Como tem sido recorrente nos tempos atuais em que a sociedade da informação faz com que as pessoas acreditem que sejam obrigadas a ter opinião sobre tudo, vimos pulular nas redes sociais um tsunami de novos especialistas em Direito de Família, plenos de uma falsa erudição1, comentando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que tratou da imposição do regime da Separação Obrigatória de Bens quando um dos nubentes têm mais de 70 anos. Questão de complexidade imensa acabou sendo tratada por muitos com base em achismos e com carência de profundidade técnica.
De outra sorte, também fomos brindados com análises sólidas e consubstanciadas de juristas de escol, engrandecendo a discussão sobre a questão. Contudo das manifestações às quais tive acesso não encontrei a apreciação do tema sob um olhar de gênero, o que impõe que eu traga a minha contribuição.
A base em que se alicerça a presente celeuma está no disposto no art. 1.641 do Código Civil, o qual preconiza a imposição do regime de separação de bens em dadas situações, visando a proteção daquele nubente que o texto legal considera como vulnerável. Assim, determina-se o regime da Separação Obrigatória de Bens quando o casamento for contraído com inobservância das causas suspensivas (i); por pessoa maior de 70 (setenta) anos (ii); e por quem depender de suprimento judicial para casar (iii).
A restrição da liberdade de escolha do regime de bens para o casamento em razão de um elemento etário, objeto do presente texto, é motivo de discussão já de longa data, tendo mesmo o art. 1.641 do Código Civil sofrido alteração em 2010, pela Lei 12.344, que majorou de 60 (sessenta) para os atuais 70 (setenta) anos. O tema encontrou sua decisão mais recente com a tese fixada para Tema 1.236 da repercussão geral, no julgamento do ARE 1.309.642 que estabelece que “Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública”.
Em linhas panorâmicas o que se tem é que a imposição do regime da Separação Obrigatória de Bens aos maiores de 70 (setenta) anos foi tida como constitucional, contudo ante a uma intepretação conforme à Constituição Federal, sem redução do texto, garante-se a possibilidade de escolha de outro regime de bens pelas partes. Ou seja, transformou o regime para os maiores de 70 (setenta) anos em “não tão” obrigatório, já que faculta aos nubentes a possibilidade de seu afastamento, ante ao exercício de sua autonomia.
Assim, no silêncio das partes, segue prevalecendo o regime da Separação Obrigatória de Bens para pessoas com mais de 70 (setenta) anos, seja no casamento ou na união estável, garantindo-se, porém, a escolha de outro regime de bens ante a elaboração de pacto antenupcial ou contrato de convivência.
Essa não foi a primeira vez que o regime da Separação Obrigatória de Bens foi relativizado, como bem se extrai do conteúdo da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal (STF), que inseriu um viés de comunicabilidade patrimonial nessa modalidade de separação de bens.
O fato é que com o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) tem-se, agora, dois regimes supletivos distintos: um para aqueles que ainda não atingiram os 70 (setenta) anos e outro para aqueles que já superaram essa faixa etária. A regra geral segue sendo o regime da Comunhão Parcial de Bens para quem não tem 70 (setenta) anos, conforme previsto no art. 1.640 do Código Civil, contudo para os septuagenários prevalecerá o regime da Separação Obrigatória de Bens, o qual não mais se faz cogente, podendo ser afastado pela manifestação de vontade dos nubentes.
A decisão claramente traz um avanço ao que se tinha até então, contudo ainda está bastante distante dos parâmetros que entendo serem os mais tecnicamente adequados.
De início é premente que se tenha bastante patente que o cerne de toda a discussão reside em uma figura de cunho eminentemente econômico, qual seja, o medo de que o maior de 70 (setenta) anos venha a ser ludibriado e envolva-se em um relacionamento em que a outra parte apenas se interessa pelo seu patrimônio, em expressão clara do patrimonialismo e do paternalismo estatal.
