Embora o papa exerça funções espirituais e políticas, ele também é, juridicamente, uma pessoa física, com direitos e deveres civis
Segundo o advogado do escritório Mota Kalume e especialista em direito sucessório Guilherme Malta, é fundamental distinguir os bens pessoais do papa daqueles associados ao papado.
No início desta semana, o mundo foi surpreendido com a notícia do falecimento do papa Francisco, vítima de um acidente vascular cerebral, aos 88 anos. Em meio a homenagens e reflexões sobre seu legado, surge também o questionamento sobre a sucessão de seus bens pessoais — uma questão que adquire contornos específicos devido à sua singular posição como líder religioso e chefe de Estado.
Embora o papa exerça funções espirituais e políticas, ele também é, juridicamente, uma pessoa física, com direitos e deveres civis. Dessa forma, pode possuir bens particulares, como objetos de uso pessoal e eventuais economias. Tais bens, se existentes, podem ser objeto de testamento e, após sua morte, submetidos a inventário. O papa tinha apenas uma irmã viva, María Elena Bergoglio, que reside na Argentina. Doze anos mais jovem que o Santo Padre, eles se veem pessoalmente desde que ele assumiu o pontificado.
O Vaticano divulgou no dia da morte de Francisco o testamento do Pontífice, redigido em 29 de junho de 2022. O documento reafirma a conhecida simplicidade de Francisco e trata apenas de suas últimas vontades como o local e a forma do seu sepultamento, não mencionando a destinação de bens materiais. Isso sugere que, se possuía bens pessoais, esses foram tratados em documentos privados ou simplesmente não foram objeto de disposições específicas.
No testamento, o santo Padre expressa o desejo de ser sepultado na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, entre as capelas Paulina (Capela da Salus Populi Romani) e Sforza. O pontífice também solicitou que seu túmulo fosse simples, ao nível do chão, sem ornamentações, contendo apenas a inscrição “Franciscus”. Determinou ainda que os custos de sua sepultura fossem arcados por um benfeitor, conforme instruções previamente confiadas ao arcebispo Rolandas Makrickas, comissário extraordinário da Basílica.
Segundo o advogado do escritório Mota Kalume e especialista em direito sucessório Guilherme Malta, é fundamental distinguir os bens pessoais do papa daqueles associados ao papado. “A maioria dos bens vinculados à função papal — como imóveis, obras de arte, relíquias e recursos financeiros — pertence à Santa Sé e é administrada por órgãos específicos, como a Administração do Patrimônio da Sé Apostólica (APSA)”, explica.
Dessa forma, os bens utilizados no exercício do ministério papal são destinados exclusivamente ao funcionamento da Igreja e não integram o patrimônio pessoal do pontífice. Ao falecer, portanto, o papa não transmite esses bens a herdeiros, pois permanecem sob a administração da Santa Sé, assegurando a continuidade das atividades e serviços religiosos.
O advogado afirma que não seria exagero dizer que o papa Francisco, provavelmente, não deixou bens pessoais a inventariar. “Seu legado é o de um homem profundamente generoso, humilde e despojado — traços que refletem suas raízes na Companhia de Jesus, a Ordem Jesuíta, cujos membros professam votos de pobreza, castidade e obediência”, detalha.
Aplicação do Código Civil Brasileiro
Caso o papa Francisco tivesse falecido em território brasileiro e seus bens pessoais fossem passíveis de sucessão segundo o ordenamento jurídico local, nos termos do Código Civil, seria instaurado processo de inventário com a finalidade de apurar o patrimônio deixado.
Guilherme Malta explica: “Nos termos dos artigos 1.857 e seguintes do Código Civil, a vontade testamentária do cujus assumiria papel central na definição do destino de seu patrimônio, uma vez que, em regra, o papa, por sua condição canônica de celibato e vida consagrada, não possui herdeiros necessários.” Dessa maneira, não haveria reserva da legítima, o que conferiria ampla liberdade para dispor de seus bens por testamento.
O especialista também ressalta que o ordenamento brasileiro admite diversas formas testamentárias — pública, cerrada e particular —, além de reconhecer a validade de testamentos internacionais, desde que observados os requisitos formais e materiais exigidos.
“Ainda que a sucessão envolvesse bens situados em outros países ou beneficiários estrangeiros, os bens localizados no Brasil, caso houvesse, estariam sujeitos à jurisdição nacional, nos termos do art. 10 do Código de Processo Civil e do art. 7º da LINDB”, afirma. Assim, a execução da vontade testamentária observaria a legislação brasileira, assegurando a eficácia e validade dos atos de última vontade dentro dos limites impostos pela ordem pública nacional.
Conclave
O conclave é o processo realizado pela Igreja Católica para eleger um novo papa, iniciado após a morte ou renúncia do pontífice. O termo vem do latim “cum clavis”, que significa “fechado à chave”, em referência ao isolamento dos cardeais durante a votação. O ritual foi oficializado em 1274, durante o Primeiro Concílio de Lyon, e atualmente é regido pela constituição apostólica Universi Dominici Gregis, de 1996, promulgada por João Paulo II.
Durante o período conhecido como Sé Vacante, em que não há um papa, a Igreja é conduzida por um governo provisório, liderado pelo camerlengo — atualmente o cardeal Kevin Joseph Farrell —, que também é responsável por organizar o conclave. Podem participar da eleição até 120 cardeais com menos de 80 anos.
A votação, secreta e impressa, ocorre entre 15 e 20 dias após a vacância do cargo, sendo necessária uma maioria de dois terços dos votos para a escolha do novo pontífice. Enquanto isso, a Igreja cumpre uma série de ritos solenes, entre os quais se destacam as cerimônias fúnebres do papa Francisco.
Fonte: Correio Braziliense
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