A sociedade contemporânea se encontra imersa em um cenário de transformações profundas, que permeiam diversas esferas da vida cotidiana, incluindo a crescente adoção de ativos virtuais como alternativas ou complementos ao sistema financeiro tradicional. Neste contexto, a ascensão desses ativos digitais traz à tona novas dinâmicas econômicas e jurídicas que merecem uma análise cuidadosa.
É nesse panorama de constante evolução tecnológica e lacunas normativas, que este artigo se propõe a examinar a viabilidade jurídica da penhora de ativos virtuais, com base no ordenamento vigente, notadamente à luz do entendimento firmado pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 2.127.038, que reconheceu a possibilidade de envio de ofícios a corretoras para localização e constrição desses ativos.
Além disso, o estudo também traz alternativas quanto à forma para viabilizar a alienação dos criptoativos após a penhora, considerando suas peculiaridades, como a alta volatilidade e os custos operacionais envolvidos, que podem variar de acordo com a forma de alienação adotada.
É importante destacar, ainda, que este artigo foi elaborado sem o respaldo de uma compreensão consolidada por parte do Poder Judiciário, tendo em vista tratar-se de uma matéria recente, ainda carente de precedentes judiciais específicos sobre a possibilidade da adjudicação envolvendo ativos virtuais.
Ativos virtuais
Para que possamos compreender adequadamente a definição de ativos virtuais, é fundamental trazer à tona as diretrizes estabelecidas pela legislação brasileira. A Lei nº. 14.478/2022, conhecida como o Marco Legal das Criptomoedas, em seu artigo 3º, define ativos virtuais como representações digitais de valor que podem ser negociadas ou transferidas por meios eletrônicos, sendo utilizadas para pagamentos ou investimentos.
A referida lei também especifica o que não é considerado ativo virtual, elencando: (I) moeda nacional e moedas estrangeiras, ou seja, aquelas regulamentadas por Governos e emitidas pelos Bancos Centrais e eventuais entidades dos respectivos países; (II) moeda eletrônica, conforme a Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013, como por exemplo, o Drex, ainda em desenvolvimento no Brasil; (III) instrumentos que proporcionem acesso a produtos ou serviços especificados, como pontos de programas de fidelidade; e (IV) representações de ativos cuja emissão, escrituração, negociação ou liquidação estejam previstas em lei ou regulamento, como valores mobiliários e ativos financeiros.
Uma questão crucial para aqueles que se aventuram no universo dos ativos virtuais é: quais características os diferenciam dos ativos tradicionais?
Em suma, os ativos virtuais são representações digitais que utilizam tecnologias como Blockchain ou outras tecnologias de registros distribuídos (Distributed Ledger Technology — DLT’s) e ao contrário das moedas fiduciárias, que são emitidas e regulamentadas por governos e bancos centrais, os ativos virtuais não necessitam de intermediários e podem ser criados por qualquer indivíduo com conhecimentos técnicos adequados.
Sob a ótica do Superior Tribunal de Justiça, os ativos virtuais são considerados bens financeiros passíveis de tributação, cuja movimentação deve ser declarada à Receita Federal, configurando-se, assim, como bens de valor econômico e, portanto, suscetíveis a constrições judiciais. Embora não sejam moedas de curso legal, podem ser utilizados como meio de pagamento e reserva de valor.
Outro conceito relevante é o da autocustódia, que dificulta a localização de ativos virtuais. Quando um usuário opta por armazenar seus ativos de forma autônoma, ele assume total responsabilidade pela proteção e guarda desses bens, sendo o único responsável pelas chaves que garantem o acesso, o que impede a identificação de ativos virtuais sob a titularidade do devedor, bem como, a possibilidade de rastreabilidade desses ativos.
Além dos desafios relacionados à autocustódia, a atuação de corretoras estrangeiras que não possuem representação legal no Brasil caracteriza um obstáculo adicional. Nessas situações, a obtenção de informações ou a adoção de medidas legais dependerá da cooperação internacional, a qual pode ser incerta e sujeita a limitações jurídicas e operacionais.