Importante se consignar de plano que tal sorte de previsão de “proteção” do patrimônio apenas de maiores de 70 (setenta) anos revela um desvio manifesto, pois impõe a todas as pessoas com tal idade um regramento diferenciado, independentemente de ela possuir ou não um patrimônio considerável. À guisa de resguardar o patrimônio de quem a lei supõe, sem qualquer parâmetro, ser mais suscetível de ser enganado, cria uma regra especial a todos.
Parte-se de um pressuposto lógico manifestamente equivocado de que nessa idade a pessoa estaria mais propensa a ser ludibriada por alguém que lhe declare amor. Ledo engano. A experiência, sempre exaltada das pessoas mais idosas, faz com que ela esteja mais capacitada para perceber os sinais de que possa estar sendo enganada. Essa pessoa pode ser Presidente da República com mais de 70 anos, regendo a vida de toda a nação, mas não poderia decidir o regime de bens do seu casamento? Não teria discernimento para se precaver em caso de estar sendo vítima de um engodo amoroso?
Sustento que um jovem corre mais risco de ser vitimado pelo temido “golpe do baú”, por ser mais crível a ele que outra pessoa esteja interessada em quem ele é e não no seu patrimônio. E mais, caso esse idoso queira efetivamente que as pessoas se atraiam por ele em razão de seu patrimônio isso seria de interesse do Estado? Tal previsão de imposição de um regime com menor comunicabilidade patrimonial fere o preceito da mínima intervenção do Estado no Direito de Família.
Ao entender pela constitucionalidade do art. 1.641, II do Código Civil a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no ARE 1.309.642 mantém e reforça a perspectiva de que o amor estaria vinculado a uma equivalência de aparência física que se faria perdida para os mais idosos, por quem uma pessoa jovem jamais poderia se interessar.
De se notar que o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) apenas mitiga levemente a incidência do regime da Separação Obrigatória de Bens já que em sua ampla maioria as pessoas não elaboram pactos antenupciais ou contratos de convivência alterando a regra geral prevista de forma supletiva, de maneira que a tendência é que o paternalismo continue a incidir em larga escala nos casamentos e uniões estáveis de pessoas com mais de 70 (setenta) anos.
Contudo existe uma questão de fundo que precisa ser trazida à luz e discutida de forma real e sem hipocrisias: A quem interessa, efetivamente, a proteção do patrimônio do nubente?
A comunicabilidade patrimonial apenas é sentida, na prática, quando do término do casamento ou da união estável, não trazendo o regime da Comunhão Parcial de Bens grandes variáveis na constância do relacionamento. A grande preocupação recai sobre o destino que o patrimônio tomará quando findar o casamento ou a união estável, especialmente se esse termo decorrer da morte do septuagenário.
Uma das verdades ocultas sobre toda a discussão entabulada é que a preocupação não é a “proteção” da pessoa idosa com mais de 70 (setenta anos), mas sim os interesses sucessórios de seus herdeiros.
O cônjuge septuagenário, caso não existisse a regra especial, manteria consigo, ordinariamente, todo o patrimônio que já possuía antes de se casar, pois a comunicabilidade recairia apenas sobre o que viesse a ser auferido na constância do casamento ou união estável. Sob a perspectiva da proteção do septuagenário a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) dá azo à possibilidade de que venha a escolher o regime de Comunhão Universal de Bens, o qual poderia colocar em risco maior seu patrimônio.
Se o intuito fosse mesmo a proteção do septuagenário o pensamento enviesado adotado iria preconizar a imposição da vedação da escolha do regime da Comunhão Universal de Bens. E não foi isso que fez o Supremo Tribunal Federal (STF), tão questionado por muitos em razão de decisões que não se atém exatamente aos limites dos pleitos formulados.
De se ponderar, ainda, que se o próprio detentor do patrimônio “em risco”, que é uma pessoa capaz, não está preocupado com tal questão, qual a necessidade do Estado intervir? Qual o interesse em imiscuir-se?
A mim é muito evidente que estamos diante de uma forma velada de se tratar de herança de quem ainda não morreu. Uma ingerência de terceiros sobre a vida patrimonial do nubente.
