A finalidade determina a eficiência e a titularidade de direitos sobre imóveis. Cidades são organizadas pelo uso público e privado, crucial para a qualidade urbana e equilíbrio da ordem fundiária nacional

 

A finalidade do uso do imóvel determina a sua eficiência e justifica a criação de titularidade de direitos e deveres que recaem sobre esse objeto imobiliário. A ordem fundiária pode ser compreendida a partir da dualidade dos usos: exclusivo ou não-exclusivo. A praça é uso comum. A casa é uso exclusivo. Essa lógica simples orientada pela finalidade do uso organiza e ordena a estrutura de titularidade de direitos e deveres sobre os imóveis no território brasileiro.

 

A autoridade municipal quando aprova loteamento define com precisão física e percentual espaços públicos e privados. Espaços afetados ao uso públicos serão ruas, praças, áreas verdes ou institucionais (destinadas a equipamentos comunitários). Espaços privados serão lotes de livre comercialização. As cidades são organizadas dessa forma no plano urbanístico. Quanto mais aprimorado e bem ordenado esse sistema de planejamento, melhor a cidade como espaço de vida para seus moradores.

 

No âmbito do território nacional, a ordem fundiária não pode ser diferente. Os usos não exclusivos (público ou comuns) devem ser preservados na sua afetação e o espaço de uso exclusivo (propriedade pública ou privada) deve ser assegurado como direito. Existe certo equilíbrio ideal nessa ordem. Os desvios de finalidade e disfunções devem ser combatidos. A inteligência e racionalidade da gestão da ordem fundiária reside na observância desse ponto.

 

A Figura 1 organiza em quadrantes a ordem fundiária utilizando os critérios de uso (exclusivo ou não exclusivo) e titularidade pública ou privada. A intenção é representar o padrão que existe no Direito e indicar como ocorre as mudanças de relações jurídicas entre as quatro classes de relações jurídicas imobiliárias (A, B, C e D).

 

Figura 1. Quadrantes das relações jurídicas imobiliárias por uso e titularidade

 

As relações jurídicas imobiliárias que tratam do uso comum (público ou comunal) e do uso exclusivo (propriedade privada ou pública) são distintas porque as finalidades são diferentes.

 

A relação jurídica no imóvel de uso comum (público ou comunal) começa sempre no dever do seu titular de manter a área de terra afetada a certa finalidade e uso para gozo dos seus beneficiários. O imóvel de finalidade comum é sempre patrimônio, que significa dever do guardião de assegurar a afetação do imóvel à finalidade original. A palavra patrimônio na etimologia significa “munus do pater”, ou seja, dever do pai de zelar pelo espaço e terra da família com parte dos elos geracionais.

 

A relação jurídica no imóvel de uso exclusivo é sempre poder do seu titular (proprietário) de aplicá-lo à função que quiser e dever correlato dos demais de respeitar tal direito. O direito de propriedade está bem definido no Código Civil (art. 1.228): “faculdade de usar, gozar e dispor da coisa…”.

 

Essa dualidade do regime de uso (exclusivo ou comum) é um padrão lógico, derivado da especialização das funções de uso dos imóveis no âmbito de certo território.

 

A mudança de um imóvel de uso exclusivo para uso não exclusivo impõe sempre afetação à nova finalidade, o que faz surgir o dever de seu titular em manter e conservar a afetação determinada.

 

No plano oposto, a mudança de um imóvel de uso não-exclusivo para uso exclusivo impõe sempre desafetação da finalidade original o que pressupõe certa solenidade formal, salvo situações de consolidação imposta pelos fatos.

 

As finalidades de uso exclusivo ou uso não-exclusivo definem a racionalidade da ordem fundiária e a natureza da relação jurídica imobiliária. Convém explorar um pouco esse tema.

 

Primeiro, o exame da finalidade do uso exclusivo. Em seguida, a exposição sobre o uso não-exclusivo.

 

Pode parecer óbvio ao senso comum as razões pelas quais as pessoas optam pela aquisição de apartamento ou casa, investindo muito tempo e trabalho na conquista desse patrimônio. Segundo a PNAD Contínua 2019, existem 72,4 milhões de domicílios particulares permanentes no Brasil. Esse número exprime a importância do uso exclusivo, nem sempre claramente racionalizado.

 

Não é usual as pessoas desejarem a moradia coletiva em grandes alojamentos. O desejo normal aponta para o quarto exclusivo, com porta e chave, banheiro próprio e armários na qual possa guardar objetos pessoais. A racionalização desses motivos permitirá compreender melhor porque a propriedade privada existe.