Penhora de ativos virtuais
Considerando que os ativos virtuais estão sendo reconhecidos pelo STJ, como bens de valor econômico, negociáveis por meios eletrônicos e passíveis de tributação, é natural que também estejam sujeitos à constrição judicial. Assim, a penhora de ativos virtuais surge como uma medida viável dentro do processo de execução, especialmente diante da crescente utilização desses bens como forma de investimento e reserva de valor. Nesta perspectiva, antes de adentrarmos nos aspectos práticos dessa modalidade de penhora, é importante compreender que, no ordenamento jurídico brasileiro, a penhora consiste na apreensão judicial de bens de um devedor, com o intuito de assegurar o pagamento de uma dívida.
Apesar de o mercado de ativos virtuais ainda estar em formação — seja pela evolução do setor, seja pela carência de recursos tecnológicos que permitam a localização desses ativos —, o Superior Tribunal de Justiça, em decisão recente no Resp. 2.127.038, autorizou o envio de ofícios às corretoras para a localização e penhora de ativos virtuais pertencentes a devedores.
Na decisão, a Corte enfatizou que “a execução deve ser processada da forma menos gravosa ao devedor, visando o interesse do credor que busca a satisfação da dívida inadimplida”, evidenciando a necessidade de um equilíbrio que possibilite a efetivação da persecução patrimonial. Foi entendido, também, que além do ofício às corretoras, ainda é possível a adoção de medidas investigativas para acessar as carteiras digitais do devedor, com vistas de uma eventual penhora.
A Instrução Normativa nº 1.888/2019 da Receita Federal estabelece a obrigatoriedade de comunicação sobre operações realizadas com ativos virtuais, reforçando a compreensão de que esses ativos são considerados bens financeiros e tributáveis. Essa regulamentação configura os ativos como bens de valor econômico, suscetíveis a constrição judicial.
Assim, considerando a possibilidade de adotar medidas investigativas para localizar ativos virtuais pertencentes a um devedor, é viável oficiar a Receita com o objetivo de obter informações relevantes, como declarações de Imposto de Renda que envolvam a existência ou até mesmo, informações sobre comunicações realizadas relacionadas aos ativos virtuais. Isso se justifica com base na lei 14.475/2023, que prevê em seu artigo 44, a necessidade das empresas que operam com ativos virtuais, a prestarem informações de forma periódica de suas atividades e seus clientes à Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil do Ministério da Fazenda e ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf).
Nesta lógica, ao direcionar ofícios à Receita, é possível obter informações cruciais que auxiliam na identificação e rastreamento dos ativos virtuais do devedor, contribuindo para a efetividade da execução e a recuperação dos créditos devidos.
Para melhor enquadramento, o artigo 789 do Código de Processo Civil dispõe que o devedor responde com todos os seus bens, presentes e futuros, pelas suas obrigações, salvo as restrições legais. Assim, é inegável que os ativos virtuais possuem valor econômico e, consequentemente, fazem parte do patrimônio do devedor.
Nesse contexto, tramita o Projeto de Lei 1.600/2022, que visa incluir expressamente os ativos virtuais no artigo 835 do Código de Processo Civil, que trata da ordem de preferência da penhora. O texto propõe a inclusão de “criptoativos, entendidos como representações digitais de valor que, não sendo moeda, possuam unidade de medida própria, negociados eletronicamente por meio de criptografia e tecnologias de registro distribuído, utilizados como ativo financeiro, meio de troca ou pagamento, instrumento de acesso a bens e serviços ou investimento”.
É importante ressaltar, ainda, que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com a Associação Brasileira de Criptoeconomia (ABCripto), está desenvolvendo uma ferramenta denominada “CriptoJud”, que se assemelha ao “BacenJud”. Essa ferramenta visa viabilizar, de forma eletrônica, padronizada e segura, a troca de informações e ordens judiciais entre magistrados e corretoras de ativos virtuais, garantindo a localização, bloqueio e custódia de ativos virtuais de devedores para a liquidação de obrigações judiciais.
