O notário e a moralidade pública (parte 18)
Os hábitos, como se sabe, podem ser bons ou maus; estes chamam-se vícios; aqueles, virtudes. Os vícios, hábitos maus, opõem-se às virtudes, ora por deficiência, ora por excesso: assim, p.ex., à virtude da liberalidade opõem-se os vícios tanto da avareza (por déficit), quanto a prodigalidade (por exagero). Considerando a clássica afirmação de que in medio stat virtus –no meio (superior) está a virtude moral ou intelectual (embora caiba salientar que não há termo médio entre o verdadeiro e o falso)–, é frequentemente mais fácil encontrar o médio virtuoso a partir do contraste de seus extremos opostos.
Também a gratidão –ou agradecimento– possui dois vícios opostos, um por deficiência, outro por excesso, nada obstante seja comum designarmos ambos os vícios com um só vocábulo –ingratidão–, que, até pelo étimo, é propriamente referível ao déficit: ex gratitudinis defectu –falta de gratidão (S.th., II-IIæ., 107-2).
Se, em sentido especial, a gratidão consiste na virtude social (ou na disposição correspondente) cuja objeto é a recompensa de um benefício particular, a ingratidão é o vício que a ela se opõe, quer por excesso (p.ex., recompensando-se alguém que não seja benfeitor ou antes de que o benefício seja realizado), quer por deficiência.
Desta maneira, ao passo em que (i) a gratidão supõe o reconhecimento do benefício recebido, a ingratidão, por sua vez, não o reconhece, seja de modo intencional (ingratidão formal negativa), seja por negligência (ingratidão material negativa); (ii) a gratidão que se louve e, como o próprio nome o indica, dê-se graças aos benfeitores; a ingratidão despreza ambas estas ações; (iii) a gratidão diligencia honra e reverência ao superior benemérito ou o socorro ao benfeitor em posição inferior; a ingratidão abdica de fazê-lo, ou o faz fora do tempo e dos modais convenientes.
De tal sorte que a ingratidão possui três graus, como se lê na lição que segue:
“(…) o primeiro grau da ingratidão é não recompensar o benefício; o segundo, calá-lo, para não reconhecer-se necessitado de favores alheios; o terceiro, e mais grave, não querer reconhecê-lo, seja esquecendo-o, seja de qualquer outro modo” (S.Tomás, S.th., cit.).
E prossegue esta doutrina, extraindo agora outros aspectos desta gradação, quais (i) o de devolver mal por bem; (ii) o de criticar o benefício; (iii) o de reputar danoso o benefício recebido (hipóteses todas de ingratidão formal positiva).
A gratidão –e seu oposto: a ingratidão– radicam, como virtude e vício, na ordem ética natural, ou seja, elas respondem a um dado primordial constante da consciência humana, e é por isto mesmo notório o juízo crítico desfavorável que a todos nos toca diante das ingratidões. Meditemos, a propósito, sobre uma passagem evangélica que nos fala do tema; antes, porém, justifiquemos este recurso ao Novo Testamento, pois, tal o observou Ceslas Spicq,
“nada há de mais humano que a moral neotestamentária. Ela denuncia os mesmos vícios e preceitua as mesmas virtudes que os códigos judeus, gregos e romanos, vale dizer que ela reúne as demandas da consciência universal.”
Diz o evangelista S.Lucas (17,11-19) que Jesus estava entre a Samaria e a Galileia quando, ao entrar em uma aldeia, foi procurado por dez leprosos, que à distância lhe clamaram a cura e seguiram caminho, “ficando limpos”. Mas um só deles, um samaritano, voltou-se a agradecer o benefício recebido. Os outros nove prosseguiram seu caminho, empolgados (é muito provável) pelo vício capital da soberba.
Em resumo, sendo a gratidão uma virtude social –é dizer, uma parte potencial da justiça, um débito de honestidade e de conveniência no trato em sociedade–, a ingratidão é inconveniente e desonesta.
Mas como nem toda tardança em agradecer pode reputar-se viciosa (Sêneca já advertira o fato de que, algumas vezes, falta a possibilidade ou falta a oportunidade do agradecimento), melhor é desleixar o merecido castigo dos ingratos, pois, assim o disse ainda Sêneca, já o prêmio da boa obra está em a ter praticado (apud Royo Marín).