.385/1976.

Logo, os ofícios não teriam introduzido uma nova interpretação sobre a caracterização de valores mobiliários representados sob a forma de ativos digitais e que a Superintendência de Registro de Valores Mobiliários (SRE) já havia alertado o MB em setembro de 2022, antes da emissão dos Ofícios-Circulares da SSE, de que os ativos em questão configuravam valores mobiliários e que sua oferta era irregular.

A diretora Marina Copola votou pela revogação da stop order sem acolher explicitamente o argumento da mudança de entendimento, pois entendeu que os novos elementos trazidos pelo MB, especialmente em relação a uma suposta interpretação anterior da CVM, mereciam uma análise mais aprofundada pela área técnica.

E agora?

O presidente João Pedro Nascimento entendeu que o texto da deliberação não definia adequadamente a conduta irregular praticada pelo MB, apesar de os documentos preparatórios da área técnica serem mais detalhados. Por essa razão, considerou que a stop order deveria ser revogada e o processo retornado à SSR para sanar as irregularidades e, se necessário, propor uma nova stop order mais clara. Em outros termos, a conduta pretérita do MB ainda pode ser objeto de repreensão pública pela CVM ou até mesmo de punição.

Para o presidente da CVM, está correto o entendimento da área técnica de que, a priori, os ativos listados no Ofício Interno nº 1/2025/CVM/SSR/GSR-1 eram valores mobiliários e tokens representativos de valores mobiliários, mesmo que ofertados antes dos Ofícios Circulares CVM/SSE de 2023, não estão dispensados de adequação às regras do mercado de valores mobiliários, independentemente de manifestação prévia da CVM, não havendo violação a “ato jurídico perfeito”.

Por sua vez, a diretora Marina Copola afirmou que sua decisão de revogar a stop order não implicava, sob nenhum ângulo, um julgamento sobre a legalidade das ofertas realizadas.

Com isso, tanto o MB quanto as demais tokenizadoras ficam em compasso de espera com relação à discussão do mérito do caso: sendo os tokens de recebíveis qualificados como valores mobiliários, quem realizou ofertas ou permitiu sua negociação antes dos Ofícios CVM/SSE de 2023 pode ser alvo de stop order e processos administrativos sancionadores?

Tive a oportunidade de explorar o tema em artigo anterior, no qual sugiro que a CVM lide com a questão de forma semelhante ao contexto dos condo-hotéis, quando houve um período inicial de pouca atuação do regulador, seguido de uma sinalização mais assertiva e, posteriormente, a edição de normas. Esta abordagem “gradual” pode ser útil para endereçar as ofertas de tokens feitas antes dos Ofícios CVM/SSE.

O argumento toma como base uma (re)leitura dos argumentos do diretor Gustavo Tavares Borba no caso “Oliva” (Processo CVM nº 19957.004122/2015-99), quando enfatizou a importância da segurança jurídica e dos princípios da boa-fé e da confiança. Para o então diretor, não seria razoável a CVM entender pela ilegalidade de todas as emissões realizadas sem registro sem considerar a complexidade e a falta de assimilação pelo mercado do novo conceito de valor mobiliário. Assim, foi proposta uma regra de transição para lidar com as expectativas legítimas dos afetados, sem que isso limitasse o regulador, mas levando em consideração para não causar prejuízos injustificados.

Precisamos questionar a supremacia de um interesse público marcado pela obrigatoriedade da atuação sancionadora e a CVM pode definir marcos temporais e exceções para dissipar o receio de responsabilização, pois o efeito educativo da aplicação de penalidades é questionável em certas situações.

Tal argumento se sustenta na premissa de que o objetivo final é segregar casos flagrantes de fraudes de empresas que estavam genuinamente navegando sob incerteza regulatória para reduzir custos e desenvolver o mercado de capitais.

Fonte: Conjur

Deixe um comentário