Introdução e resumo do artigo
A doutrina não costuma despender muita atenção para uma espécie de garantia muito usual: a caução. É comum particulares receberem caução de dinheiro ou de outros bens como garantia do adimplemento de uma dívida.
Buscaremos, com objetividade e pragmatismo, tratar da natureza jurídica da caução e das principais repercussões no Direito Civil, no Processo Civil, no Direito Penal e no Direito Notarial e de Registro.
Para facilitar a leitura de algum leitor mais apressado, resumimos aqui o que será tratado neste artigo.
O texto detalha aspectos pouco explorados pela legislação e pela doutrina sobre a “caução de bens”. A caução é muito usual no quotidiano, mas o seu regime jurídico é obscuro. O texto pretende contribuir com a sistematização desse instituto. Em suma, entre outras questões, estabelece o seguinte:
2) Na caução em dinheiro como direito obrigacional, se houver inadimplemento da dívida garantia, o caucionário pode simplesmente abster-se de pagar ao caucionante o valor equivalente ao da caução com base na exceptio non adimpleti contractus. Não há necessidade da propositura de ação judicial de execução da caução (capítulo 3.1.)
3) Na caução de dinheiro, se o credor caucionário não tiver dever legal ou contratual de manter segregado os valores em um determinado local (conta bancária, aplicação financeira etc.), a propriedade do dinheiro continua sendo do devedor caucionante, de maneira que: (a) a não devolução do valor por dolo pode configurar crime de apropriação indébita; (b) o dinheiro não poderá ser penhorado por dívidas pessoais do credor caucionário; (c) o credor caucionário não poderá valer-se da impenhorabilidade da poupança prevista no art. 833, X, do CPC; e (d) não haverá proteção do bem de família se este tiver sido adquirido após o recebimento da caução pecuniária (capítulo 3).
4) Se a caução em dinheiro não tiver sido acompanhada de um dever legal ou contratual de o credor caucionário guardar a coisa em um local específico, a propriedade do dinheiro passará a ser do credor caucionário, que terá uma obrigação de dar (e não restituir) um valor equivalente ao final do contrato se não houver inadimplemento. Daí decorre que: (a) não há falar em crime de apropriação indébita; (b) dívidas pessoais do credor caucionário poderão acarretar penhora do dinheiro que o caucionário tiver consigo; (c) o credor caucionário pode valer-se da impenhorabilidade da poupança na forma do art. 833, X, do CPC e do bem de família (capítulo 3).
5) Se inexistir lei dando eficácia erga omnes, a caução de imóveis é devida como simples direito obrigacional, mas não poderá ingressar na matrícula do imóvel. Se, porém, houver lei, a caução de imóvel será um direito obrigacional com eficácia real ou um direito real e, nessa condição, poderá ingressar no álbum imobiliário no Cartório de Imóveis.
6) No caso de locação predial urbana, a caução de imóveis é um direito obrigacional com eficácia real, pode ser instituída por instrumento particular (não se aplica o art. 108 do CC) e é objeto de ato de averbação na matrícula do imóvel (capítulo 4).
7) A caução de direitos aquisitivos e creditórios relativos a imóveis é direito real e deve ser averbada na matrícula do imóvel (capítulos 5 e 6).
8) A caução de direitos de créditos pode livremente ser estipulada como simples direitos obrigacionais. Se houver lei específica, ela será um “direito obrigacional com eficácia real” ou um direito real. Se o crédito for hipotecário ou pignoratício, é necessária a averbação no registro público competente (capítulo 7).
Definição e natureza jurídica (Direito real ou obrigacional)
Caução em sentido amplo significa qualquer tipo de garantia de uma dívida, mesmo as fidejussórias (como fiança). O art. 826 do CPC utilizada essa acepção ampla quando afirma que “a caução pode ser real ou fidejussória”.
Caução em sentido estrito é aquela que envolve a entrega de um bem em garantia de uma dívida. Também pode ser chamada de caução real, porque é focada na entrega de uma coisa, como dinheiro, veículos e até imóvel. Na prática, quando a legislação e os contratos se valem do verbete “caução”, está referindo-se a essa acepção estrita. Aqui também estaremos reportando-nos a essa acepção quando utilizarmos o vocábulo “caução” sem fazer ressalvas.
