O agronegócio desempenha um papel crucial na economia do Brasil, impactando significativamente o PIB – Produto Interno Bruto e a geração de empregos. Em 2023, o setor agropecuário, impulsionado pelo comércio de commodities, registrou um superávit de US$ 148,58 bilhões com exportações, alcançando US$ 165,05 bilhões e importações de US$ 16,47 bilhões.1 Commodities, por sua vez, são produtos essenciais de alta liquidez comercializados globalmente, incluindo alimentos como feijão, arroz, milho e trigo, além de recursos ambientais e minerais como água, ouro e ferro. O preço desses produtos é determinado no mercado internacional e varia conforme a oferta e demanda.
Diante das instabilidades biológicas e econômicas, os contratos de commodities a termo surgem como proteção para o agronegócio. Esses contratos permitem que produtores negociem suas produções futuras fixando preços desde o início, servindo, igualmente, como alternativa ao financiamento bancário tradicional.2
Contudo, eventos externos, tais como a pandemia de COVID-19, conflitos geopolíticos e desastres naturais, têm alterado a base contratual e causado impacto significativo na execução desses contratos nos últimos quatro anos. Isto porque a pandemia trouxe um impacto socioeconômico global, enquanto o conflito no leste europeu dobrou o custo de produção de grãos temporariamente, aumentando a carga para as partes envolvidas. Adicionalmente, a maior enchente da história do Rio Grande do Sul causou prejuízos bilionários e perdas significativas na produção agrícola, afetando não só o Estado, mas o Brasil como um todo.
Tal cenário reforça a necessidade de analisar a responsabilidade civil e seus limites na ruptura de contratos de commodities a termo provocada por tais eventos. Com efeito, torna-se necessária a análise dos institutos adequados à manutenção do equilíbrio contratual quando se trata de contratos de execução diferida, alterados em sua base por fatores externos, embora passageiros.
Assim, antes de analisar os efeitos da responsabilidade civil sobre um negócio, é importante explorar sua classificação. Entende-se que os contratos em comento são classificados como onerosos, bilaterais, sinalagmáticos, comutativos e de execução diferida, pois, caso assim não fosse, deveriam ser classificados como aleatórios, conforme disposto no art. 483, do Código Civil (2002): “a compra e venda pode ter por objeto coisa atual ou futura. Neste caso, ficará sem efeito o contrato se esta não vier a existir, salvo se a intenção das partes era de concluir contrato aleatório”.
É importante distinguir os contratos a termo dos contratos futuros. Os últimos são, de fato, sinalagmáticos3, pois envolvem maior risco relacionado ao ativo subjacente escolhido para a precificação do objeto contratual. Em tais contratos, a autonomia das partes na sua celebração é limitada, a não ser a atividade volitiva de operar no mercado, isto é, opera quem quer e sujeito às formas pré-estabelecidas. O mercado futuro também é caracterizado pela intermediação de agentes econômicos, como corretoras e, em alguns casos, operado no mercado organizado, a saber, a bolsa de valores.
Convém apontar que há contratos a termo realizados diretamente entre pequenos produtores e grandes empresas, sem nenhuma intervenção de agente econômico, com a condição de a atividade volitiva das partes, a legislação e os termos contratuais devem ser respeitados. E tal situação não é incomum de ocorrer, não deixando, em razão disso, de serem conceituados como contratos a termo.
Ocorre que, como todo contrato, os contratos a termo estão igualmente sujeitos às consequências do inadimplemento em caso de descumprimento, consequências que podem estar previstas em contrato ou sujeitas à responsabilidade civil stricto sensu.
A distinção entre a responsabilidade contratual e a extracontratual é relevante devido à facilidade de atribuir a responsabilidade no primeiro caso: Se houver descumprimento de cláusula contratual, é presumida a culpa pelo inadimplemento, esta, em regra, necessária à reparação do dano causado.
Contudo é inquestionável que o inadimplemento corresponderá a uma indesejada etapa final, na qual será alterado o conteúdo do vínculo. Substitui-se a prestação originária por uma obrigação sucessiva de indenizar, em geral, cumulada com alguns dos institutos acessórios previstos nos arts. 389 a 420 do Código Civil (Título IV, do Livro I, da Parte Especial).
