No ano em que a pandemia confrontou os brasileiros com a ameaça de morrer, número de testamentos foi recorde no país
 
Acostumada a presenciar discussões de clientes em inventários, a advogada paulistana Giselle Ferrari, de 46 anos, pensava em fazer um testamento para prevenir futuros problemas familiares. “Já presenciei brigas enormes de família. Recentemente fizemos um inventário onde um irmão não queria ver o outro, tínhamos que usar salas separadas no escritório. Isso é muito frequente”, lembra. Mesmo assim, o testamento era pensado como plano para o futuro, quando a velhice chega e faz pensar que a morte está próxima. Mas veio a pandemia, e Ferrari perdeu vários amigos, inclusive mais novos do que ela. Com o vírus amedrontando o mundo, o risco parecia mais próximo, e a reflexão sobre a morte, única certeza da vida, se tornou mais frequente.
 
O que não era urgente se tornou prioridade. Sem filhos, divorciada, Ferrari oficializou em 2020 um testamento deixando seu patrimônio para as sobrinhas de 11 e 15 anos. “Elas têm outro parente que tinha feito o documento, então meio que já entendiam e ficaram supercontentes que vou deixar minhas coisas para elas”, relata a advogada. O processo foi concluído em uma semana.
 
Como Ferrari, muitos outros brasileiros passaram a se preocupar mais com a própria morte por causa da pandemia. Durante os primeiros cinco meses deste ano, os cartórios de notas do país registraram 13,9 mil testamentos, o maior número desde 2010, primeiro ano do levantamento. Antes disso, o recorde fora em 2017, com 12,3 mil testamentos até maio. Segundo os dados do Colégio Notarial do Brasil (CNB/CF), considerando o “ano pandêmico” de julho de 2020 a junho de 2021, foram registrados 37 mil testamentos, crescimento de 23% em relação aos 30 mil feitos de julho de 2018 a junho de 2019. A diretora do CNB/CF, Ana Paula Frontini, diz que a pandemia é a explicação: “O medo de morrer foi maximizado pela pandemia, a morte ficou muito próxima da gente. A pandemia trouxe essa consciência e, consequentemente, esse desejo de refletir sobre sua sucessão, porque, normalmente, as pessoas não gostam de falar da morte.”
 
O Amazonas, um dos estados brasileiros que mais sofreram com a crise ocasionada pela pandemia, apresentou o maior aumento percentual de testamentos em 2021 na comparação com os cinco primeiros meses de 2020 – 107%. Somente em janeiro e fevereiro deste ano, o estado teve 5,7 mil vítimas da Covid e em março registrou número recorde de emissão dos documentos, 32. Nos três primeiros meses de 2021, o Amazonas emitiu 55 testamentos, no mesmo período de 2020, foram 35. Em números absolutos, São Paulo, onde vive Ferrari, foi o que mais registrou testamentos até maio, 4,3 mil. Depois vêm o Rio Grande do Sul, com 1,8 mil, e o Rio de Janeiro, com 1,5 mil.
 
Fazer um testamento garante que a vontade do morto sobre a divisão de seus bens prevaleça, evitando – ou pelo menos reduzindo – discussões entre parentes. Também permite incluir como beneficiários pessoas não incluídas entre os chamados “herdeiros necessários” (pais, filhos e cônjuge), assegurar garantias futuras ao cônjuge ou até assumir filhos não reconhecidos em vida.
 
Além do testamento que define a distribuição de bens, aberto após a morte do cliente, outro tipo de documento atraiu a atenção dos brasileiros este ano: as Diretivas Antecipadas de Vontade (DAVs), ou o testamento vital, documento em que a pessoa deixa definidas suas diretrizes sobre tratamentos e procedimentos em caso de inconsciência. É esse documento, aberto em vida, que diz, por exemplo, se a pessoa deseja ter a vida prolongada por meio de intervenções hospitalares mais invasivas, se quer ou não ficar respirando por aparelhos, se concorda em ser mantida em coma induzido e por quanto tempo. No ano marcado pela Covid-19, a possibilidade da morte cada vez mais presente fez com que os testamentos vitais também crescessem: foram 297 até maio, maior número para o período desde 2008 e 85% maior que o total dos cinco primeiros meses de 2020.
 
O CNB/CF também atribui o aumento à facilidade de realizar o testamento online, algo que se tornou possível na pandemia. Desde junho do ano passado, qualquer pessoa pode dar início ao processo do testamento e realizar tudo de forma online através do portal e-Notariado.
 
Mesmo com a versão online, fazer um testamento ainda foge do orçamento de muitos – o valor difere entre os estados, mas a média é de 1,7 mil reais, e o acompanhamento de um advogado é opcional. Para Ferrari, valeu o esforço financeiro: “Fiz inventários de clientes que faleceram depois de ter feito o meu testamento, vi muitas confusões, eu pensava que ainda bem que já estava com aquilo meio acertado. Não me arrependi de ter feito.”
 
Se aos 46 anos a advogada se considera jovem para ter um testamento, Frontini, do CNB/CF, diz que idade não é impedimento para quem deseja optar pelo serviço, permitido a qualquer um acima de 16 anos. Mas, após a pandemia, o sentido dessa preocupação com a morte e o testamento mudou. “Antes o perfil das pessoas que iam no cartório pra fazer testamento eram as pessoas com patrimônio, a preocupação era exclusivamente patrimonial. Depois da pandemia isso mudou, virou um perfil de pessoas que estão preocupadas em serem pegas de surpresa com a morte. Nunca teve ligação com a idade, mas com a razão da procura.” A razão, nesse caso, foi o vírus que matou 537 mil pessoas no país e obrigou os brasileiros a, mais do que nunca, pensar na própria morte.