A caução (sentido estrito) é, em regra, um direito obrigacional e, como tal, não tem eficácia erga omnes. Decorre do princípio da autonomia da vontade e não depende de previsão legal específica. Entre particulares, é cabível a estipulação de caução de bens livremente, mas esse pacto, se envolver imóveis, não poderá ingressar na matrícula do imóvel por não ter eficácia erga omnes.
Excepcionalmente a caução poderá assumir eficácia erga omnes, (1) se for materializada mediante a instituição de um direito real de garantia, como hipoteca ou penhor ou (2) se houver lei expressa emprestando essa eficácia erga omnes.
Quanto ao primeiro caso, é viável que a caução seja dada em forma de uma hipoteca ou um penhor, caso em que a caução será o próprio direito real de garantia selecionado. Assim, um particular pode, em caução, instituir uma hipoteca em favor de outrem.
No tocante ao segundo caso, a lei poderá dar eficácia erga omnes a uma caução por dois modos.
De um lado, a lei criar um direito real, batizando a caução expressamente como tal. É o que se dá com a caução de direitos aquisitivos relativos a contratos de alienação de imóveis (art. 17, § 1º, da lei 9.514/97).
De outro lado, a lei pode estabelecer um “direito obrigacional com eficácia real”, emprestando eficácia erga omnes sem classificá-lo como um direito real. E pode fazê-lo indiretamente, ao determinar a publicidade da caução em um órgão de registro público. A caução de bens em locação é exemplo disso (art. 38 da Lei de Inquilinato – lei 8.245/91).
Não é meramente estética a distinção. Se a caução for direito real e envolver imóvel de valor superior a 30 salários mínimos, haverá necessidade de escritura pública na forma do art. 108 do CC. Se, porém, a caução for direito obrigacional com eficácia real, não se aplica o art. 108 do CC.
Sem lei, não há como atribuir eficácia erga omnes à caução em razão do princípio da legalidade: terceiros não podem ser obrigados a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei.
A doutrina é rarefeita sobre o tema. Destacamos, nessa seara, didático artigo do notável registrador João Pedro Lamana Paiva.
Caução de dinheiro
Definição e “execução” da garantia
A caução em dinheiro como direito obrigacional é a aquela baseada genericamente no princípio da autonomia da vontade. Trataremos dela aqui.
Quando a caução consiste na entrega de um dinheiro, como esta coisa é fungível, a tradição transfere a propriedade do dinheiro ao credor, que, em contrapartida, se obriga a pagar um valor equivalente após o pagamento da dívida garantia. A rigor, o credor não irá “restituir”, e sim “pagar” o valor da garantia, pois ele se tornou proprietário da soma de dinheiro que havia sido entregue. “Restituir” é verbo usar para devolver coisa que pertence a outrem. Processualmente, cabe ao devedor ajuizar ação cobrando a restituição do valor se o credor voluntariamente não o fizer após o pagamento da dívida garantida.
No caso de inadimplemento da dívida garantida, o credor não precisará ajuizar uma ação de execução da caução em dinheiro. Bastará ele abster-se de devolver o dinheiro até o valor da dívida garantida, tudo com base na exceptio non adimpleti contractus (art. 476, CC). Não há de ser invocado aqui a “proibição do pacto comissório” previsto no art. 1.428 do CC, pois essa vedação é apenas para direitos reais de garantia, e não para direitos obrigacionais.
Entendemos ser desnecessário ele buscar uma homologação judicial ou uma expropriação judicial, pois, desde a tradição do dinheiro dado em caução, o credor já havia se tornado dono da coisa, de modo que, com o inadimplemento da dívida garantida, o credor poderá invocar a exceptio non adimpleti contractus.
Caução de dinheiro em forma de penhor: o problema da fungibilidade do objeto
Questão curiosa é: seria cabível uma caução em dinheiro por meio de um penhor do dinheiro?
Em regra, entendemos ser inviável o penhor sobre dinheiro diante da sua fungibilidade, que acaba acarretando a transmissão da propriedade com a tradição. O credor pignoratício tem de ser um depositário da coisa, mas, como o dinheiro é fungível, ele não é propriamente um depositário, e sim uma espécie de mutuário por força dos arts. 587, 645 e 1.435, I, do CC. O direito real de penhor exige uma individualização do objeto (especialização objetiva), o que não existe nesse caso diante do fato de o dinheiro entregue pelo devedor em garantia se perder dentro do patrimônio do credor.
