Elas precisam lutar contra o estereótipo de cruéis, conquistar seu espaço e serem aceitas pelos enteados. Ainda dizem que precisam provar que não são as vilãs da casa
 
Para uma parcela – cada vez maior – de mulheres, histórias como as de Cinderela e Branca de Neve deixaram de ser enredos encantadores. “Os contos de fada sempre nos colocam numa posição de bruxas”, desabafa a analista judiciária Ana Carolina Reis Paes Leme, 38. Ela poderia até escrever um livro com suas experiências como madrasta. Sim, experiências, no plural mesmo. “Já fui madrasta de uma garota de 17; depois, de duas meninas de 10 e 12 anos e, hoje, sou madrasta de um menino de 6 anos e de dois adultos, de 23 e 26 anos”, revela. “Ah, também sou ‘vodrasta’. Minha enteada mais velha tem um filho de 3 anos”, completa.
 

“Parece que a gente entra na história devendo. Precisamos provar que não vamos ser a ‘bruxa má’. É desgastante a sensação de não poder errar apenas porque existe esse estereótipo””
 
Mariana Camardelli, educadora parental, terapeuta, escritora e madrasta

 
Para a psicóloga e psicoterapeuta Patrícia Burlaud Gomes, especialista em Terapia Cognitivo Comportamental, que hoje vive na França e atende brasileiros e europeus em consultas online, sem dúvida, o papel de “madrasta má”, tão propagado por filmes, ocupa o imaginário de adultos e crianças. “Pessoas podem ter atitudes consideradas más e elas podem ser mães, madrastas, avós, pais, padrastos e por aí vai. O papel que uma pessoa ocupa não define seu caráter. Atendo muitas madrastas que se enxergam como inferiores justamente pelo estigma alimentado socialmente. Isso afeta a autoestima, a segurança e, algumas vezes, desencadeia sintomas de ansiedade, depressão e estresse excessivo”, explica.
 
E nem sempre é fácil desconstruir essa imagem. Depois de alguns conflitos, Ana Carolina decidiu buscar ajuda para compreender melhor o seu papel. “Hoje, acredito que consegui achar um equilíbrio”, afirma.
 
Fora das estatísticas
 
Essas experiências são cada vez mais comuns, no entanto, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não existem dados específicos sobre a população de madrastas. O que há são números sobre cônjuges e filhos do Censo Demográfico de 2010 – a primeira vez em que o órgão considerou enteados na pesquisa. Na época, de um total de 25 milhões de casais com filhos, mais de 2,5 milhões tinham filhos de apenas um dos cônjuges.
 
E esse volume pode ter aumentado muito, considerando a quantidade de divórcios. Em dez anos, segundo dados do Colégio Notarial do Brasil – Seção São Paulo (CNB), o número de casais que se separaram aumentou 63% no país. No estado de São Paulo, a taxa foi ainda maior: 85%. Segundo o CNB, a tendência é que os números de 2021 também tenham alta, impulsionados pela pandemia. “Antes, muitos casais conviviam pouco e empurravam questões conjugais para depois. Com o isolamento, os problemas foram expostos”, explica a advogada Barbara Heliodora, presidente da Comissão de Alienação Parental da OAB Niterói (RJ).
 
Diante disso, fica evidente a necessidade de debater o assunto. “A falta de informação colabora para que a relação com os enteados seja mais desafiadora. Por mais que, na prática, as constituições familiares sejam plurais, o fato de não se falar rotineiramente sobre ‘madrastidade’ [termo usado em discussões de grupos de madrastas, unindo a palavra madrasta com maternidade] não permite que o tema seja tratado de forma mais natural”, alerta Patrícia.
 
Por mais espaço
 
Mariana Camardelli, 35, que é educadora parental, terapeuta e escritora, além de enteada, madrasta e mãe, “nesta ordem”, brinca, não se contentou com a falta de diálogo. “A vontade de fazer parte de um grupo que apoiasse as madrastas existe desde que eu me tornei uma, há seis anos. Nunca encontrei nada parecido e foi por isso que decidi criá-lo. É um papel cheio de preconceitos e pode ser muito solitário”, completa. Hoje, o Somos Madrastas já possui 25 subgrupos de WhatsApp, com cerca de 600 pessoas ao todo. Ela conta que, durante os bate-papos, duas questões sempre estão presentes: “Uma é que parece que entramos na história devendo, sabe? Precisamos provar que não vamos ser ‘bruxas más’. É desgastante a sensação de não poder errar apenas porque existe esse estereótipo. Outra angústia é a de não saber qual é o seu papel: até onde falar? Como se comportar? Pouco se conversa abertamente sobre o tema, o que colabora para reforçar ainda mais o tabu”, lamenta.
 
