Desde tempos imemoriais, a frase “escrito na pedra” simboliza a ideia de permanência absoluta. Uma das mais famosas manifestações dessa ideia é o Código de Hamurabi, um dos mais antigos conjuntos de leis escritas, gravadas em uma estela de diorito há quase 4.000 anos. Essas leis foram literalmente “escritas na pedra” para garantir que fossem imutáveis e conhecidas por todos. O Código de Hamurabi não apenas estabelecia normas de conduta, mas também assegurava que essas regras fossem visíveis e acessíveis a toda a sociedade, simbolizando a durabilidade e a autoridade das leis.

 

Na era digital, essa ideia de permanência assume um novo significado, pois a internet tem a capacidade de eternizar informações, muitas vezes sem distinção de relevância, precisão ou mesmo veracidade. Diferente das inscrições em pedra, que eram cuidadosamente selecionadas e esculpidas para preservar aspectos essenciais da cultura e governança, a informação digital pode ser frequentemente publicada sem filtros rigorosos, podendo incluir dados triviais, desatualizados ou até mesmo falsos.

 

A facilidade com que se publica e dissemina conteúdo online cria um arquivo virtual permanente, onde cada post, comentário ou notícia pode ser encontrado anos depois, perpetuando qualquer tipo de informações, sendo elas relevantes, verídicas, prejudiciais ou não.

 

Essa eternização digital pode ter consequências profundas na vida das pessoas. Informações que poderiam ser temporárias ou esquecidas no mundo analógico permanecem acessíveis indefinidamente, impactando a reputação, a privacidade e até mesmo o bem-estar emocional dos indivíduos. No contexto atual, onde a presença online é uma extensão significativa da identidade pessoal, ter controle sobre o que permanece disponível é crucial.

 

Cabe aqui rememorar um famoso caso no judiciário brasileiro1 onde “A 4a Turma do STJ ratificou decisão de 2013 que manteve a condenação da TV Globo a indenizar em R$ 50 mil, por ofensa à dignidade, um serralheiro que teve nome e imagem expostos em documentário sobre a Chacina da Candelária apresentado no programa Linha Direta – Justiça, em 2006. O episódio, que ficou conhecido mundialmente, ocorreu em 1993, próximo à Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro, e resultou na morte de oito jovens moradores de rua. O serralheiro, que figurou entre os acusados pela tragédia, foi absolvido no tribunal do júri em decisão unânime. No julgamento de 2013, o relator do processo, ministro Luis Felipe Salomão, reconheceu ao serralheiro o direito ao esquecimento, diante do longo tempo transcorrido e da decisão do conselho de sentença. Trouxe então:

 

“Ressalvam-se do direito ao esquecimento os fatos genuinamente históricos. Muito embora tenham as instâncias ordinárias reconhecido que a reportagem se mostrou fidedigna com a realidade, a receptividade do homem médio brasileiro a noticiários desse jaez é apta a reacender a desconfiança geral acerca da índole do autor, o qual, certamente, não teve reforçada sua imagem de inocentado, mas sim a de indiciado”, afirmou Salomão no voto proferido em 2013.” 2

 

Outra passagem que envolve o tema nas Cortes brasileiras é o caso Aída Curi.3 Onde em 1958, a jovem Aída Curi foi brutalmente assassinada no Rio de Janeiro, em um crime que chocou o país. Décadas depois, em 2004, a exibição do caso também no programa “Linha Direta”, trouxe novamente à tona detalhes perturbadores do crime, causando grande sofrimento aos familiares de Aída. Embora o crime tenha um relevante interesse histórico e social, a exposição contínua dos detalhes pessoais e dolorosos do evento destaca a importância de equilibrar o direito à informação com a necessidade de proteger a dignidade das vítimas e de seus familiares.

 

Caso semelhante ocorreu na Alemanha, no conhecido “Caso Lebach” (Soldatenmord von Lebach), onde, em 1973, o Tribunal Constitucional Federal Alemão decidiu que a televisão pública não poderia exibir um documentário sobre um crime violento ocorrido em Lebach. Os eventos se passaram em um vilarejo a oeste da Alemanha chamado Lebach, onde quatro soldados que vigiavam um depósito de munição foram assassinados, enquanto um quinto soldado ficou gravemente ferido e armas e munições foram roubadas. Após o julgamento, dois réus foram sentenciados à prisão perpétua, enquanto um terceiro foi condenado a seis anos de prisão. Este último cumpriu toda a sua sentença e descobriu que uma emissora de televisão havia produzido um documentário sobre o caso, e haviam programado para exibi-lo em rede nacional pouco antes de sua liberação.

