A desconsideração da personalidade jurídica tem evoluído na jurisprudência, apresentando diferentes abordagens quanto ao seu alcance. O julgamento do REsp 1.792.271/SP pela 4ª Turma do STJ, divulgado sob a premissa que o IDPJ não poderia alcançar os filhos beneficiados por desvio patrimonial dos sócios, tem sido interpretado de forma equivocada.
Busca-se desmistificar essa percepção, demonstrando que se trata de uma decisão pontual que convive com jurisprudência do próprio STJ e tribunais que admitem a desconsideração expansiva para responsabilizar terceiros que participem de estruturas fraudulentas de blindagem patrimonial, mesmo quando desprovidos de vínculo societário formal.
A controvérsia central: pode o IDPJ alcançar filhos de sócios beneficiados com bens em contexto de esvaziamento patrimonial fraudulento?
REsp 1.792.271/SP
A 4ª Turma (relator ministro Antônio Ferreira) afastou responsabilidade de filhos que receberam imóveis/valores próximo ao inadimplemento, entendendo que IDPJ não alcança terceiros sem vínculo societário formal.
O ministro Marco Aurélio Bellizze, por sua vez, fundamentou sua divergência no artigo 50 do Código Civil e na interpretação do ordenamento, defendendo que a atuação dos filhos, quando integrada ao núcleo da fraude, autoriza responsabilização direta: “É possível reconhecer a desconsideração para alcançar aqueles que, mesmo não sendo sócios formais, se beneficiaram do desvio patrimonial decorrente de condutas abusivas e dolosas, mormente em contextos familiares com doações simuladas e confusão patrimonial.”
Por sua vez, o ministro Raul Araújo enfatizou a finalidade teleológica do IDPJ de impedir perpetuação da fraude, salientando sua aplicabilidade a terceiros instrumentos de blindagem: “A desconsideração permite penhora de bens de terceiros em negócio jurídico envolvendo doação ajustado com sócio da empresa, com fim de blindar patrimônio.”
Estes votos revelam sofisticação hermenêutica ao reconhecer que a literalidade do vínculo societário não constitui limite intransponível quando há elementos objetivos de confusão patrimonial e instrumentalização fraudulenta.
REsp 2.055.325/MG: precedente paradigmático e ratio decidendi
O STJ estabeleceu marcos hermenêuticos fundamentais ao reconhecer desconsideração para alcançar o “sócio oculto”: “Deve-se admitir que seja deduzida nos próprios autos, por analogia ao IDPJ, a pretensão de extensão da responsabilidade patrimonial ao ‘sócio oculto’.”
A decisão consagra o princípio da primazia da realidade sobre a forma jurídica. A responsabilidade patrimonial impõe-se não pela posição formal, mas pela participação material na fraude ou comando efetivo da estrutura societária.
Esta ratio decidendi aplica-se aos casos como o REsp 1.792.271/SP, onde filhos recebem bens em circunstâncias que evidenciem instrumentalização para blindagem patrimonial, mesmo sem vínculo societário formal.
A desconsideração expansiva
A jurisprudência tem sido consistente na aplicação da desconsideração expansiva, especialmente envolvendo grupos econômicos familiares e sucessões empresariais disfarçadas.
AI 2315711-35.2023.8.26.0000 (26ª Câmara): reconheceu grupo econômico familiar analisando elementos objetivos como identidade de objeto social, uso comum de marcas, domínio empresarial compartilhado e clientela unificada. A decisão foi categórica: “Elementos suficientes ao acolhimento da tese de abuso da personalidade jurídica, por confusão patrimonial e desvio de finalidade, a ensejar desconsideração expansiva.”
AI 0709428-95 .2020.8.07.0000 (6ª Turma): “Diante de evidência da existência de sócio oculto, aplica-se a teoria expansiva da desconsideração da personalidade jurídica, segundo a qual é possível a extensão dos efeitos da desconsideração para alcançar estes sócios ocultos que se valem de tal situação para frustrar o recebimento por parte dos credores.”
Estes precedentes demonstram que, presentes elementos fáticos de fraude, os tribunais têm afastado o formalismo societário para garantir efetividade jurisdicional, confirmando a viabilidade da desconsideração expansiva contra esquemas sofisticados de blindagem patrimonial.
Conclusão
A desconsideração expansiva, seja para sócios ocultos, grupos familiares ou filhos beneficiados por transferências simuladas, não viola garantias, mas afirma a função corretiva do direito contra fraudes sofisticadas.
O REsp 1.792.271/SP não pode ser paradigma limitador. Contrasta com precedentes do próprio STJ e jurisprudência consolidada dos tribunais. A interpretação formal não se alinha com a evolução do instituto.
Onde há confusão patrimonial, desvio de finalidade e dolo nas transferências, não existem terceiros inocentes. Há corresponsáveis pela frustração executiva que devem ser responsabilizados proporcionalmente.
O processo civil moderno exige postura firme contra esquemas fraudulentos, privilegiando a substância sobre formalismos ineficazes que perpetuem injustiças materiais.
É imperioso que os tribunais superiores não consolidem premissas que, na prática, inviabilizem o combate a estruturas societárias familiares arquitetadas para frustrar o adimplemento de obrigações. A concretização da jurisdição passa pela responsabilização daqueles que se beneficiam diretamente de atos fraudulentos.
Fonte: Conjur


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