 

A apropriação exclusiva de imóveis tem motivos que residem nas necessidades humanas e que se manifestam como finalidade das pessoas de exercerem certa liberdade existencial, o que importa em escolhas sobre o lugar para viver; na expectativa de segurança que os espaços fechados criam; na privacidade que asseguram ao indivíduo e à sua família; no conforto que podem propiciar; como meio de subsistência ou exploração para os seus ocupantes, segundo as escolhas de cada um; e como fonte de acumulação de patrimônio, o que tem notória relação com o futuro e as incertezas da vida. Esses são aparentemente os principais motivos e finalidades do uso exclusivo.

 

As pessoas são diferentes. Aspiram realizações distintas. Constroem projetos próprios. Há quem opte pela vida rural, outros pela vida urbana. Muitos querem apenas enriquecer e adquirir bens. Outros, não possuem ambições materiais e pretendem apenas algum meio simples de vida com menos trabalho e sacrifício.

 

Essa condição natural de diferença entre os indivíduos resulta na necessidade imperiosa de assegurar a cada um deles certa liberdade para realizar suas escolhas, o que muitas vezes significa a possibilidade de viver em algum lugar específico, que seja só seu e no qual possa realizar as suas expectativas de vida.

 

Nesse sentido, a propriedade exclusiva é parte da liberdade existencial e se manifesta como conquista da Sociedade. O uso exclusivo de imóvel amplia as alternativas sobre as quais a liberdade pode ser exercida. Trata-se de refinamento da cultura que chegou ao ponto de criar ambiente que contempla o respeito ao que pertence a terceiro.

 

Em ambientes nos quais o roubo, o furto, a extorsão e a violência comandam, a possibilidade de apropriação exclusiva de espaço constitui incerteza, o que impede ou dificulta o exercício da liberdade existencial.

 

Em estreita conexão com a primeira finalidade existe a segunda: a segurança do indivíduo e da sua família. O uso exclusivo do imóvel com a sua porta, portão e chave assegura maior proteção às pessoas, por dificultar o acesso de terceiros e estabelecer notório limite entre espaços abertos e fechados, livres e proibidos.

 

A residência de cada indivíduo é a sua toca, no qual pode andar livremente, guardar alimentos, dormir e realizar os atos usuais da vida humana. O espaço exclusivo é por excelência o lugar da sobrevivência e da estadia. Em regra, é o lugar onde o indivíduo se sente mais seguro.

 

Esse motivo e necessidade de segurança cria em cada indivíduo força e impulso suficiente para a construção e proteção dos espaços exclusivos que pode ser a casa, o apartamento, a fazenda, o sítio.

 

Em estreita conexão com a segurança, a privacidade é a terceira finalidade. O espaço no qual cada um dorme, acorda, troca de roupa, se alimenta, namora, afaga, brinca, estuda e se diverte, sem que esteja submetido ao convívio, exposição e juízo de estranhos torna viável a privacidade.

 

A necessidade de isolamento, recolhimento e distanciamento favorece a ausência de conflitos e só é possível em espaços mais exclusivos. A propriedade exclusiva é o lugar próprio da privacidade. É neste sentido que se diz: o lar é sagrado.

 

O quarto motivo e finalidade é o conforto. Cada personalidade cria o seu conforto. O banho quente ou frio, a água encanada, o colchão macio, os lençóis limpos, a geladeira com bebidas e alimentos, a televisão com múltiplos canais. Cada objeto da modernidade ilustra o potencial de conforto disponível, maximizado a partir das necessidades e expectativas de cada um.

 

As fazendas ou os sítios podem servir ao plantio e criação dos meios que alimentam a família. Antigamente, todos precisavam de espaços exclusivos nos quais produziam o alimento do cotidiano. Hoje, as pessoas trabalham em seus espaços exclusivos e a partir deles extraem os meios de sobrevivência. Desse modo, a propriedade é instrumento ou meio de subsistência em razão da exploração e obtenção de frutos que viabilizam a subsistência da família.

 

Por fim, a finalidade de formação de patrimônio. A acumulação de riqueza tem a nobre função de favorecer a sobrevivência de longo prazo das pessoas. Quem adquire certo patrimônio para locação, tem por objetivo formar renda para sua sustentação. A possibilidade de transmissão do imóvel importa em potencial de recurso que pode ser relevante para uma família que precisa realizar despesas médicas.

 

Esse aspecto da acumulação patrimonial é importante porque protege as pessoas da insolvência ditada pela fortuna ou sorte, como queira.

 

As pessoas não vivem apenas em espaços exclusivos. A casa, o sítio ou a fazenda podem ser os lugares preferidos pelas pessoas, mas o espaço não-exclusivo também é necessário.

