Como a manipulação política da planta de valores e a ausência de lei específica violam o princípio da legalidade tributária e comprometem a segurança jurídica do contribuinte
1. Introdução: O valor venal como variável tributária e estratégia de arrecadação
A base de cálculo do IPTU – Imposto Predial e Territorial Urbano é o valor venal do imóvel, que deve refletir uma estimativa objetiva do seu valor de mercado. Contudo, em diversos municípios, esse parâmetro tem sido utilizado de forma distorcida, com sucessivos aumentos promovidos por decretos do Poder Executivo, sem que haja aprovação legislativa específica, violando de forma direta os princípios constitucionais da legalidade e da anterioridade tributária.
A prática recorrente de “atualizações” por decreto configura, na realidade, majoração disfarçada de tributo, criando um mecanismo informal de aumento da arrecadação, à revelia do controle político da Câmara municipal. Tal conduta fragiliza a segurança jurídica do contribuinte e compromete a legitimidade da gestão fiscal municipal.
2. Fundamentos constitucionais e legais: Legalidade, reserva de lei e limites ao Executivo
O art. 150, I da CF/88 é expresso ao vedar a exigência ou majoração de tributos sem lei que os estabeleça. Complementarmente, o art. 97 do CTN enumera como matéria reservada à lei:
“II – a majoração de tributos, ou sua redução, ressalvado o disposto nos arts. 21, 26, 39, 57 e 65;”
“III – a definição do fato gerador da obrigação tributária principal, a fixação da alíquota do tributo e da sua base de cálculo;”
Já o §2º do mesmo artigo prevê uma exceção, permitindo ao Executivo promover atualização monetária de base de cálculo desde que isso não configure aumento real do tributo:
“Não constitui majoração de tributo a atualização do valor monetário da respectiva base de cálculo, desde que limitada à variação de índices oficiais.”
Assim, qualquer alteração que extrapole a simples correção inflacionária, ou que modifique a metodologia de cálculo do valor venal, exige lei específica aprovada pelo Legislativo municipal. A ausência dessa lei implica em inconstitucionalidade formal e material do lançamento tributário.
3. Doutrina tributária: Legalidade estrita e manipulação da planta de valores
A doutrina de Hugo de Brito Machado Segundo é categórica ao afirmar que a base de cálculo do IPTU, por integrar a hipótese de incidência, não pode ser manipulada por ato infralegal:
“O valor venal, enquanto base de cálculo, integra o núcleo da norma tributária. Sua majoração exige lei em sentido formal, ainda que disfarçada sob o nome de atualização.”
Essa compreensão foi consolidada com base na análise técnica de materiais operacionais produzidos por entidades municipais e especialistas da área, que confirmam a conversão da planta genérica de valores em instrumento de arrecadação indireta, especialmente em anos pré-eleitorais ou de crise fiscal.
4. Jurisprudência: Decisões judiciais contra o aumento disfarçado do IPTU
O STF também enfrentou a matéria de forma expressa no julgamento do ARE 1.245.097/PR, de relatoria do ministro Dias Toffoli, com repercussão geral reconhecida. Na ocasião, a Corte assentou que:
“Somente a lei em sentido formal pode estabelecer os critérios gerais de definição do valor venal dos imóveis para fins de IPTU. A Administração pode realizar avaliações individualizadas apenas em imóveis não constantes na planta genérica de valores (PGV) e desde que observados os critérios técnicos e legais já estabelecidos na legislação municipal.”
“A alteração do valor venal de imóveis urbanos por decreto do Poder Executivo municipal, sem previsão legal específica ou com reajuste superior aos índices oficiais de correção monetária, é inconstitucional, por afrontar o princípio da legalidade tributária (art. 150, I, CF/88) e o art. 97, §2º do CTN.”
Essa decisão reforça que o valor venal integra a base de cálculo do tributo e que sua majoração não pode ocorrer por ato infralegal. Trata-se de entendimento com repercussão geral, que orienta não apenas o controle difuso, mas também a atuação administrativa dos municípios.
5. Riscos fiscais crescentes com a integração ao CIB – Cadastro Imobiliário Brasileiro
Com a entrada em vigor da LC 214/25, os municípios passam a ser obrigados a integrar seus cadastros imobiliários ao CIB – Cadastro Imobiliário Brasileiro, conforme estabelece o art. 59 da norma. Trata-se de uma base de dados unificada, administrada pela Receita Federal do Brasil, que concentrará informações sobre imóveis urbanos e rurais, incluindo sua titularidade, localização, área construída, características técnicas e valor venal.
