Apesar de não existir legislação que trate especificamente da herança digital, ativos devem estar no processo de sucessão patrimonial
Quando se fala em herança, pode ser comum que o primeiro pensamento seja uma casa ou valores em dinheiro a receber. No entanto, com o crescimento dos ativos digitais e das mídias sociais, o planejamento sucessório também deve incluir outros ativos, como milhas aéreas, criptomoedas e até contas em plataformas na chamada ‘herança digital’.
A herança digital é o conjunto de bens e direitos digitais de uma pessoa que podem ser transmitidos após a morte. Isso inclui desde ativos financeiros — como criptomoedas, milhas aéreas e saldos em carteiras digitais — até conteúdos armazenados em nuvem, blogs, domínios de internet e perfis em redes sociais. Esses bens podem ter valor patrimonial, afetivo ou ambos, explica Gustavo Rabay, professor de direito da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Os especialistas explicam que ainda não há uma lei específica sobre herança digital no país e o tema é tratado com base no Código Civil — que traz normas gerais relacionadas à personalidade e, ainda, regula o processo de sucessão patrimonial —, no Marco Civil da Internet e, em alguns aspectos, na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) — especialmente em relação à proteção de dados do falecido.
Quais bens digitais podem ser considerados herança?
O direito classifica esses bens em três categorias: patrimoniais (criptoativos e contas monetizadas), existenciais (fotos e mensagens pessoais) e híbridos (perfis que reúnem valor afetivo e econômico, como perfis de influenciadores), pontua Rabay.
Os existenciais, diz ele, podem ser acessados judicialmente em algumas situações. Isso porque bens como conversas privadas, arquivos íntimos ou registros pessoais são protegidos pelo direito da personalidade e, em regra, não se transmitem. Há casos em que a proteção da privacidade prevalece sobre o interesse sucessório. Por outro lado, bens com valor econômico claro devem integrar a herança, seguindo as regras do Direito Sucessório.
Além disso, cada tipo de ativo requer uma análise específica. No entanto, de forma geral, são considerados como parte da herança digital todos os ativos digitais que possuam valor econômico ou jurídico, como:
- Criptomoedas;
- NFTs;
- Créditos em plataformas;
- Milhas (dependendo da política da companhia aérea);
- Arquivos em nuvem;
- Domínios de internet;
- Contas monetizadas e outros ativos digitais com valor econômico.
No caso das criptomoedas, o acesso técnico a esses ativos depende exclusivamente das chaves privadas ou frases-semente. Neste caso, a Justiça pode autorizar o acesso, mas se as informações de autenticação não estiverem disponíveis, o ativo se torna inacessível. “Portanto, em regra não há mecanismos de recuperação dessas chaves, salvo se o falecido deixou as chaves sob custódia de alguém”, diz Andrey Guimarães, tabelião de notas e vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil em São Paulo.
“A blockchain (que é a tecnologia, o sistema que possibilita a existência deste tipo de ativos digitais), ao contrário das instituições financeiras tradicionais, não prevê recuperação por via judicial ou administrativa. Então, resumidamente, se houver registro da chave privada ou instruções de acesso, é possível herdar criptos. Caso contrário, mesmo com decisão judicial, o acesso pode ser impossível. A blockchain não perdoa esquecimentos. É essencial fazer o planejamento em vida”, ressalta Rabay.
É preciso testamento?
Rabay pontua que o testamento não é obrigatório, mas é “altamente recomendável”, por ser o meio mais seguro. O testamento tradicional pode ser usado para indicar a existência de ativos digitais, nomear herdeiros digitais e instruir sobre senhas e chaves de acesso.
Também há a possibilidade de se utilizar codicilos (documento de “última vontade” que expressa os desejos de uma pessoa antes da morte, similar a um testamento, mas feito de forma informal) para bens de menor expressão patrimonial, e cláusulas específicas em testamentos particulares.
Se a pessoa não deixar o testamento, os herdeiros podem solicitar a herança por meio de ação judicial, mas o processo será mais complexo e, no caso de criptomoedas, pode se tornar inviável sem acesso prévio às chaves e se houver resistência das plataformas.
Como organizar a herança digital em vida?
O primeiro passo, diz Guimarães, é fazer um inventário de todos os seus ativos digitais, tais como contas de e-mail, redes sociais, serviços de armazenamento (Google Drive, iCloud), canais e perfis monetizados (YouTube, TikTok, Instagram), criptomoedas e carteiras digitais, plataformas de investimento ou bancos digitais, entre outros.
Segundo passo é formalizar suas instruções por escrito em um testamento com cláusulas específicas sobre bens digitais. “Nessas instruções podem ser deixadas regras sobre quais contas devem ser encerradas, mantidas ou memorizadas, quem pode acessar o quê (mensagens, fotos, redes, etc.) e o destino de conteúdos digitais (excluir, transferir, tornar públicos)”, diz o tabelião.
Além disso, Rabay recomenda fazer periodicamente uma atualização do checklist da herança digital, o que inclui:
- Atualizar senhas e ativos regularmente;
- Manter contatos de confiança informados;
- Informar o executor digital sobre mudanças significativas.
Qual a ordem de herdeiros nesse caso?
A ordem de herdeiros na herança digital segue a mesma estrutura legal prevista para as heranças tradicionais no Código Civil. Isso significa que, na ausência de testamento, os bens digitais são transmitidos aos herdeiros legítimos conforme a ordem hereditária:
- primeiro os descendentes (filhos, netos), em concorrência com o cônjuge sobrevivente;
- depois os ascendentes (pais, avós), também em concorrência com o cônjuge;
- na falta destes, os colaterais (irmãos, sobrinhos, tios).
“Caso exista testamento, prevalece a vontade do falecido, respeitada a legítima — ou seja, metade do patrimônio deve ser destinada obrigatoriamente aos herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge)”, diz Guimarães.
Rabay pontua que, em relação aos bens existenciais ou com natureza personalíssima, o judiciário pode adotar critérios distintos, considerando o vínculo afetivo ou o interesse legítimo do requerente.
Fonte: Valor Investe
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