Excepcionalmente, entendemos ser viável o penhor do dinheiro se este for individualizado enquanto uma determinada universalidade de direito por contrato ou por lei. E há essa individualização quando, por contrato ou lei, o credor pignoratício se torna obrigado a manter o dinheiro recebido em separado, seja em uma conta bancária, seja em uma aplicação financeira, seja em um local físico.
Atenta-se que o bem empenhado aí (“o dinheiro”) não é um bem singular (art. 89, CC), e sim uma universalidade de direito (art. 91, CC). De fato, o bem empenhado não é uma moeda ou uma cédula, e sim uma expressão econômica que será tratada como uma unidade (ex.: uma quantia de R$ 30.000,00). Universalidade de direito é uma espécie de bem coletivo e consiste na pluralidade potencial de bens singulares com destinação única por força de norma legal ou contratual. Na universalidade de direito, a substituição de um bem singular por outro é admitido, mas o bem substituto passará a ser integrante da universalidade (sub-rogação real). No exemplo, ao entregar R$ 30.000,00 em garantia estipulando a conservação desse valor em uma determinada conta bancária, a expressão econômica (trinta mil reais) é uma universalidade de direito e está individualizada. Entendemos que, nesse caso, o devedor continua sendo proprietário dessa universalidade de direito. O fato de o credor poder substituir cédulas de R$ 100,00 pelo equivalente em cédulas de R$ 50,00 não infirma tal constatação, pois aí terá se operado uma sub-rogação real dentro da universalidade de direito.
Situação similar em hipóteses em que um advogado, com procuração, levanta um dinheiro depositado em juízo para entrega posterior ao cliente. O dinheiro está individualizado aí, de maneira que a sua propriedade continua sendo do cliente, e não do advogado.
Daí decorrem consequências práticas. Por exemplo, se, como o devedor ainda é proprietário do dinheiro dado em caução para ficar em uma determinada conta bancária, se eventualmente a coisa se perder fortuitamente (ex.: um hacker rouba todos os valores depositados), o prejuízo ficará com o dono da coisa, ou seja, com o próprio devedor diante da regra do res perit domino (a coisa perece para o dono), pois o credor não era proprietário do valor dinheiro dado em garantia.
Resumindo, a regra é a de que a entrega do dinheiro em garantia transmite a propriedade diante de sua fungibilidade e da falta de sua individualização, de modo que, em regra, não é cabível o penhor de dinheiro. Excepcionalmente, quando o dinheiro entregue em garantia tiver de ser armazenado em um determinada conta bancária ou em outro lugar, a coisa (o dinheiro, entendido como uma expressão econômica) é uma universalidade de direito individualizada, de maneira que será cabível o penhor do dinheiro nesse caso em razão de a entrega dessa coisa não transmitir a propriedade ao credor.
Portanto, a caução em dinheiro poderá assumir a forma de penhor apenas se for determinada a conservação da coisa em uma determinada conta bancária, aplicação financeira ou outro local.
Caução de dinheiro em locação urbana
No caso de locação de imóvel urbano, o § 2º do art. 38 da Lei de Inquilinato (lei 8.245/91) estabelece que a caução em dinheiro tem de ser necessariamente ser depositada em uma caderneta de poupança para, quando do levantamento do valor, o inquilino se beneficiar dos rendimentos dessa aplicação financeira.
Nesse caso, entendemos que a lei do inquilinato individualizou o dinheiro enquanto uma determinada universalidade de direito, conforme já exposto no subcapítulo anterior, de maneira que a propriedade ainda é do inquilino: a tradição da garantia pecuniária não transmitiu a propriedade. Reitere-se que, ao se referir ao “dinheiro”, não estamos tratando da moeda ou das cédulas (bens singulares), e sim da expressão econômica (ex.: R$ 30.000,00), que é uma universalidade de direito por força de lei ou do contrato (art. 91, CC).
