Instituída por meio da lei 13.874/19, a possibilidade da sociedade limitada ter apenas um sócio é ainda nova entre nós. Uma criança miúda. Para se ter uma ideia, há quem ainda se refira a sociedade limitada unipessoal, como se fosse um tipo diverso. Não é. Há apenas a sociedade limitada que, por disposição do artigo 1.052, § 1º, do Código Civil, pode ter de um a “n” sócios. Um, dois, três… trezentos sócios: uma sociedade limitada. No entanto, há questões que, sim, são próprias da unipessoalidade e, novas, ainda permitem alguma discussão. Podem mesmo ser questões simples mas que, em função da novidade, ainda demandem ser esmiuçadas até que se forme uma convicção coletiva, uma cultura societária que vença as paredes da academia e se torne comezinha na comunidade em geral, nomeadamente em meio aos atores mercantis. É o que se passa com essa questão:
Se o cônjuge do sócio único de uma sociedade limitada vier a falecer, a(s) quota(s) deverá(ão) ser inventariadas? E havendo divórcio, irão compor a partilha?
Essa pergunta nos foi formulada por um sócio inconformado. Repetia o consulente que ela nunca fez parte da sociedade. Argumentava que uma coisa é a sua pessoa, outra coisa é a pessoa da sociedade limitada e seu patrimônio. Vociferava contra a pretensão de se avaliar o valor da empresa em lugar de apenas 50% do capital social. E completava: a empresa pertence à sociedade; o que me pertence são as quotas; ela não tem nenhum direito sobre a empresa.
A questão não se aplica apenas à sucessão do cônjuge ou convivente do sócio único mas, por igual, à hipótese de divórcio e de dissolução da convivência, sempre que a participação societária do único sócio componha o patrimônio comum. Parece-nos, essencialmente, que o detalhamento jurídico dos elementos é suficiente para elucidar a dúvida. Senão, vejamos.
Antes de mais nada, a resposta às questões parte de um dado prejudicial: é preciso considerar o regime de bens. Se for comunhão universal ou se a participação societária for alcançada pela comunhão parcial ou participação final nos aquestos, as quotas comporão o patrimônio comum e terão que compor o bolo a ser partilhado. O fato de o cônjuge não compor a sociedade não altera a questão. Se o regime for de comunhão universal ou de comunhão parcial, os bens pertencem a ambos, ainda que em nome de um só:
Art. 1.660. Entram na comunhão:
I – os bens adquiridos na constância do casamento por título oneroso, ainda que só em nome de um dos cônjuges; […]
Assim, as quotas que estão em nome de um cônjuge, pertencem também ao outro cônjuge. Falecendo este, será preciso incluir na herança 50% das quotas (e não do capital social). Se há comunhão, os bens pertencem a ambos, ainda que em nome de um só. A mesma lógica se aplicará ao divórcio: não é a condição de sócio que deverá compor a partilha, mas o valor patrimonial da(s) quota(s) representativas do capital social da sociedade limitada, já que unipessoal.
– Mas se as quotas que estão em nome do sócio único compõem o patrimônio comum do casal, ou seja, se pertencem também ao cônjuge (ou companheiro), a sociedade não é, de fato, unipessoal. São dois titulares – seria possível objetar.
Não. Só há um sócio. Só ele consta do ato constitutivos, só ele pode deliberar e exercer os direitos sociais que correspondem à(s) quota(s). Efetivamente, é uma sociedade com um só sócio. O cônjuge não tem qualquer faculdade societária que vá além dos direitos patrimoniais sobre a(s) quota(s). Composição, deliberações e administração ainda são questões afetas exclusivamente ao sócio unitário. Detalhe: isso inclui mesmo a alienação de bens pela sociedade, ainda que imóveis: basta que o sócio delibere, se o contrato exigir, e a sociedade aliene.
– Certo. Mas como pode a sociedade se tornar patrimônio comum do casal? Afinal, ela própria é uma pessoa jurídica! Como compatibilizar a ideia de autonomia patrimonial (entre a pessoa do sócio e a pessoa da sociedade) com essa pretensão de inventariar a empresa cujo ex-cônjuge, morto ou divorciado, apenas, cônjuge e não sócio do negócio?