Reitero que caso viesse a casar-se segundo a regra geral a maior “perda patrimonial” que sofreria em decorrência do fim desse casamento seria de metade do que foi adquirido na constância do casamento ou união estável. Que é menos do que o sujeito pode alienar a título de doação a quem ele bem entender. E isso não é objeto de um levante.
Se efetivamente houver o interesse de valer-se de sua condição econômica para “atrair” a atenção de uma pessoa mais jovem o risco de dilapidação do patrimônio é muito maior do que o decorrente do casamento com a incidência do regime de bens. Quem haverá de impedir que o septuagenário venha a fazer vultosas doações em favor de sua jovem namorada?
O chamado “golpe do baú” sempre é o elemento aduzido quando se trata da previsão do regime da Separação Obrigatória de Bens para o casamento de pessoas maiores de 70 (setenta) anos, que seria previsto como fulcro de “afastar o incentivo patrimonial do casamento de uma pessoa jovem que se consorcia com alguém mais idoso”2. Tal pensar vem sendo combatido pela doutrina, que pontuava pela inconstitucionalidade da previsão por trazer uma “velada forma de interdição parcial do idoso”3, com uma presunção de vulnerabilidade ou incapacidade mental.
Tal premissa é inquestionavelmente atentatória à liberdade individual das pessoas, com o Estado impondo ao nubente praticamente uma capitis diminutio4 que lhe privava da liberdade de escolher o regime de bens de seu casamento. E agora com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) a situação encontra-se pacificada e resolvida… Contudo não é assim que vejo.
Há aqui um elemento de preconceito embutido, que vai além do etarismo, que precisa ser desvelado. Ao lado da discriminação silenciosa contra as pessoas maiores de 70 (setenta) anos, que persiste mesmo com os avanços civilizatórios e o movimento contramajoritário do Poder Judiciário5, há também uma perspectiva de gênero que não pode ser ignorada.
Faço um convite sincero a quem me lê: tal regra de restrição da comunicabilidade patrimonial busca “resguardar” efetivamente os interesses de homens ou de mulheres? Durante sua leitura até o presente ponto quem era a pessoa que figurava em sua cabeça como sendo esse sujeito de 70 (setenta) anos? Era um homem ou uma mulher?
Aqui está o preconceito oculto que aduzi anteriormente. É o estigma da mulher jovem aproveitadora.
Mesmo que tenha que encarar manifestações no sentido de que a previsão legal não faz distinção de sexo ou gênero, não posso me furtar a asseverar que há sim elementos históricos respaldando essa regra que têm lastros sexistas. Crendo-se que o objetivo da lei é proteger o patrimônio é evidente que o destinatário de tal previsão legal é o homem.
Reitero, como usualmente tenho feito, que essa falsa isonomia oriunda de uma igualdade meramente formal é mais nefasta que a desigualdade expressa, já que emula uma ausência de preconceito que não se efetiva na prática6.
Uma busca simples sobre as pessoas mais ricas do mundo ou mesmo do Brasil revelam uma imensa maioria de homens em seu topo. Da lista da Revista Forbes dos bilionários do mundo, de um total de 2640 apenas 320 são mulheres7. Ainda que não estejamos aqui falando efetivamente de pessoas tão abastadas como as indicadas pela revista, é fato que a estrutura social segue concentrando patrimônio e renda nas mãos dos homens, que possuem um rendimento médio cerca de 30% superior ao das mulheres8, e detêm 64% do patrimônio declarado à Receita Federal9, ao que pode-se acrescer o fato de que mulheres ordinariamente são as vítimas de violência patrimonial.
Uma visão mais acurada nos conduz a afirmar que a regra prevista no art. 1.641, II do Código Civil destina-se, eminentemente, ao homem septuagenário.
O preconceito social é tido em tom de pilheria em muitos casos quando a pessoa mais velha no relacionamento é o homem, contudo reveste-se de contornos muito mais ofensivos quando essa pessoa é uma mulher, fazendo com que a pressão social seja tamanha que, no mais das vezes, essas mulheres não consigam fazer com que o relacionamento se consolide em um matrimônio ou união estável.