Ainda, para os casos de inadimplemento de contratos de commodities a termo, utiliza-se a denominada cláusula de wash out, cuja função é ratificar a obrigação do produtor rural a pagar um valor extra ao credor. O valor pago será obtido pela diferença entre o valor negociado e aquele cotado no mercado de commodities no momento da entrega retardatária. Em razão disso, entendemos que a wash out, tem natureza de cláusula penal.
De qualquer forma, o inadimplente somente se livrará da obrigação caso prove a existência de excludentes de responsabilidade: culpa exclusiva da vítima, caso fortuito ou força maior, ou excludente contratual.
Em alguns casos, as excludentes de caso fortuito ou força maior são consideradas sinônimos por parte da doutrina. No entanto, ambas são eventos externos, completamente independentes da vontade do agente e do seu controle, podendo ser distinguidas pela imprevisibilidade e irresistibilidade do evento. Assim, entende-se que, para o caso em questão, a distinção de caso fortuito e força maior tem pouca relevância, já que o art. 393 do Código Civil aplica o mesmo tratamento legal a ambos os conceitos.
Contudo, para todos os efeitos, a força maior e o caso fortuito têm como efeito a excludente de responsabilidade civil e a extinção do contrato, o que não se espera quando se realiza contratos a termo alterados em sua base em razão de eventos externos passageiros.4
A manutenção do vínculo contratual, com sua adaptação por meio da renegociação ou revisão e o restabelecimento do equilíbrio, especialmente em contratos de execução diferida, deve ser priorizada antes de se optar pela extinção do vínculo, dado que esses contratos costumam estar interligados a outros contratos, como os contratos em rede. Isto é, o que se busca é a mitigação do pacta sunt servanda, com a possibilidade de revisão dos termos contratuais, a fim de dar lugar aos deveres preconizados pela cláusula rebus sic stantibus5, visando manter o equilíbrio e o sinalagma contratual e, consequentemente, evitar a onerosidade excessiva para uma das partes.
Assim, a fim de se manter a sobrevivência do contrato, mantendo-se o devido equilíbrio contratual, é necessário afastar-se dos efeitos da responsabilidade civil e utilizar-se dos institutos específicos.
No caso de a prestação ser exequível, porém de maneira mais custosa ao devedor, não se está diante da força maior, pois esta tem como efeito a excludente de responsabilidade civil, art. 393, CC e a extinção do contrato. Deve-se, então, utilizar a figura específica para resolver exatamente a situação, a qual induz ao reconhecimento da necessidade e possibilidade de renegociar cláusulas anteriormente celebradas6, alicerçadas na Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio Jurídico, em razão da quebra da base negocial entre as partes.
Isso acontece porque a Teoria da Quebra da Base Objetiva apenas exige que a base da vontade tenha sido quebrada, pois nenhuma das partes teria assumido o risco do fato que ensejou a quebra.7 Tal teoria supera as lacunas deixadas pela Teoria da Imprevisão e Onerosidade Excessiva, abrangidas pelos arts. 317 e 478 do Código Civil que, em regra, exigem que se comprove que o evento fosse ou não imprevisível para o negócio celebrado, o que em última análise, traz problemas maiores do que aqueles mesmos que o direito pretende resolver.8
O caso tratado no Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial (AgInt no AREsp 698136 SP 2015/0097370-2) foi um dos que foi positivo à mitigação do pacta sunt servanda, em detrimento da manutenção do equilíbrio contratual sob fundamento da Teoria da Quebra da Base Objetiva.
Nesse caso, a controvérsia girou em torno da análise da estiagem como possível causa excludente de responsabilidade contratual, na qual foi debatido se tal situação justificaria a isenção de multa pelo inadimplemento. Após examinar o contrato de compra e venda, constatou-se que os riscos decorrentes do contrato até a entrega do produto eram atribuídos ao vendedor, porém, diante da situação peculiar de longa estiagem, o Poder Judiciário não hesitou em julgar para equilibrar os ônus contratuais, evitando desequilíbrio entre as partes.
Como fundamentado pelo então relator Paulo de Tarso Sanseverino, embora a jurisprudência do STJ indique a inaplicabilidade da Teoria da Imprevisão aos contratos de compra e venda de safra futura de soja, o caso em questão evidenciou que o longo período de estiagem comprometeu significativamente a produção agrícola na região, oficialmente declarada uma situação anormal.