Repercussões práticas
Direito Penal: retenção da caução em dinheiro vs crime de apropriação indébita
Como, em regra, a tradição do dinheiro dado em caução transmite a propriedade, entendemos ser equivocado considerar que o fato de o credor não entregar de volta o valor equivalente configuraria crime de apropriação indébita. Não há aí o elemento “coisa alheia móvel” do tipo penal desse crime (art. 178, CP).
Situação diferente seria se o dinheiro dado em caução tivesse de ficar armazenado em algum local específico por força do contrato (conta bancária, aplicação financeira etc.), pois aí a coisa (“o dinheiro”), enquanto universalidade de direito, ainda continuaria sendo de propriedade do devedor, tudo conforme já expusemos. Nesse caso, a não devolução da caução em dinheiro por dolo configuraria o elemento típico “coisa alheia móvel” do crime de apropriação indébita.
Sob esse prisma, no caso de caução de dinheiro em locação urbana, consoante já exposto, a tradição não transmitirá a propriedade do dinheiro, entendido como uma universalidade de direito e tido como infungível, de sorte que haverá o crime de apropriação indébito se dolosamente o locador não o restituir.
Processo Civil: penhora do dinheiro dado em caução por credores de quem o recebeu e hipótese de falência
É ou não cabível a penhora desse dinheiro por credores pessoais de quem recebeu a caução? E, no caso de falência de quem recebeu a caução, o dinheiro irá ser atraída pela vis attractiva do juízo falimentar de modo que o quem deu a caução teria de se habilitar no quadro geral de credores?
Precisamos distinguir o modo como a caução pecuniária foi pactuada. Há dois casos.
A primeira é a da caução em que, por lei ou por contrato, o dinheiro tenha de se manter individualizado em um determinado local (conta bancária etc.). Nesse caso, conforme já expusemos, a propriedade do dinheiro – entendido como uma universalidade de direito – continua sendo do devedor. Por isso, o credor caucionário não é proprietário do dinheiro, de modo que este não poderá ser penhorado por dívidas pessoais que ele tenha nem tampouco será sugado pela vis attractiva do juízo falimentar. A propósito, no caso de falência, bastará ao devedor caucionante formula simples pedido de restituição do dinheiro, sem necessitar habilitar-se no quadro-geral de credores (art. 85, lei 11.101/05).
A segunda hipótese é a de que não havia obrigação legal ou contratual de o dinheiro caucionado fosse conservado em um determinado local específico. Nesse caso, conforme já explicamos, o credor caucionário se tornou proprietário do dinheiro no momento em recebeu o dinheiro, razão por que este poderá ser penhorado por dívidas pessoais suas e será atraída pela força atrativa do juízo falimentar de modo a despachar o devedor caucionante ao transtorno de engrossar a fileira do quadro-geral de credores para receber seu crédito.
Processo civil: cobrança da restituição da caução pecuniária vs impenhorabilidade do bem de família e da poupança
Se o devedor caucionante, após pagar a dívida, cobrar a restituição da caução, indaga-se: o credor caucionário poderá invocar a impenhorabilidade do bem de família (lei 8.009/90) ou da poupança até 40 salários-mínimos (art. 833, X, CPC)?
Há duas situações, conforme já exposto.
A primeira situação é o caso de o dinheiro ter sido individualizado mediante comando legal ou contratual que ordenava sua conservação em um determinado local (ex.: conta bancária). Nesse caso, o credor caucionário não se torna proprietário do dinheiro com a tradição; o dono é o devedor caucionante.
Sob essa ótica, não se poderá alegar a impenhorabilidade da poupança na forma do art. 833, X, do CPC, pois o dinheiro lá depositado se presume, até o valor da caução, pertencer ao devedor caucionante. O dinheiro, enquanto universalidade de direito, é propriedade deste último.
No entanto, se o credor caucionário não tiver dinheiro em suas contas bancárias, há presunção de que ele cometeu crime de apropriação indébita. Por essa razão, somente será cabível a penhora do bem de família dele para pagamento do valor caucionado se esse bem de família tiver sido adquirido após a entrega da caução, pois aí se presumirá que essa aquisição ocorreu com uso do dinheiro dado em caução, a configurar uma exceção à impenhorabilidade do bem de família: a da aquisição do bem de família com produto de crime (art. 3º, VI, lei 8.009/90).