Faz-se importante também ponderar quem seriam, nos dias atuais, as mulheres septuagenárias que “poderiam” se casar. Normalmente são pessoas que já estiveram envolvidas em um matrimônio ou união estável anterior, viúvas ou que passaram por um divórcio tardio (ou grey divorce), que vivem com uma imensa dificuldade de manter-se economicamente, enfrentando uma redução drástica em sua renda, como descrito em coluna anterior10. Não parece ser ela a destinatária da preocupação do legislador.
Não se pode olvidar que a criação de tal norma, existente no sistema codificado pátrio desde o Código Civil de 1916, era inegavelmente um preceito protetivo para o homem em sua origem, pois aquela época era raro a mulher que tivesse qualquer patrimônio próprio. O sistema protetivo possuía viés de gênero em sua criação e continua tendo.
O fato prático e que passou ao largo das discussões do nosso Supremo Tribunal Federal (STF), composto quase que em sua totalidade por homens, é que tal aspecto protetivo que foi reconhecido como constitucional fomenta um preconceito manifesto contra as mulheres. Pressupõe que as mulheres que se interessam por alguém que tenha mais de 70 (setenta) anos não nutre um sentimento sincero por seu nubente.
De forma bastante pragmática há de se consignar que, em que pese a romantização do instituto do casamento, não há na legislação qualquer previsão de que amor ou afeto sejam requisitos para a realização do casamento ou união estável. Contudo quando se trata de uma pessoa com mais de 70 (setenta) anos o tão aclamado princípio da afetividade, ou o reconhecimento do afeto como um valor jurídico relevante é esquecido, relegado e subjugado por uma visão da mulher aproveitadora, que quer se beneficiar do patrimônio do nubente e que este seria incapaz de notar isso.
Mas o mais cruel de tudo o que se traz aqui é o estabelecimento de uma presunção de má-fé da mulher que se casa ou estabelece união estável com alguém que tenha mais de 70 (setenta) anos, refutando toda a principiologia legal vigente.
O que se tem, ao final, é uma regra que segue referendando um entendimento pretérito e fundado em manifesto preconceito de que os homens com “posses” precisam ser protegidos das “mulheres interesseiras”. O Estado segue institucionalizando a presunção de que homens com mais de 70 (setenta) anos não são merecedores de amor genuíno e que mulheres que por eles se interessam em verdade apenas nutrem afeição por seu patrimônio. Mesmo que ele não o tenha.
A boa-fé presumida e a inocência caem por terra. O amor, carinho e afeto não podem ser direcionados a tais pessoas. Ter mais de 70 anos torna a pessoa em um ser abjeto a quem apenas por dinheiro se destina alguma atenção. E como a regra é que o patrimônio esteja circunscrito em sua maioria aos homens, as mulheres que se atraem por eles apenas o poderiam fazer em razão da busca de riqueza.
O casamento ou união estável de alguém com mais de 70 (setenta) anos seria, assim, composto por um homem passível de interesse apenas em razão de seu patrimônio e uma mulher interesseira.
Me nego a acreditar que é isso, apesar do que dispõe a lei e do que decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF).
__________
1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Informações jurídicas imprecisas na mídia e redes sociais. o risco de danos para a sociedade. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 1, jan./jun. 2023, p. IV.
2 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. Vol. VI, 14 ed.. São Paulo: Atlas, 2014, p. 349.
3 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Direito de Família. v. 6. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 317.
4 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito de Família. Vol. 5. 26 ed. São Pulo: Saraiva, 2011, p. 208.
5 NOVAIS CALMON, Patrícia; ALMEIDA, Vitor. Regime de bens e etarismo presumido velado: breve análise da decisão do Supremo Tribunal Federal no ARE 1.309.642. Disponível aqui. Acesso em 20 fev.2024.
6 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 83.
7 Disponível aqui.
8 Disponível aqui.
9 Disponível aqui.
10 Disponível aqui.
Fonte: Migalhas
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