Após a análise das provas apresentadas, verificou-se que a perda na produção de soja mostrou-se substancialmente maior do que o indicado pela parte contrária, demonstrando a gravidade da situação. Ademais, houve, em razão dos mesmos fatos, renegociação por parte do autor com outras empresas, razão pela qual aqueles contratos não precisaram de intervenção estatal, o que evidenciou a boa-fé do autor.
Como demonstrado, existem institutos jurídicos bem estabelecidos que fundamentam a renegociação dos contratos discutidos. Tais institutos não se limitam a aplicar excludentes de responsabilidade civil, mas também permitem a continuidade dos contratos quando eventos externos temporários modificam suas bases. Assim, cumprem o objetivo de preservar o equilíbrio contratual e sustentar a parceria comercial.
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1 FERREIRA, D. Comércio exterior do agronegócio: primeiro trimestre de 2024. Carta de Conjuntura, Brasília, v. 63, p. 1-9, abr. 2024. Nota 3. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2024
2 REIS, M. Crédito rural. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 371-373.
3 MARTINS-COSTA, J. Contratos de derivativos cambiais: contratos aleatórios: abuso de direito e abusividade contratual: boa-fé objetiva: dever de informar e ônus de se informar: teoria da imprevisão: excessiva onerosidade superveniente. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 15, n. 55, jan./mar. 2012. p. 321.
4 SIMÃO, J. F. O contrato nos tempos da covid-19″. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Migalhas, 3 abr. 2020. p. 13-14.
5 AZEVEDO, Á. V. Inaplicabilidade da teoria da imprevisão e onerosidade excessiva na extinção dos contratos. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Doutrina: Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 20 anos. Brasília: STJ, 2009. p. 333-351.
6 AGUIAR JÚNIOR, R. R. Comentários ao novo código civil: da extinção do contrato. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2018. v. IV, tomo II. p. 903-904.
7 FRITZ, K. N. Revisão contratual e quebra da base do negócio. Direito UNIFACS, Salvador, n. 247, fev. 202. p. 11-18.
8 CORDEIRO, A. M. R. E. Da boa fé no direito civil. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2013. p. 955-963.
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AGUIAR JÚNIOR, R. R. Comentários ao novo código civil: da extinção do contrato. Rio de Janeiro: Forense, 2018. v. IV, tomo II.
AZEVEDO, Á. V. Inaplicabilidade da teoria da imprevisão e onerosidade excessiva na extinção dos contratos. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Doutrina: Superior Tribunal de Justiça: edição comemorativa 20 anos. Brasília: STJ, 2009. p. 333-351. Disponível aqui. Acesso em: 21 mar. 2024.
BRASIL. Superior Tribunal de Justiça (3. Turma) AgInt no AREsp 698136 SP 2015/0097370-2. Agravo interno no agravo em recurso especial. civil, processual civil (CPC/1973). Rescisão contratual. compra e venda de safra futura de soa. negativa de prestação jurisdicional […]. Agravante: ADM do Brasil LTDA. Agravado: Renato Somavilla. Relator: Min. Paulo de Tarso Sanseverino, 16 de fevereiro de 2017.
CORDEIRO, A. M. R. E. Da boa fé no direito civil. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2013.
FERREIRA, D. Comércio exterior do agronegócio: primeiro trimestre de 2024. Carta de Conjuntura, Brasília, v. 63, p. 1-9, abr. 2024. Disponível aqui. Acesso em: 13 abr. 2024.
FRITZ, K. N. Revisão contratual e quebra da base do negócio. Direito UNIFACS, Salvador, n. 247, fev. 2021.
REIS, M. Crédito rural. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
MARTINS-COSTA, J. Contratos de derivativos cambiais: contratos aleatórios: abuso de direito e abusividade contratual: boa-fé objetiva: dever de informar e ônus de se informar: teoria da imprevisão: excessiva onerosidade superveniente. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 15, n. 55, p. 321-381, jan./mar. 2012.
SIMÃO, J. F. O contrato nos tempos da covid-19″. Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Migalhas, abr. 2020.
Fonte: Migalhas
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