Quem passou pela experiência concorda que não é fácil, mesmo quando se entra na relação sabendo que o outro tem filhos. Uma bióloga gaúcha, que preferiu não se identificar, conta que o contato com a mãe da enteada, que tem 5 anos, é “turbulento”. “Não conseguimos construir uma relação de respeito porque, muitas vezes, ela usa a filha como ‘moeda de troca’. Se não a buscamos na hora que ela quer ou não pagamos o que pede, nega convívio”, diz.
 

“Pessoas podem ser más, e elas podem ser mães, madrastas, avós, pais, padrastos e por aí vai. O papel que uma pessoa ocupa não define o caráter dela””
 
Patrícia Burlaud Gomes, psicóloga, psicoterapeuta e madrasta
 

Mas nem todas as relações são complicadas. A mãe de duas meninas de Nova Lima, interior de São Paulo, que também preferiu ficar no anonimato, conta que o enteado de 4 anos é fruto de um caso do marido. Apesar disso, ela e a mãe da criança conseguiram construir um relacionamento de respeito. “Até o sétimo ano, nosso casamento foi conturbado e brigávamos muito. Até que decidimos morar fora do país e, lá, ele passou por uma grande mudança, deu mais valor para a família”, lembra. Porém, um tempo depois, veio a notícia de que ele tinha um filho pequeno no Brasil. “Foi bem difícil, mas decidi que continuaríamos juntos. Desde o início, defendi que deveríamos ser as melhores pessoas para ele [enteado]. Hoje, após um ano e meio, apesar de muita gente não entender, a mãe dele e eu somos amigas e amo meu enteado acima de tudo: de traição, mágoa ou dor”, completa.
 
O lugar de cada um
 
Para a advogada Paloma Lima Mariano, 39, o fato de nunca tentar ocupar o lugar do pai das crianças contribuiu para a harmonia em casa. Ela, que está grávida, é casada com a gerente de RH Andreina Gonzalez, 42, que já tem dois filhos de outro relacionamento. “Eles têm um pai presente e maravilhoso. Minha esposa também é uma mãe incrível. Logo, soube que esses espaços de afeto estavam preenchidos. Não adiantava tentar me encaixar”, diz. “Meu lugar é outro, não menos importante; apenas diferente. É uma terceira via de amor, construída sem nenhuma imposição. Nosso vínculo se forma dia a dia, vencendo preconceitos, inclusive os nossos”, conclui.
 
Em outros casos, o papel de madrasta confunde-se com o de mãe, principalmente na falta de uma. Quando foi morar com o marido, a mãe da enteada da professora de yoga Giovana Almeida, 35, estava hospitalizada. “Ela teve um AVC, ficou dependente e voltou para seu país de origem. Então, meu vínculo com a menina se fortaleceu”, afirma. Já a fisioterapeuta Bárbara Monteiro, 43, entrou na relação sabendo que o enteado era órfão de mãe. “Tornei-me a ‘mãe’ do Rafa, que tinha 2 anos [hoje está com 11] muito rápido. A única coisa que atrapalhava era minha insegurança. Eu achava que as pessoas estavam de olho em todas as minhas atitudes. Hoje, não sinto mais isso. Sou mãe de Manuela, 6, madrasta do Rafa, e erro com os dois (risos)!  Afinal, quem nunca?”, questiona.
 
Tempo e paciência
 
Independentemente da estrutura familiar, o que Ana Carolina aprendeu nas diferentes experiências como madrasta foi que o primeiro passo é cuidar de si. “É preciso estar com a autoestima muito boa. Mãe pode enlouquecer, brigar, xingar; madrasta, nunca. Não temos esse direito. Não podemos ‘explodir’, porque isso pode significar o rompimento com o enteado e com o pai dele”, diz. O tempo pode ser um aliado nesse sentido, segundo a psicanalista Denise de Sousa Feliciano, presidente do Departamento de Saúde Mental da Sociedade de Pediatria de São Paulo (SPSP). De acordo com a profissional, a inserção da madrasta na família deve ser feita com cuidado. “Quando é rápido e as crianças não têm tempo de assimilar a separação, há mais chances de conflitos e resistência. A forma como ela chega pode definir o caminho da relação”, orienta.
 
