Possibilidade de dispor como e o que será permitido ser feito para uma possível manutenção artificial da vida tem sido cada vez mais discutido, apesar de não existir previsão expressa, já é amplamente utilizado no ordenamento jurídico brasileiro.

 

A morte é certa, não há erro, não há destino diverso àquele que nesse mundo habita, o imponderável reside no tempo e na circunstância.

 

O ciclo: nasce, cresce, reproduz e morre, aprendido em tenra idade nas salas de aula, não demonstra com fidelidade o ciclo da vida, em alguns casos se morre antes, em outros, mesmo que ao final desse ciclo, não se pode precisar em quais circunstâncias isso irá ocorrer.

 

O direito a vida, tão fortemente garantido por meio de nossa Constituição Federal, em seu art. 5º, apresenta também o fiel gozo da dignidade humana, dignidade esta que deve, obrigatoriamente abarcar, o momento e a circunstância de sua morte.

 

O testamento vital, nomenclatura vulgarmente atribuída a “Diretivas Antecipadas da Vontade”, ou ainda “Declaração Vital”, nada mais é do que um documento que determina quais procedimentos podem ou não ser realizados em pacientes com doenças em estágio avançado ou terminal.

 

  1. Da ausência de previsão expressa no ordenamento jurídico brasileiro:

 

O Código Civil apresenta, em seu art. 1.857 o que se pode testar quando diz “toda pessoa capaz pode dispor, por testamento, da totalidade dos seus bens, ou de parte deles, para depois da sua morte”.

 

O testamento nada mais é do que um negócio jurídico solene, formal, revogável (podendo ser alterado a qualquer momento pelo autor da herança), gratuito, unilateral, indelegável, personalíssimo e causa mortis, parece óbvio, mas a diferença entre o testamento e as Diretivas Antecipadas da Vontade residem exatamente aí, os efeitos do testamento são post mortem, enquanto as DAVs determinam o que deve ser ou deixar de ser feito antes da morte do seu declarante.

 

Ainda no código cível, nos seus arts. 1862 e 1888, este elenca em rol taxativo, as possibilidade de testamento no direito brasileiro.

 

Testar nada mais é do que atribuir a outro bens do autor da herança após a sua morte.

 

Porém, aqui não tratamos nem de bens, e nem de efeitos após a sua morte, mas sim antes do seu falecimento. Esse é o principal motivo da nomenclatura testamento vital encontrar-se descolada da definição legal de testamento.

 

  1. Da previsão reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina:

 

Ainda que não exista no ordenamento jurídico pátrio a definição e previsão do Testamento Vital, o Conselho Federal de Medicina em sua resolução 1995/12 prevê a possibilidade de que àquele se submete a um tratamento de saúde, em quadro não mais possível de reversibilidade possa decidir o rumo da sua partida, sem deixar de observar e preservar a obediência a legislação brasileira.

 

Tal resolução garante que o paciente tenha a sua autonomia da vontade respeitada, princípio que encontra-se implícito no art. 5º caput da Constituição Federal, o princípio da dignidade humana da pessoa humana, constante do art. 1º, III, da Consituição Federal, e ainda a proibição de tratamento desumano e degradante, também encontrado no art. 5º, III, da Constituição Federal.

 

O direito a longevidade e manutenção da vida humana não pode esbarrar no direito do paciente de, no momento em que não mais puder responder por si, ser submetido a tratamentos dolorosos, invasivos, que possuem por objetivo tentativas, nem sempre positivas de manutenção da vida humana.

 

Em algumas doenças degenerativas, como o Alzheimer e a Demência Fronto Temporal por exemplo, o paciente perde a capacidade de deglutir determinados alimentos, ou por não sentirem mais fome se recusam a se alimentar de forma correta e nos horários determinados, a alternativa apresentada é a introdução de alimentação enteral.

 

A alimentação enteral, nada mais é que uma via alternativa artificial de dieta, é introduzida uma sonda no paciente, que pode ser pelo nariz (nasoenteral) ou pelo estômago (gastrostomia). Em pacientes que não entendem mais o que acontece com seu corpo e a evolução da sua doença, esse corpo estranho, como afirma a Dra. Barbara Cury, especialista em medicina paliativa, há um aumento na agitação, um aumento do risco de queda, alterações de comportamento pelo desconforto do suporte artificial e ainda a possível necessidade de amarrar os braços à cama, uma vez que corre o risco do próprio paciente retirar os dispositivos.

 

Há que não considere tal tratamento invasivo, há que não queira, jamais ser submetido a tal situação, e as DAVs possuem esse poder, deixar claro e por escrito o que quer e talvez o mais importante, o que não quer que seja feito no seu tratamento.

 

  1. E agora, como fazer um Testamento Vital?

 

Em que pese não existir no ordenamento jurídico brasileiro tal previsão, e nem modelo apresentado pelo CFM, alguns critérios devem ser observados para que seja admitido e considerado válido.

 

É imprescindível que seja o declarante capaz, dentro do conceito de capacidade elencado no código civil, sendo este maior de 18 anos e bem como não seja considerado incapaz.

 

Ainda que não possa ser apresentado um roteiro formal de elaboração, é fortemente aconselhado que este seja lavrado por meio de escritura pública, uma vez ser o tabelião possuidor de fé pública, é garantida uma maior autonomia de vontade e capacidade, o que diminui drasticamente a alegação de manipulação, bem como desvio de vontade do declarante, é necessário ainda que além dos documentos de comprovação do declarante que este junte o seu prontuário médico.

