A sucessão do patrimônio virtual e a necessidade de regulamentação
 
Uma das principais representantes do gênero sertanejo, a cantora Marília Mendonça era, também, um fenômeno nas redes sociais. Sua conta do Instagram, por exemplo, já contava com milhões de seguidores e, após sua morte, esse número só vem aumentando.
 
Diante desta gama enorme de seguidores – fiéis, mesmo após (ou ainda mais, após) o falecimento da artista, surgem algumas questões interessantes que merecem uma análise sob vários aspectos – dentre eles o jurídico. Alguém poderá administrar a conta da cantora? A quem caberá a decisão sobre a manutenção ou exclusão de seu perfil na rede? É permitido o acesso ao conteúdo ali existente por seus herdeiros?
 
De inicio, as respostas a estas perguntas podem ser encontradas nos termos de uso da própria plataforma. Eles determinam que a conta seja excluída ou convertida em uma espécie de memorial. O próprio usuário pode manifestar sua opção dentro do site, autorizando que se dê a exclusão imediata do perfil – tão logo a empresa tome conhecimento de seu falecimento ou nomeando um herdeiro para a criação do memorial. Caso, porém, não haja esta manifestação, herdeiros poderão informar o óbito à plataforma e também, decidirem qual será o destino da conta.
 
Ocorre que esse acesso de eventuais herdeiros ao perfil do usuário falecido não é irrestrito. Sob a justificativa de que estaria preservando a privacidade do titular da conta, as plataformas não permitem acesso a diversas funcionalidades como leitura de mensagens privadas; alterações de configurações ou do conteúdo já existente na página dentre outras.
 
Não é raro, porém, que sucessores dos titulares das contas (pais, por exemplo), desejem ter acesso a mais informações nelas deixadas, ou até mesmo assumir a administração do perfil.
 
Foi o que ocorreu em uma demanda julgada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. A ação foi proposta por uma mãe, após o Facebook excluir o perfil da filha falecida. Em seu pedido, ela pleiteava a restauração da conta, pois vinha mantendo o perfil ativo para ter recordações da moça.  Postulou, também, uma indenização por danos morais – cabível, segundo ela, em razão do cancelamento abrupto da conta.
 
Os pedidos foram negados em primeira e segunda instância prevalecendo a validade dos termos de serviços da plataforma e da manifestação da filha que havia autorizado a exclusão da conta.
 
Em seu voto, o desembargador ressaltou a ausência de um regramento específico sobre herança digital no direito brasileiro e enfatizou, não só o respeito à autonomia da vontade (a dona do perfil havia manifestado seu interesse na exclusão da conta após seu falecimento) como a necessidade de proteção aos direitos da personalidade representados pela garantia à intimidade, à privacidade e à imagem da falecida.
 
Em outra decisão – esta considerada paradigmática sobre o tema, e por isto conhecida como “O caso da gartoa de Berlim”, o Tribunal Superior Alemão (equivalente ao nosso STJ) teve um entendimento diverso.
 
Na ação proposta em 2018 discutia-se a possibilidade de acesso dos pais à conta do Facebook da filha, que falecera aos 15 anos, para tentarem compreender se a morte dela havia decorrido de um acidente ou de suicídio.
 
A empresa negou o acesso à plataforma apresentando, para tanto, argumentos como o sigilo das comunicações; a proteção dos dados pessoais e da intimidade da jovem. Sustentou, também, que a herança digital contém não apenas um conteúdo econômico, mas um aspecto existencial que não deve ser objeto de transmissão.
 
O tribunal acolheu o pedido dos pais; rechaçou os argumentos do Facebook e apresentou interessantes fundamentos para decisão.
 
Salientou que a lei alemã sobre sucessões é pautada pelo princípio da sucessão universal e que não há como ser feita uma triagem no patrimônio deixado por alguém com o fim de se distinguir um conteúdo econômico e outro existencial.
 
Entendeu, ainda, que quem envia uma mensagem por meio digital deve arcar com o risco de terceiros acessarem seu conteúdo (risco existente, também, no caso de cartas deixadas por alguém que faleceu)
 
Por fim, ressaltou que se uma pessoa deseja evitar que terceiros ou mesmo herdeiros tenham acesso à sua intimidade, ela deve cuidar de protegê-la utilizando-se dos instrumentos disponíveis para tanto como um testamento, por exemplo.
 
Pois bem; os dois casos aqui trazidos e a interpretação diversa a situações aparentemente semelhantes revelam a complexidade de um assunto que, provavelmente, seja o mais polêmico e instigante do direito das sucessões na atualidade. Trata-se da herança digital que tem merecido bastante atenção da doutrina especializada que, já algum tempo, sinaliza a necessidade da criação de um tratamento legislativo próprio sobre ela
 
Compreendida como um conjunto de valores imateriais ela pode ser composta por uma gama diversa de bens, hoje tidos como digitais e que são passíveis de transmissão em razão do falecimento de seu titular. Não só perfis em redes sociais – como mencionados nos exemplos aqui trazidos, mas contas de emails; contas em aplicativos; assinaturas digitais; milhas de companhias aéreas; criptomoedas e outros são assim classificados.
 
Como destacado na decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, não existe no direito brasileiro, legislação específica que trate da matéria, cabendo para sua interpretação a utilização de diversas fontes normativas, como o Código Civil, o Marco Civil da Internet, o Código de Defesa do Consumidor e a Lei Geral de Proteção de Dados.
 
Há, até, alguns projetos de lei em trâmite na Câmara e no Senado. O mais recente deles é o PL 1689/19 de autoria da deputada Alê Silva (PSL-MG) que prevê a alteração do Código Civil e da Lei de Direitos Autorais, para inserir em seus textos a regulação de sucessão nas redes sociais, dentre outros pontos
 
Este projeto, assim, como os demais, são alvos de críticas pela doutrina por não se aprofundarem no tema e por trazerem alterações simples demais que não resolvem os principais problemas enfrentados neste campo.
 
Enquanto isto resta aos proprietários de bens digitais e seus sucessores sujeitarem-se às regras criadas pelas grandes plataformas digitais ou recorrerem a instrumentos de planejamento sucessório como os diversos tipos de testamentos previstos em lei.