Outro conselho importante é tentar se colocar no lugar das crianças e também no da mãe delas, sempre que possível e necessário, para entender as outras perspectivas. Nunca se esqueça que mãe é mãe e madrasta é madrasta e lembre-se: isso não é uma competição; é uma fonte extra de amor.
 
NUNCA…
 
Agrida
Jamais maltrate enteados (ou qualquer criança, aliás!), com nenhum tipo de agressão. Quando surgir algum conflito, divida o assunto com o parceiro.
 
Separe mãe e filho
Só entre na relação se for capaz de respeitar os papéis de cada um, e tenha consciência de que filho é mais importante do que um relacionamento.
 
Se culpe
Não se martirize por ter se apaixonado por uma pessoa com filhos. É possível, sim, viver uma relação plena.
 
Fantasie
Nunca pense que a mãe de seus enteados é alguém que não tem problemas ou inseguranças.
 
Desrespeite
Não fale mal da mãe da criança, principalmente se for sobre a memória dela. Ela é e sempre será muito especial para o pequeno.
 
SEMPRE…
 
Respeite limites
Observe os seus e os do outro.
A relação é um processo. Precisa de tempo e paciência para ser construída de forma saudável.
 
Converse
Expresse seus incômodos ao seu parceiro. Não espere as relações tomarem rumos difíceis de serem revertidos. O diálogo é o melhor caminho para o entendimento.
 
Ocupe sua posição
Seja responsável pelo seu lugar e pela influência que pode exercer na educação de seus enteados e na convivência com eles.
 
Busque ajuda
Quando necessário, procure suporte e orientação, seja de um profissional, seja de uma rede de apoio. Não tente resolver tudo sozinha.
 
Exercite a paciência
Criar vínculo leva tempo e dedicação. Tenha respeito e empatia com a criança diante da separação dos pais.
 
A mãe da criança: o outro lado do balcão
 
A coach e mentora para mulheres Ju de Mari, 47, de São Paulo (SP), tem uma boa relação com a madrasta dos seus filhos, Mariana Camardelli, e dá dicas: “Ter boa vontade, paciência e foco prático no bem-estar das crianças sempre costuma dar certo. Acho que é preciso respeitar o tempo de desenvolvimento da relação, confiando que cada um ali está tentando fazer o seu melhor numa dinâmica que não é simples, mas não precisa ser pesada. Meus filhos têm duas casas, madrasta e padrasto, recebem atenção e amor ampliado —  e isso é o mais importante! Há questões práticas que precisam ser ajustadas, volta e meia, claro. São duas casas e maneiras diferentes de se organizar, mas as questões principais que se referem aos meninos devem ser bem compartilhadas”, pontua.
 
A psicóloga e psicoterapeuta Patrícia Burlaud Gomes completa: “Maturidade emocional a todos os adultos envolvidos também é imprescindível. Pessoas cientes do próprio valor têm mais facilidade de lidar com certas inseguranças que virão de tempos em tempos e têm abertura para aprender, ensinar e somar em prol de um bem maior: a educação e qualidade de vida dos filhos e enteados”, explica.
 
O papel do pai no triângulo familiar
 
Incentivo à harmonia
O pai deve estimular uma relação harmoniosa entre madrasta e enteados, em caso de resistência de uma ou ambas as partes. Isso pode ser feito em conversas com os filhos, buscando validar a inclusão da madrasta na família e fortalecendo os vínculos.
 
Elo de amor
Ele é a ligação entre todos: mãe, filhos e madrasta. Por isso, o pai não pode simplesmente deixar que eles construam sozinhos suas relações. É fundamental ser a ponte, sendo presente e ajudando a madrasta a conhecer as crianças.
 
Posicionamento
Muitas vezes, o pai se omite diante de conflitos com os filhos, fazendo com que a madrasta tome as decisões. Isso pode provocar frustrações e incômodo às crianças, principalmente se ainda for cedo para ela assumir algumas situações.
 
Foco nas crianças
Quando todos colocam seus esforços no bem-estar dos pequenos, as chances de as relações darem certo aumentam. Deem tempo e espaço para a construção de um relacionamento com diálogo e empatia.