 

Em primeiro plano, as áreas não-exclusivas são os espaços de circulação (caminhos, ruas, estradas, rios, mares, o ar), de estadia provisória (pontos, estações), de entretenimento e diversão (praia, parque, praça) e abastecimento de água (fontes, cursos de água). Esses espaços são bens usualmente denominados de uso comum do povo.

 

Em segundo plano, áreas não exclusivas também são os edifícios ou terrenos destinados a serviço ou estabelecimento da administração pública, assim como as unidades de conservação ambiental que são de posse e domínio público ou simplesmente as áreas verdes no território dos municípios. Esses espaços são bens usualmente denominados de uso especial.

 

Ambos, estão afetados ao uso não-exclusivo. No primeiro caso, o uso é direto pelo povo, sem vinculação com o serviço público, cabendo ao ente público competente assegurar a afetação da área ao uso comum. No segundo caso, o imóvel está vinculado ao serviço público e o uso é indireto, competindo também ao ente público competente assegurar a afetação da área ao uso especial definido.

 

A distinção entre bens de uso comum e bens de uso especial é meramente instrumental. Não é algo essencial porque ambos, como já foi dito são bens de uso não-exclusivo e o que determina essa essência comum é a afetação. Nesse sentido, o Código Civil estabelece a inalienabilidade como restrição comum: “Art. 100. Os bens públicos de uso comum do povo e os de uso especial são inalienáveis, enquanto conservarem a sua qualificação, na forma que a lei determinar.”

 

Podem existir outros usos não-exclusivos, além do que foram citados?

 

A resposta é sim. Espaços naturais destinados ao sustento coletivo de comunidade é um exemplo interessante. Podem tomar a forma de pastagens comuns, zonas de mariscar ou pescar, área dedicada ao extrativismo ou até mesmo à agricultura. Hortas comunitárias estão se difundindo em espaços públicos.

 

Espaços comuns em condomínios edilícios são tipicamente espaços de uso não-exclusivo, orientados pela finalidade da afetação.

 

Se a área ocupada com a atividade for pública, o uso poderá ser comum ou especial, segundo a condição de uso. Se a área for particular, cedida à algum grupo comunitário, o uso não exclusivo permanece como atividade dentro de determinado grupo social (interindividual).

 

Essas diferenças de finalidade modelam os deveres e direitos típicos de cada uso. A Figura 2 organiza sinteticamente a estrutura básica dos direitos e deveres nos imóveis de uso exclusivo e não-exclusivo. A diferença é significativa no plano dos direitos e deveres de cada tipo de relação jurídica. Percebe-se que são relações totalmente distintas, ainda que se aplique o nome de propriedade ou domínio.

 

Figura 2. Estrutura dos direitos e deveres em imóveis de uso exclusivo e não-exclusivo

 

O uso exclusivo é essencialmente poder e está refletido nos direitos e deveres da coluna esquerda (usualmente é denominado propriedade). O uso não exclusivo é essencialmente dever de assegurar a afetação e está refletido na coluna direita (usualmente denominada domínio, ainda que seja tipicamente relação de guarda patrimonial).

 

Essa estrutura racional dos usos dos imóveis orientada pela finalidade define a boa ordem fundiária. No Brasil, existem desvios de finalidade e disfunções de uso que comprometem essa boa razão e criam graves ineficiências.

 

Seis princípios podem ser deduzidos a partir da racionalidade exposta nesse artigo:

 

  • Eficiência da finalidade. Cada imóvel tem sua vocação de uso. Essa vocação determinada pela finalidade deve ser perseguida e mantida;
  • Respeito à afetação ao uso comum. Imóveis aplicados ao uso não-exclusivo devem ser protegidos na sua afetação para o gozo dos seus destinatários;
  • Respeito ao uso exclusivo. A propriedade privada deve ser protegida na sua finalidade de uso exclusivo e seu desrespeito significa desprezo, oposição e atentado à liberdade, segurança e bem-estar do indivíduo;
  • Limitação da propriedade pública. A propriedade pública (bens dominicais) pode existir como exceção e transitoriedade, considerando que os entes públicos são guardiões da afetação dos bens de uso comum ou especial;
  • Afetação no domínio privado comunal. Imóveis de uso não exclusivo afetados a certo uso comum ou especial podem existir mantendo-se sempre a coerência da afetação que motivou a sua criação;
  • Desvios e disfunções. Os desvios de finalidade no uso do imóvel e as disfunções de uso devem ser combatidos.

 

Fonte: Migalhas

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