A segunda hipótese é a de caução pecuniária sem individualização da coisa. Nesse caso, o credor caucionante se tornou proprietário do dinheiro e tem apenas uma obrigação de dar (e não de restituir) um valor equivalente ao da caução ao final do contrato. Por isso, essa sua obrigação será tratada como as demais dívidas em geral, de maneira que não poderá furar a impenhorabilidade legal da poupança até 40 salários-mínimos nem a do bem de família.
Caução de imóvel em locação urbana
Noções gerais, execução e atos no Cartório de Registro de Imóveis
A caução de imóvel é admissível em qualquer hipótese na condição de mero direito obrigacional. Não poderá, no entanto, ser averbada na matrícula do imóvel para produzir efeitos erga omnes sem uma lei específica.
De fato, se não houver lei, a caução de imóvel terá natureza meramente obrigacional com eficácia inter partes e, portanto, não poderá ingressar na matrícula no Cartório de Imóveis. Em consequência, o credor sofrerá prejuízos se o devedor alienar ou hipotecar o imóvel, pois o adquirente ou o credor hipotecário terão direitos reais e, assim, prevalecerão sobre o credor caucionário. Do ponto de vista processual, para executar a garantia, o credor caucionário terá de pleitear judicialmente a penhora do imóvel caucionado, pois a transmissão da propriedade dela depende de registro no Cartório de Imóveis.
Se, porém, houver lei dando eficácia erga omnes – o que acontece quando a lei autoriza o ingresso da caução de imóveis na matrícula no Cartório -, a caução de imóvel deverá ser lançada na matrícula do imóvel e, assim, deixará o credor caucionário protegido de posteriores adquirentes ou credores hipotecários. Um exemplo de caução de imóveis que pode ser averbada na matrícula é aquela prestada como garantia de aluguel de imóvel urbano por força do art. 38 da Lei de Inquilinato (lei 8.245/91). Essa caução de imóvel no âmbito de locação urbana é um “direito obrigacional com eficácia real”, e não um “direito real”, por falta de um batismo legal.
Nesse caso, o ato a ser praticado na matrícula é de averbação por força desse dispositivo, e não ato de registro. Entendemos ser atécnica a opção do legislador por ato de averbação pelo fato de o ingresso da caução na matrícula configurar uma constituição de direito (o que tecnicamente recomendava o ato de registro, e não de averbação).
Direito Notarial e de Registro: dispensa de escritura pública e registro na matrícula
Em qualquer caso dos casos de caução supracitados, a caução é um direito obrigacional, ainda que, no caso de caução de imóvel no âmbito de locação urbana, a caução seja um “direito obrigacional com eficácia real”. Daí decorre que não se aplica o art. 108 do CC e, portanto, a caução de imóvel nesses casos pode ser formalizada por meio de instrumento particular: não há necessidade de escritura pública ainda que o imóvel valha mais do que 30 salários-mínimos.
Se, porém, a caução de imóvel for dada mediante a instituição de uma hipoteca, aí haverá necessidade de escritura pública se o imóvel for de valor superior a 30 salários-mínimos, pois, nesse caso, o art. 108 do CC será aplicável para a instituição da hipoteca.
Ademais, se existisse alguma lei estabelecendo textualmente uma caução de imóveis como “direito real”, seria aplicável a exigibilidade de escritura pública do art. 108 do CC.
Caução de direitos aquisitivos sobre imóvel
Direitos aquisitivos sobre imóvel construído ou “na planta”, como os direitos do promitente comprador e do devedor fiduciante, podem ser objeto de caução na forma dos arts. 17, § 1º, e 21 da lei 9.514/1997. Essa caução pode ser pactuada por instrumento particular por permissão expressa do art. 38 da lei 9.514/97 e deverá ser averbada na matrícula do imóvel por força do art. 167, II, “8”, da LRP.
É o caso, por exemplo, do adquirente de um imóvel “na planta” (em regime de incorporação imobiliária”) que, após já ter pago 60% das prestações do preço, decide oferecer o seu direito aquisitivo em garantia de alguma dívida pessoal perante terceiros. Essa garantia poderá ser formalizada por uma caução de direitos creditórios, na forma do art. 21 da lei 9.514/1997.
A caução de direito creditório é um direito real, e não um direito obrigacional com eficácia real, pois o art. 17, § 1º, da lei 9.514/97 textualmente o diz.