A solução exige compreender que, em relação às sociedades, simples ou empresárias, há duas dimensões que poderiam ser demarcadas a partir do registro e, com ele, a entificação (criar-se pessoa jurídica) da iniciativa jurídica-econômica. Desse ponto para lá, há uma pessoa jurídica autônoma; desse ponto para cá (em suas funções intestinas), a sociedade é um acordo de vontades (definido por meio de contrato ou estatuto social) e uma comunhão de investimentos: seu(s) sócio(s) delibera(m) sobre os elementos da sua existência, do seu funcionamento. E, em função do investimento feito, cria-se um direito patrimonial. Então, a quota ou ação deve ser encarada como uma moeda: no verso, direitos sociais, como participar das deliberações; no anverso, direitos patrimoniais: a quota e a ação são bens jurídicos patrimoniais. Por isso vão compor o acervo que, ao final, será partilhado entre os ex-cônjuges ou entre os herdeiros.
Mas veja: não se partilham as quotas, mas o valor das quotas. Salvo previsão contratual em sentido diverso, o ex-cônjuge ou seus herdeiros não tem o direito de assumir as quotas na condição de sócios. Os direitos sociais não compõem o acervo, só os patrimoniais. Claro, tudo fica mais simples se as partes acertarem entre si que à partilha corresponderá à aceitação de novos sócios, na proporção da(s) parte(s) que lhe(s) cabe(m). Se assim não ocorre, afere-se o valor global do patrimônio comum e cada qual assume bens que correspondem à sua parte. A questão mais interessante é a avaliação dessa participação.
Há três valores possíveis para a(s) quota(s) de uma sociedade: (1) o valor contratual, que corresponde ao montante investido (subscrito e integralizado) pelo sócio. Mas o tempo e a evolução da atividade negocial criam um lapso entre o valor expresso e o valor efetivo. Afinal, a cada quota corresponde o direito a um percentual sobre o patrimônio empresarial. Se há dissolução e liquidação, quem um dia investiu R$ 10.000,00, ficando com 10% do capital social, tem direito a 10% do patrimônio líquido e não a R$ 10.000,00. Se, ao final, o saldo da liquidação foi R$ 72.000,00, terá direito a apenas R$ 7.200,00. Se foi R$ 2.000.000,00, terá direito a R$ 200.000,00.
Não é o capital investido que compõe o patrimônio comum do casal. É o valor que a participação tem no momento do divórcio ou da morte do cônjuge do sócio. Para se avaliar as quotas, é preciso avaliar a sociedade. Assim, avaliada a sociedade, o valor de 50% das quotas corresponderia a 50% do valor da sociedade. Mas há o segundo valor possível, entre os três acima anunciados: (2) valor apurado segundo o último balanço. Não seria esse o valor global a permitir calcular o valor das frações (as quotas)? Afinal, o levantamento do balanço é obrigação legal, veja o Código Civil:
Art. 1.179. O empresário e a sociedade empresária são obrigados a seguir um sistema de contabilidade, mecanizado ou não, com base na escrituração uniforme de seus livros, em correspondência com a documentação respectiva, e a levantar anualmente o balanço patrimonial e o de resultado econômico.
Art. 1.188. O balanço patrimonial deverá exprimir, com fidelidade e clareza, a situação real da empresa e, atendidas as peculiaridades desta, bem como as disposições das leis especiais, indicará, distintamente, o ativo e o passivo.
Há mesmo regra para que os bens sejam inventariados para, assim, haver adequada composição do patrimônio ativo:
Art. 1.187. Na coleta dos elementos para o inventário serão observados os critérios de avaliação a seguir determinados:
I – os bens destinados à exploração da atividade serão avaliados pelo custo de aquisição, devendo, na avaliação dos que se desgastam ou depreciam com o uso, pela ação do tempo ou outros fatores, atender-se à desvalorização respectiva, criando-se fundos de amortização para assegurar-lhes a substituição ou a conservação do valor;
II – os valores mobiliários, matéria-prima, bens destinados à alienação, ou que constituem produtos ou artigos da indústria ou comércio da empresa, podem ser estimados pelo custo de aquisição ou de fabricação, ou pelo preço corrente, sempre que este for inferior ao preço de custo, e quando o preço corrente ou venal estiver acima do valor do custo de aquisição, ou fabricação, e os bens forem avaliados pelo preço corrente, a diferença entre este e o preço de custo não será levada em conta para a distribuição de lucros, nem para as percentagens referentes a fundos de reserva;
III – o valor das ações e dos títulos de renda fixa pode ser determinado com base na respectiva cotação da Bolsa de Valores; os não cotados e as participações não acionárias serão considerados pelo seu valor de aquisição;
IV – os créditos serão considerados de conformidade com o presumível valor de realização, não se levando em conta os prescritos ou de difícil liqüidação, salvo se houver, quanto aos últimos, previsão equivalente.