Essa nova estrutura representa uma ruptura com o modelo atual, em que cada município define isoladamente seus critérios e valores referenciais. A partir da integração ao CIB, haverá cruzamento sistemático de informações cadastrais, fiscais e territoriais, exigindo padronização, confiabilidade e coerência nos parâmetros utilizados para o cálculo do IPTU.
Como consequência, o valor venal deixa de ser uma variável de livre manipulação política e passa a integrar o ambiente nacional de governança tributária.
A manutenção de práticas como a majoração do valor venal por decreto, sem respaldo legal formal, poderá ser detectada por meio dessas ferramentas nacionais de auditoria, resultando em:
- Questionamentos por Tribunais de Contas e órgãos de controle externo;
- Judicialização em massa por contribuintes prejudicados;
- Suspensão de transferências voluntárias em caso de descumprimento de obrigações acessórias;
- Inclusão do município em cadastros de inidoneidade fiscal.
Além do impacto financeiro, a não conformidade pode comprometer a credibilidade institucional do ente federativo, dificultando o acesso a convênios, parcerias e programas Federais de incentivo à modernização da gestão.
Essa integração ao CIB revela que a era do improviso fiscal está chegando ao fim. O valor venal deve ser fundamentado tecnicamente, auditável e amparado por lei específica, sob pena de nulidade dos lançamentos e responsabilização pessoal das autoridades envolvidas. Os municípios que não se adaptarem a essa nova lógica correm o risco de transformar o IPTU em foco permanente de conflito, desgaste político e insegurança jurídica.
6. Estratégias de defesa do contribuinte frente à majoração indevida do valor venal
O contribuinte que identifique aumento desproporcional no IPTU pode – e deve – adotar medidas concretas para revisar ou anular o lançamento.
Para isso, recomenda-se:
- Solicitar cópia da planta genérica de valores, do espelho do cadastro fiscal do imóvel e dos decretos de “atualização”;
- Verificar se há divergência entre os dados cadastrais da prefeitura (metragem, tipologia, padrão construtivo, uso) e a realidade do imóvel;
- Levantar provas da desatualização ou da distorção da valoração: fotos, plantas baixas, certidões de zoneamento, anúncios de venda e boletins de avaliação imobiliária de imóveis similares na mesma região;
- Requerer administrativamente a revisão do lançamento com base no art. 150, I da CF/88, art. 97 do CTN e art. 145, §1º da CF (capacidade contributiva); bem como, código tributário municipal entre outros fundamentos.
- Ingressar com ação judicial, caso necessário, com pedido de tutela de urgência e produção de prova pericial indireta.
O aumento aplicado sobre o valor venal do imóvel em desconformidade com os índices oficiais de correção monetária, sem respaldo em lei específica, configura ofensa direta à legalidade tributária e à segurança jurídica.
A defesa técnica deve demonstrar que o valor atribuído excede os padrões praticados na localidade, violando também os princípios da razoabilidade, da proporcionalidade e da vedação ao confisco.
Tais estratégias fortalecem não apenas a proteção do contribuinte, mas também o controle social da arrecadação, especialmente diante da estrutura nacional de auditoria que se consolida com o CIB – Cadastro Imobiliário Brasileiro, previsto na LC 214/25.
7. Conclusão: Limites constitucionais, riscos estruturais e responsabilidade política
A majoração do valor venal do IPTU por decreto representa não apenas uma irregularidade fiscal, mas uma afronta direta ao modelo constitucional tributário. O princípio da legalidade, cláusula pétrea do Estado Democrático de Direito, exige que nenhum tributo seja aumentado sem lei formal. Ao contornar essa exigência, prefeitos comprometem a governança fiscal, violam o pacto federativo e transferem ao contribuinte a conta da má gestão.
É dever da advocacia, da cidadania organizada e dos órgãos de controle reagirem institucionalmente contra esse mecanismo de arrecadação oculta, muitas vezes legitimado por narrativas administrativas infundadas.
O IPTU não pode ser arma de sufocamento financeiro das famílias brasileiras. O valor venal deve ser técnica, transparente e legalmente estabelecido, sob pena de nulidade do lançamento e responsabilização pessoal das autoridades envolvidas.
Neste novo contexto, é urgente que os municípios deixem de tratar o valor venal como cifra manipulável e passem a tratá-lo como dado público estruturante, controlável, auditável e referenciado em critérios objetivos, integrando o cadastro multifinalitário nacional e respeitando o interesse coletivo. Essa é a verdadeira justiça fiscal.
Fonte: Migalhas
Deixe um comentário