Embora essa ferramenta represente um avanço significativo, surgem dificuldades que demandam reflexão. A primeira delas é de natureza tecnológica: o sistema será eficaz principalmente nos casos em que os ativos estão custodiados em corretoras, contudo, a possibilidade de autocustódia pode ser explorada por devedores conhecedores da tecnologia, dificultando a localização de seus ativos e abrindo margem para a evasão patrimonial.
A segunda dificuldade, refere-se à volatilidade dos ativos virtuais. Como se daria a liquidação de débitos nesse contexto? Como serão avaliadas as perdas em caso de oscilações negativas durante o processo de alienação? O sistema será capaz de liquidar dívidas de forma ágil e automática? Essas questões são essenciais para a compreensão da complexidade que envolve as tecnologias atuais e exigem um olhar atento e crítico por parte dos operadores do direito, sejam eles, advogados, juízes, promotores, dentre outros profissionais.
Diante do exposto, é possível concluir que a penhora de ativos virtuais é permitida e pode oferecer maior segurança aos credores, permitindo o envio de ofícios às corretoras para localizar ativos virtuais, ou até mesmo para a Receita, com o intuito de investigar a existência de indícios que confirmem a titularidade desses bens pelo devedor. No entanto, é importante ressaltar que esse tema é complexo e enfrenta desafios significativos que têm sido amplamente debatidos pelo mercado.
Alienação de ativos virtuais
Após a penhora de ativos virtuais, surge uma questão fundamental: como poderá ser concretizado o pagamento da dívida utilizando esses ativos penhorados?
A forma de alienação dos bens penhorados está prevista no artigo 879 e diante do Código de Processo Civil, onde traz a hierarquia na ordem de alienação. A primeira delas, por iniciativa particular e a segunda, por meio do leilão judicial, que poderá ser eletrônico ou presencial. Ainda, não sendo adjudicado o ativo, o credor poderá requerer a alienação por sua própria iniciativa ou por intermédio de corretor ou leiloeiro público credenciado perante o órgão judiciário.
Não sendo realizada a alienação por iniciativa particular e diante a possibilidade de outras formas de alienação, uma reflexão se faz necessária: Seria o leilão o melhor caminho?
No âmbito do leilão judicial, essa modalidade de alienação costuma atrair investidores e interessados na aquisição de bens por valores abaixo dos praticados no mercado. Em geral, os bens são arrematados por preços significativamente inferiores ao valor de mercado, o que pode resultar na arrecadação de um montante insuficiente para a quitação integral da dívida. Essa insuficiência pode acarretar a permanência de um saldo devedor não satisfeito, em prejuízo do credor. Ademais, o procedimento de leilão tende a ser moroso, o que compromete a celeridade na satisfação do crédito.
Por outro lado, a realização do leilão extrajudicial, normalmente, é realizada por meio da contratação de um leiloeiro oficial, nos termos do Decreto nº 21.981/1932. Esse profissional faz jus a uma comissão de 5% sobre o valor dos bens alienados, que podem incluir móveis, mercadorias, joias e outros itens. Tal encargo adicional pode representar um entrave relevante à concretização do leilão, especialmente em contextos nos quais a liquidez e a celeridade são fatores determinantes para a efetiva satisfação do crédito.
Cumpre destacar, ainda, a edição da Resolução nº 288/2024 pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNPM), que regulamenta a atuação dos membros do Ministério Público em procedimentos que envolvam a apreensão, custódia e liquidação de ativos virtuais. Ao fundamentar a norma, o Presidente do CNMP ressaltou que, diante do expressivo crescimento no uso de ativos virtuais, os membros do Ministério Público têm se deparado, com frequência crescente, com situações que exigem a adoção de medidas relacionadas à gestão desses ativos, tanto em processos de natureza penal quanto cível. Dentre as diretrizes estabelecidas, destaca-se a orientação para que a alienação de ativos virtuais apreendidos ocorra, preferencialmente, por meio de corretoras devidamente autorizadas, garantindo maior transparência, rastreabilidade e eficiência na conversão dos ativos em moeda fiduciária, vejamos:
“Artigo 8º, § 2º: Na hipótese de apreensão de ativos através de sua transferência para carteira controlada pelo Estado, o membro do Ministério Público buscará autorização judicial para sua liquidação na prestadora de serviços custodiante.” (Resolução nº 288/2024).