Parágrafo único. Entre os valores do ativo podem figurar, desde que se preceda, anualmente, à sua amortização:
I – as despesas de instalação da sociedade, até o limite correspondente a dez por cento do capital social;
II – os juros pagos aos acionistas da sociedade anônima, no período antecedente ao início das operações sociais, à taxa não superior a doze por cento ao ano, fixada no estatuto;
III – a quantia efetivamente paga a título de aviamento de estabelecimento adquirido pelo empresário ou sociedade.
É neste contexto que se deve atentar para o texto do artigo 1.027 do Código Civil:
Art. 1.027. Os herdeiros do cônjuge de sócio, ou o cônjuge do que se separou judicialmente, não podem exigir desde logo a parte que lhes couber na quota social, mas concorrer à divisão periódica dos lucros, até que se liquide a sociedade.
O sócio único da limitada, por ter sua participação societária (por seu viés econômico) compondo o patrimônio comum – em virtude de casamento ou de convivência estável, sempre na forma da lei – verá 50% de sua quota(s) arrastados para o inventário. E qual é o valor dessa participação? Não é o valor que se apure em função do capital registrado, nem pelo último balanço, segundo o legislador. Toma-se por base o valor da sociedade, da azienda, em balanço especialmente levantado para tanto, sendo que, até que tal procedimento se conclua, o espólio deverá concorrer à divisão periódica dos lucros. É dessa forma que se responde à questão quanto vale o 50% da participação social que irão compor o inventário.
Por fim, há um aspecto do artigo 1.027 do Código Civil que precisa ser realçado: segundo sua disposição, essa situação de concurso na divisão dos lucros, perdurará até que se liquide a sociedade. Mas essa liquidação da sociedade não é obrigatória. Antes de mais nada, o próprio legislador revela que trompica na regência da questão quando, na seção seguinte do Código Civil, a seção V, trata Da Resolução da Sociedade em Relação a um Sócio (artigo 1.028 e seguintes). Portanto, o que se tem por liquidação da sociedade é, a bem da precisão, liquidação da(s) quota(s) a bem da resolução da sociedade em relação… a um sócio? Não! O legislador pensou na retirada da sociedade e simplesmente se esqueceu do artigo 1.027, num deslize infantil: se 50% destinam-se à partilha em inventário, divórcio ou dissolução de convivência, a resolução da sociedade não se fará em relação ao sócio, mas em relação a uma fração de sua participação. Ele pode prosseguir na condição de sócio, embora com participação menor.
Há advogados que argumentam que tal solução estaria a violar a teoria da pessoa jurídica em sua condição de ente autônomo com patrimônio próprio. Afinal de contas, estar-se-ía liquidando o patrimônio da sociedade limitada e usando-o para atender ao ex-conjuge, ex-convivente ou ao(s) seu(s) herdeiro(s). O argumento não calha em função da dúplice natureza das sociedades: são pessoas, mas são patrimônio econômico: bens conversíveis em pecúnia, seja pela cessão, seja pela liquidação. Basta olhar para o assombroso volume de negociações diárias com ações nas bolsas de valores, para não falar dos valores expressivos com que sociedades, mesmo limitadas, são incorporadas por outras, para não falar da pura e simples cessão de quotas. A discussão, portanto, não se coloca para além da pessoa jurídica, mas para aquém. Quota(s) é(são) bem(s) jurídico(s). E não importa em nome de quem tal bem esteja; havendo comunhão, ele deve compor o bolo que será partilhado. Isso já está pacificado em relação às sociedades com dois ou mais sócios e não há razão para ser excepcionado quando haja apenas um sócio: a natureza jurídica da participação societária é a mesma, não importa quantos sejam os sócios.
Fonte: Migalhas
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