Em regra, essa caução não depende de prévio consentimento do alienante. Todavia, se o direito aquisitivo for decorrente de uma alienação fiduciária em garantia, o devedor fiduciante só poderá caucionar o seu direito aquisitivo a terceiros mediante prévio de prévio consentimento do credor fiduciário por força do art. 29 da lei 9.514/1997. Esse dispositivo exige consentimento do credor fiduciário para a transmissão do direito aquisitivo e, por consequência, exige indiretamente para a caução desse direito (afinal de contas, a caução destina-se a uma possível transmissão em sede de execução da garantia).
Caução de direito creditório decorrente de contratos preliminares ou definitivos de alienação de imóveis
O art. 17, § leiLei nº 9.514/97) e deverá ser averbada na matrícula do imóvel (art. 167, II, “8”, da LRP).
A título ilustrativo, suponha que a empresa Incorporadora Legal Ltda caucione, para o Banco da República S/A, os créditos que ela possui perante os consumidores em razão da venda de imóveis “na planta”. Essa caução é feita em garantia do pagamento de empréstimo que a empresa contraíra com o Banco para financiar a construção do prédio.
Na prática, porém, a caução de direito creditório não é utilizada nem é recomendada, pois há um outro direito real mais vantajoso para o credor: a cessão fiduciária de direito creditório (arts. 17, § 1º, 18, 19 e 20 da lei 9.514/97). A principal vantagem da cessão fiduciária é que o credor fiduciário (cessionário) se tornar titular resolúvel do crédito e, portanto, terá vantagens na execução da garantia, como, por exemplo, no caso de falência do devedor fiduciante: o credor fiduciário fará mero pedido de restituição e não precisará participar do quadro-geral de credores se o título representativo do crédito ainda estiver com o devedor fiduciante (art. 20, lei 9.514/97).
Caução de direitos de crédito, inclusive os hipotecários ou pignoratícios
Direitos de crédito podem ser objeto de caução, que, em regra, terá eficácia meramente obrigacional, salvo se houver lei dando-lhe eficácia real ou batizando-a como direito real.
Se o crédito a ser caucionado estiver garantido por uma hipoteca (crédito hipotecário) ou penhor (crédito pignoratício), a caução é igualmente admitida e implicará que o caucionário poderá aproveitar-se da hipoteca ou do penhor. Nesse caso, será necessária a averbação da caução na matrícula do imóvel se se tratar de crédito hipotecário (art. 289, CC) ou às margens do registro do penhor no Cartório de Registro de Títulos e Documentos.
Entendemos que o único obstáculo à caução de direitos de crédito é se estes não puderem ser cedidos por força de lei, de pacto ou da natureza da obrigação, pois a caução destina-se a, em último caso, permitir que o crédito seja expropriado judicialmente.
Seja como for, para evitar dúvidas que imperavam na década de 1930, o Presidente Getúlio Vargas editou o decreto 24.778/1934, cuja razão de ser foi dissipar – para copiar excerto dos Considerandos dessa norma – “dúvidas quanto à validade do penhor, ou caução, de créditos hipotecários e pignoratícios, dúvidas que ainda perduram apesar de as ter resolvido, implicitamente, o decreto 21.449, de 9 de junho de 1932, que incluiu tais cauções entre as operações da Caixa de Mobilização Bancária”. Esse Decreto permanecesse em vigor, conforme chegou a ser atestado expressamente pelo decreto 3.329/2000.
Conclusão
A legislação não possui a clareza devida acerca da caução enquanto uma importante garantia bem popular. A doutrina também não costuma debruçar sobre essa espécie de garantia. Nosso objetivo aqui foi delinear os principais efeitos jurídicos da caução a fim de contribuir para o debate.
O Congresso Nacional precisa aprofundar a discussão, pois há necessidade de ajustes na legislação. E, entre essas reflexões, convém ser tratado de outras modalidades de garantia que seriam bem-vindas no Brasil, como a hipótese da garantia flutuante, que encontra paralelo no floating charge da Inglaterra e no floating lien dos Estados Unidos e que é bem tratado pelo catedrático da Faculdade de Direito de Lisboa Luís Manuel Teles Menezes Leitão em sua obra “Garantia das Obrigações”, ao qual reportamos o leitor.