 

O documentário incluía os nomes e fotografias dos acusados, além de uma reconstituição dos fatos. Esse réu entrou com uma ação judicial para impedir a exibição do programa, argumentando que a transmissão prejudicaria seu processo de reintegração social e que ele já havia cumprido a pena determinada pelo sistema. O tribunal reconheceu que a exibição do documentário poderia prejudicar gravemente o processo de ressocialização do ex-condenado, reiterando a importância do direito ao esquecimento na proteção dos direitos de personalidade e na promoção da reintegração social.4

 

Os três casos viraram “leading case” sobre a temática, mesmo tendo como questão central sua veiculação uma única vez na televisão nacional e podemos dizer que de forma “analógica”. Imagine o impacto hoje, na era digital, onde informações podem ser replicadas, compartilhadas e acessadas a qualquer momento, em qualquer lugar do mundo. A permanência de informações na internet amplia significativamente o potencial de dano, tornando ainda mais urgente que voltemos nossos olhares para esta temática de forma compatível com o mundo digitalizado em que vivemos.

 

Os casos relatados, tratam de fatos notórios, que possuem um relevante interesse social, pois são eventos que marcaram a história de seus respectivos países e têm um grande interesse público. No entanto, a questão aqui se dá quando não temos este apelo envolvido, mas sim um ponto pessoal sobre a vida de alguém, que pode ser eu ou você, e essa pessoa simplesmente não quer aquela informação exposta.

 

A questão toma forma quando informações privadas e pessoais, sem relevância pública significativa, continuam a ser acessíveis na internet. Esse tipo de exposição pode ser profundamente prejudicial para o indivíduo envolvido. Fato é que hoje a internet nos traz uma pena “perpétua” de qualquer situação que envolva o nosso nome. Mais do que uma condenação no âmbito penal, onde se paga a dívida com a sociedade através de penas estipuladas pelo Estado e, uma vez cumpridas, se está livre, a permanência dessas informações online perpetua o conteúdo.

 

Entramos então em uma discussão sobre a proteção dos direitos de personalidade frente à nova realidade digital em que nos encontramos. A manutenção de informações privadas e pessoais na internet, sem relevância pública significativa, pode causar danos emocionais e sociais irreparáveis. Indivíduos podem enfrentar diversas questões como estigmatização e discriminação, devido à perpetuação de informações antigas que não refletem mais sua realidade atual. A exposição contínua a esses dados infringe o direito fundamental à privacidade, dignidade e livre desenvolvimento, criando uma forma de punição perpétua que excede qualquer sentença judicial.

 

O direito à exclusão de informações surge como uma resposta necessária para equilibrar o acesso à informação e a proteção dos direitos de personalidade. Este direito reconhece que, embora a liberdade de expressão e o direito à informação sejam pilares fundamentais da democracia, eles devem ser ponderados com a necessidade de proteger a privacidade individual. Ao permitir que as pessoas solicitem a remoção definitiva de dados prejudiciais, a lei oferece uma ferramenta essencial para garantir que todos possam reconstituir suas vidas sem o fardo constante de um passado perpetuado digitalmente. Ou nas palavras de Nietzsche “Donde nenhuma felicidade, serenidade, esperança e gozo presente poderiam existir sem a faculdade do esquecimento.” (NIETZSCHE, 1998)

 

Outro famoso caso sobre o tema, que já foi citado em artigo anterior nesta coluna5 é o caso “Google Spain v. Mario Costeja González”. Em 2014, o Tribunal de Justiça da União Europeia decidiu que Mario Costeja González, um cidadão espanhol, tinha o direito de solicitar ao Google a remoção de links para páginas de um jornal que continham um anúncio sobre um leilão de imóveis relacionado a dívidas sociais, um assunto resolvido há muitos anos. O tribunal reconheceu que, embora as informações fossem verdadeiras, elas não eram mais relevantes e prejudicavam diretamente González. Este caso estabeleceu um precedente importante para o direito à exclusão de dados, afirmando que indivíduos têm o direito de solicitar a remoção de links para informações inadequadas, irrelevantes ou excessivas, mesmo que essas informações sejam verdadeiras. Mas de forma diversa do que ocorreu aqui, onde foi deferida a desindexação, a proposta trazida é de fato a exclusão da informação no site de origem.

 

Ainda que haja o Tema 786 “Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares.” – STF, de repercussão geral, a Subcomissão de Direito Digital trouxe como um apelo de modernizarmos a visão que o mundo digital nos impõe, no Capítulo II, “Da Pessoa no Ambiente Digital”, do novo livro intitulado “Direito Civil digital”, a proposta da exclusão de dados ou de informações que representem lesão aos direitos de personalidade, diretamente no site de origem em que foi publicado.

