Esqueça a lembrança que vem à mente quando você ouve a palavra testamento. Durante a pandemia o que vem despertando maior preocupação não é a destinação do patrimônio após a morte, mas como seguir a vida em caso de ser acometido por doença grave.
 
Embora a palavra testamento remeta à ideia de bens a serem deixados em herança, o documento conhecido por testamento vital não tem qualquer relação com o testamento patrimonial. Refere-se a uma declaração de vontades para deixar clara a forma como a pessoa quer ser tratada caso venha a ter uma doença que a deixe impossibilitada de expressar-se livremente.
 
Criado na década de 1960 nos Estados Unidos, o testamento vital é algo relativamente recente no Brasil, mas a prática de escrever como quer ser tratado ou passar seus últimos dias, caso entre em estado terminal de doença, ganhou força com a chegada do coronoavírus ao país.
 
Pensar como gostaria de ser tratado durante a fase aguda de uma doença parece algo mórbido, mas a velocidade de contágio e, em alguns casos, o rápido agravamento da Covid-19 parecem ter despertado em muitos brasileiros a necessidade de avisar outras pessoas sobre como gostariam de ser cuidados, no caso desta ou de outras doenças, quando a medicina não puder mais curá-los e não houver mais consciência para externar o que pensam e sentem.
 
Ainda que o número de registros formais nos cartórios não tenha crescido de forma significativa (até porque há limitações no atendimento na maior parte das cidades), advogados que atuam na área de família confirmam aumento na procura por orientações quanto à elaboração do documento desde que os primeiros casos graves de Covid-19 começaram a ser registrados no Brasil.
 
“Em 3 meses de pandemia fiz o equivalente a 10% dos testamentos que tinha feito em 12 anos trabalhando com isso”, afirma a advogada Luciana Dadalto, tem mestrado e doutorado na área de Direito da Saúde e também pesquisa leis sobre autonomia em fim de vida e em casos de doenças sem cura ou possibilidades terapêuticas. “Essa pandemia está mostrando que a morte não bate só na casa do vizinho.”
 
As pessoas costumam procurar orientação profissional, porque não existe uma lei específica estabelecendo critérios para declarações de como alguém quer ser tratado no futuro.
 
O que é o testamento vital
 
“Esse é um documento redigido por uma pessoa no pleno gozo de suas faculdades mentais, com o objetivo de dispor acerca dos cuidados, tratamentos e procedimentos a que deseja ou não ser submetida quando estiver com uma doença ameaçadora da vida, fora de possibilidades terapêuticas e impossibilitado de manifestar livremente sua vontade”, explica Luciana Dadalto.
 
“Normalmente, as pessoas pensam no assunto depois de receber diagnóstico de uma doença incurável. Cientes das limitações pelas quais deverão passar, optam por deixar registrado, por escrito, como desejam ser tratadas para ter certeza de que terão sua vontade respeitada quando a doença avançar.
 
Toda doença crônica vai chegar à perda de autonomia e quando a gente perde a autonomia para decidir, o testamento vital vai ser a nossa voz.” Luciana Dadalto, advogada especialista em testamento vital
 
A declaração não precisa necessariamente ser registrada em cartório, pode ser reconhecida pela assinatura do autor e, se possível, também de testemunhas. E pode até ser escrita de próprio punho, embora seja mais recomendável buscar ajuda profissional, porque o documento corre o risco de perder a validade se ferir a lei.
 
Eutanásia ou suicídio assistido, por exemplo, não são permitidos no Brasil. A advogada ressalta que não adianta a pessoa ser adepta da ideia de tomar uma superdosagem de remédios para evitar a fase terminal, acelerando a morte, porque, mesmo que deixe essa intenção registrada, ela não poderá ser seguida por médicos ou parentes sob pena de incorrerem em crime.
 
“Testamento vital é um documento que tem um conteúdo técnico sobre recusa em aceitação de tratamento e as pessoas são leigas”, diz a advogada. “Em geral a gente tem ideia do que a gente não quer, mas não sabe os nomes certos dos procedimentos. Então é importante que se procure um médico de confiança para ajudar na elaboração. E eu sempre recomendo a ajuda de um advogado para evitar que o conteúdo do documento seja ilícito, contra a legislação brasileira. Isso prejudica muito a eficácia do documento no final”, ressalta Luciana.
 
No testamento, a pessoa pode especificar preferência por métodos menos invasivos e cuidados paliativos; tratamento em casa ou no hospital; quais remédios gostaria de usar, caso haja mais de uma opção, e até indicar um representante para tomar estas decisões em seu nome. Para deixar clara a manifestação de vontade, há inclusive, formas alternativas ao depoimento por escrito.
 
“O que significa um testamento? É traduzir a vontade da pessoa. Quer coisa mais fidedigna do que a pessoa falando num vídeo?”, pergunta o advogado Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Família (IBDFAM), que também registrou aumento na procura por testamentos vitais nos últimos meses.
 
“Eu recomendo aos meus clientes gravar um vídeo, porque na hora [fase terminal de uma doença] tem três irmãos, dois a favor de desligar os aparelhos, outro quer que fiquem ligados. E tem um testamento escrito e um vídeo. Fica mais fácil para ver o que a pessoa realmente queria. Quando você tem um vídeo, ele reforça a vontade do paciente.” Rodrigo da Cunha Pereira, advogado, presidente do IBDFAM.
 
Para evitar que o testamento vital fique “congelado” no passado, com o risco de, ao chegar a enfermidade – cinco, dez, 15 ou 20 anos depois de assinado o documento -, o paciente tenha mudado de ideia em relação aos tratamentos a que quer se submeter, e não consiga manifestar isso, recomenda-se que o testamento vital seja revisado com frequência. E também porque o avanço da ciência pode transformar medidas médicas que antes eram dolorosas ou humilhantes em meios corriqueiros para melhorar a qualidade de vida sem sofrimento – mas o paciente poderá não ter acesso a elas por ter proibido ou dificultado a atuação médica no testamento.
 
Entidades como o IBDFAM defendem que se criem leis para regrar o testamento vital, discussão que, atualmente, não existe no Congresso Nacional. Outros especialistas, porém, acreditam que o melhor é analisar caso a caso, sem legislação específica, para evitar que deputados e senadores aproveitem a discussão do tema para mudar as leis e permitir abusos que beirem a eutanásia, por exemplo.
 
As regras do CFM (Resolução 1995/2012), publicadas em 2012 para orientar a classe médica sobre como lidar com a vontade declarada de pacientes em estado terminal, servem de parâmetro para advogados e médicos na elaboração das diretivas antecipadas de vontade (DAV), nome também usado para o documento que relata o conjunto de intenções manifestadas por uma pessoa sobre cuidados e tratamentos de saúde que deseja ou não receber no momento em que não tiver mais capacidade de se expressar por motivo de doença.
 
Entre outros pontos importantes, a resolução afirma que o médico pode deixar de cumprir as DAV se tais desejos manifestados pelo paciente estejam “em desacordo com os preceitos ditados pelo Código de Ética Médica”.