Não obstante a orientação acima pelo CNPM, para que a alienação de ativos virtuais ocorra preferencialmente por meio de corretoras, entende-se ser juridicamente viável requerer a adjudicação desses ativos, nos termos do artigo 876 do Código de Processo Civil. A adjudicação consiste na possibilidade de o credor, havendo interesse, optar por receber o próprio bem penhorado como forma de satisfação de seu crédito, com a consequente transferência da propriedade do ativo e abatimento proporcional do valor da dívida.
Sob essa perspectiva, a adjudicação pode representar uma alternativa vantajosa tanto para o credor quanto para o devedor. Isso porque, além de não implicar custos adicionais para sua efetivação, essa modalidade evita os entraves e riscos associados à alienação de ativos virtuais, cuja volatilidade pode comprometer significativamente o valor arrecadado em leilão. Assim, a adjudicação se mostra como um meio mais célere e eficiente de liquidação da dívida, mitigando perdas patrimoniais decorrentes da oscilação desse mercado.
Conclusão
A crescente utilização de ativos virtuais no cenário econômico e financeiro brasileiro tem exigido do Poder Judiciário e dos operadores do Direito uma constante adaptação às novas dinâmicas patrimoniais. Nesse contexto, a possibilidade de penhora de criptoativos foi reconhecida pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº 2.127.038, consolidando o entendimento de que tais ativos podem ser objeto de constrição judicial, desde que observados os requisitos legais e técnicos pertinentes.
Entretanto, a efetivação dessa medida enfrenta desafios significativos, especialmente quando os ativos estão sob autocustódia do devedor ou depositados em corretoras estrangeiras sem representação no Brasil. Nesses casos, a ausência de mecanismos eficazes de rastreamento e cooperação internacional pode comprometer a efetividade da penhora e, por consequência, a satisfação do crédito.
Superada a etapa da constrição, a escolha da forma de alienação dos ativos virtuais torna-se crucial. Embora o leilão judicial ou extrajudicial seja uma via tradicional, a volatilidade dos criptoativos e os custos envolvidos podem torná-lo ineficiente. Diante disso, a adjudicação surge como alternativa mais vantajosa, permitindo que o credor, caso manifeste interesse, receba os próprios ativos como forma de pagamento. Essa modalidade, além de ser menos onerosa, tende a ser mais célere, mitigando os riscos de desvalorização e contribuindo para uma liquidação mais eficaz da dívida.
Diante dos pontos expostos e considerando as particularidades inerentes aos ativos virtuais e da ausência de regulamentação específica sobre sua alienação, conclui-se que é possível recorrer ao arcabouço legal já existente. Nesse contexto, a adjudicação se apresenta, na maioria dos casos, como a solução mais adequada, por conciliar economia processual, segurança jurídica e efetividade na satisfação do crédito.
____________
Referências:
BRASIL. CÂMARA DOS DEPUTADOS. PL 1600/2022: Dá nova redação à Lei n°13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), ao Decreto n° 70.235, de 6 de março de 1972 e à Lei n° 12.016, de 7 de agosto de 2009. Disponível aqui
Resp. 2.127.038, SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA – Decisão disponível aqui
SENRA, ALEXANDRE. Livro Criptoativos e Blockchain – Moeda e Bitcoin, Volume 1 de 2025.
DO MINISTÉRIO PÚBLICO, CONSELHO NACIONAL. Resolução nº. 288/2024. Disponível aqui
Fonte: Conjur


Deixe um comentário