 

Porém, este é um direito que deve ser balizado. Dessa forma, a subcomissão definiu diversos critérios que devem ser cumpridos para que haja a exclusão da informação e são eles:

 

A demonstração de transcurso de lapso temporal razoável da publicação da informação verídica;

A ausência de interesse público ou histórico relativo à pessoa ou aos fatos correlatos;

A demonstração de que a manutenção da informação em sua fonte poderá gerar significativo potencial de dano à pessoa ou aos seus representantes;

Demonstração de que a manutenção da informação em sua fonte poderá gerar significativo potencial de dano à pessoa ou aos seus representantes legítimos e nenhum benefício para quem quer que seja;

A presença de abuso de direito no exercício da liberdade de expressão e de informação;

A concessão de autorização judicial.

Além disso, se provado pela pessoa interessada que a informação veio ao conhecimento de quem levou seu conteúdo a público por erro, dolo, coação, fraude ou por outra maneira ilícita, o juiz deverá imediatamente ordenar sua exclusão, invertendo-se o ônus da prova para que o site onde a informação se encontra indexada demonstre razão para sua manutenção.

 

Consideram-se obtidos ilicitamente, entre outros, os dados e as informações que tiverem sido extraídos de processos judiciais que correm em segredo de justiça, os obtidos por meio de hackeamento ilícito, os que tenham sido fornecidos por comunicação pessoal, ou a respeito dos quais o divulgador tinha dever legal de mantê-los em sigilo.

 

Desta forma, o que irá garantir o não abuso do uso deste direito é a análise criteriosa do juiz. A revisão judicial cuidadosa assegurará que os pedidos de exclusão de dados sejam avaliados com base nos critérios estabelecidos, equilibrando os direitos à privacidade e à informação de maneira justa e responsável. Isso garantirá que o direito à exclusão de dados seja utilizado de forma apropriada, protegendo os indivíduos de danos injustos enquanto mantém a integridade da informação pública quando necessária.

 

Portanto, defender o direito à exclusão de dados e informações é essencial para assegurar que as pessoas possam seguir suas vidas livremente sem o fardo constante de um passado perpetuado digitalmente. Este direito oferece um equilíbrio entre a preservação de informações de interesse público e a proteção dos direitos individuais, garantindo que todos tenham a oportunidade de controlar sua própria narrativa e viver livres das sombras de um passado digitalmente imortalizado. A implementação desta proposta no Código Civil representará um avanço significativo na proteção dos direitos de personalidade na era digital, refletindo uma sociedade que valoriza a dignidade, o livre desenvolvimento e a privacidade de seus cidadãos.

____________

 

1 RECURSO ESPECIAL 1.334.097 – RJ (2012/0144910-7)

 

2 Disponível aqui.

 

3 Recurso Extraordinário 1.010.606

 

4 Uma instituição de Rádio ou Televisão pode se valer, em princípio, em face de cada programa, primeiramente da proteção do Art. 5 I 2 GG. A liberdade de radiodifusão abrange tanto a seleção do conteúdo apresentado como também a decisão sobre o tipo e o modo da apresentação, incluindo a forma escolhida de programa. Só quando a liberdade de radiodifusão colidir com outros bens jurídicos pode importar o interesse perseguido pelo programa concreto, o tipo e o modo de configuração e o efeito atingido ou previsto. […] Aqui não se pode outorgar a nenhum dos dois valores constitucionais, em princípio, a prevalência [absoluta] sobre o outro. No caso particular, a intensidade da intervenção no âmbito da personalidade deve ser ponderada com o interesse de informação da população. 3. Em face do noticiário atual sobre delitos graves, o interesse de informação da população merece em geral prevalência sobre o direito de personalidade do criminoso. Porém, deve ser observado, além do respeito à mais íntima e intangível área da vida, o princípio da proporcionalidade: Segundo este, a informação do nome, foto ou outra identificação do criminoso nem sempre é permitida. A proteção constitucional da personalidade, porém, não admite que a televisão se ocupe com a pessoa do criminoso e sua vida privada por tempo ilimitado e além da notícia atual, p.ex. na forma de um documentário. Um noticiário posterior será, de qualquer forma, inadmissível se ele tiver o condão, em face da informação atual, de provocar um prejuízo considerável novo ou adicional à pessoa do criminoso, especialmente se ameaçar sua reintegração à sociedade (re- socialização). A ameaça à re-socialização deve ser em regra tolerada quando um programa sobre um crime grave, que identificar o autor do crime, for transmitido [logo] após sua soltura ou em momento anterior próximo à soltura. (SCHWAB, 2006, p. 487 e 488) .

 

5 Disponível aqui.

 

Fonte: Migalhas

 

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