 

Outra vantagem obtida por meio do registro público, é que uma vez registrado em cartório, este será arquivado o que dirime o risco de perda e/ou extravio de documento tão importante.

 

Caso o paciente não se encontre em possibilidade de se dirigir a um cartório, pode este ser elaborado por instrumento particular, observando apenas seus critérios de capacidade e com a presença de tuas testemunhas, se possível.

 

Tal entendimento ficou consignado na no Enunciado de n. 37 do CNJ em sua I Jornada de Direito da Saúde, realizada no ano de 2014, quando dispõe:

 

“As diretivas ou declarações antecipadas de vontade que especificam os tratamentos médicos que o declarante deseja ou não se submeter quando incapacitado de expressar-se autonomamente, devem ser feitas preferencialmente, por escrito, por instrumento particular, com duas testemunhas, ou público, sem prejuízo de outras formas inequívocas de manifestação admitidas em direito.”

 

Não há formalidade específica, apenas que seja elaborado dentro dos preceitos legais de respeito a vida.

 

Salienta-se que as DAVs não podem determinar, obrigar ou desobrigar que sejam efetuados tratamentos que afrontem nosso ordenamento jurídico, é apenas um ajuste de vontade e não uma afronta legal.

 

  1. O que pode conter em um Testamento Vital?

 

O testamento vital poderá conter em seu bojo disposições sobre recusa ou aceitação de tratamentos capazes de prolongar de forma ainda que artificial a vida do declarante, assim destaca-se que apesar serão consideradas como válidas as disposições que sejam consideradas infrutíferas, inúteis e ainda desnecessárias perante a situação do paciente.

 

Destaca-se que o Testamento Vital, não aborda temas proibidos, como a eutanásia, mas sim a garantia a ortotanásia, que nada mais é do que a morte natural, sem qualquer atuação médica para que a vida do paciente seja prolongada de forma artificial.

 

Não se pode confundir a recusa de tratamentos com o abandono de terapias paliativas, uma vez que estas visam oferecer conforto ao paciente em sua jornada.

 

Abrir mão da manutenção de sua vida de forma artificial, e tomar para si o direito de escolha dos seus tratamentos é direito de todo e qualquer cidadão que reconhece a sua finitude e a incerteza de como e quando ela irá ocorrer.

 

  1. Conclusão:

 

Por fim, ressaltamos que por meio do Testamento Vital, ou ainda das DAVs, caberá ao próprio paciente escolher como quer morrer, diferente da escolha de recusa de tratamentos reconhecidos e eficazes, ou ainda a recusa a receber medicamentos capazes de amenizar sua dor e seu sofrimento.

 

É apenas e tão somente deixar que a vida tome seu curso, e encontre o seu destino final da forma mais digna e menos dolorosa possível.

 

Tanto se fala sobre o que se deve ou não fazer com seus bens no momento de sua morte, mas muito pouco se fala com o que se deve fazer com o ser humano, autor da herança, quando este não puder mais responder por si e escolher seus tratamentos.

 

Testamento Vital é manifestação de vontade, de quem ainda pode responder por si, de quem decide como quer que sua partida ocorra, que transcende a sua futura incapacidade, caso esta ocorra.

 

É instituto, ainda que não formalmente existente em legislação pátria, absolutamente possível, válido e pode ser aplicado, desde que em fiel observância aos princípios constitucionais como: autonomia da vontade e dignidade da pessoa humana.

 

“A finitude é o destino de tudo.” – José Saramago.

 

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CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. I Jornada de Direito da Saúde. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2014/03/ENUNCIADOS_APROVADOS_NA_JORNADA_DE_DIREITO_DA_SAUDE_%20PLENRIA_15_5_14_r.pdf Acesso em: 18 de agosto de 2023.

 

CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em 12 de agosto de 2023.

 

CURY, Barbara (@drabarbaracury). Texto do post. São Paulo, 17 de agosto de 2023. Instagram: @drabarbaracury. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CwECKn1ukeK/?igshid=MzRlODBiNWFlZA==.  Acesso em: 18 de agosto de 2023.

 

DADALTO, Luciana. Reflexos jurídicos da Resolução CFM 1.995/12. Revista Biomédica, 2013. Disponível em: https://revistabioetica.cfm.org.br/index.php/revista_bioetica/article/view/791/861. Acesso em 15 de agosto de 2023.

 

LEI Nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em: 12 de agosto de 2023.

 

MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Inicial de Ação Civil Pública. Disponível em: https://www.testamentovital.com.br/_files/ugd/bc3517_6bf3c26702924dde9ede0ed7ba25caad.pdf. Acesso em: 13de agosto de 2023.

 

OLIVEIRA, Gabriela. Testamento Vital em face do ordenamento jurídico brasileiro. Jusbrasil. 2018. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/artigos/testamento-vital-em-face-do-ordenamento-juridico-brasileiro/586813712. Acesso em 18 de agosto de 2023.

 

RESOLUÇÃO CFM Nº 1.995/2012. Dispõe sobre as diretivas antecipadas de vontade dos pacientes. 2012. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/CFM/2012/1995_2012.pdf. Acesso em: 15 de agosto de 2023.

 

Fonte: Migalhas

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