Relação entre tempo e lei processual, mudanças no CPC e a aplicabilidade imediata referente a segurança jurídica

 

  1. Introdução

 

Em uma das suas composições mais bonitas, Gil alerta para a transitoriedade do equilíbrio em dois versos que, juntos, parecem ecoar em compasso de alerta permanente: “Não se iludam, não me iludo // Tudo agora mesmo pode estar por um segundo”.

 

O presente artigo trata do tempo, mas não no âmbito metafísico da poética de Gil.

 

As nossas aspirações são muito mais concretas e mundanas: interessa-nos discutir a relação entre tempo e a lei processual.

 

O curioso é que, nesse movimento, terminaremos por, dogmaticamente, justificar a advertência do mais musical dos imortais.

 

Por ora, comecemos assim: na recente alteração do CPC, levada a efeito pela lei 14.879/24, a redação do art. 63, §1º foi substancialmente modificada, com a finalidade de estabelecer uma espécie de aderência geográfica da cláusula de eleição de foro.

 

Se antes a exigência legal era no sentido de que a eleição produziria efeitos desde que (i) contasse em instrumento escrito e (ii) aludisse expressamente a determinado negócio jurídico, agora, para além desses dois requisitos, é preciso que a cláusula guarde pertinência com o domicílio ou a residência de uma das partes ou com o local da obrigação.

 

Nosso objetivo aqui não é o de colocar em perspectiva o conteúdo da norma. Não por falta de elementos a crítica1, mas porque o escopo, lembramos, está no tempo. E, nesse ponto, chama atenção o silêncio do legislador.

 

Porque a lei 14.879/24 não trouxe consigo nenhum referencial de tempo específico, a fim de regulamentar a aplicabilidade das inovações por ela afirmadas, enquanto dispunha sobre as relações jurídicas já consolidadas. Optando pelo silêncio, o legislador justifica que as lições de direito intertemporal incidam nas situações concretas apresentadas ao Judiciário.

 

E é aí que a confusão tem início.

 

  1. Tempus regit actum

 

A regra geral, vinculada ao brocardo latino, está consolidada no art. 14 do CPC: a norma processual será aplicável imediatamente os processos em curso. Então, sem muito esforço, o intérprete mais apressado poderia recair no seguinte silogismo: (premissa maior) a norma processual possui aplicabilidade imediata; (premissa menor) a eleição de foro constitui um negócio jurídico processual; (conclusão) as novas condicionantes à cláusula de eleição de foro possuem aplicabilidade imediata.

 

De súbito, portanto, passa a valer o que o legislador resolveu por bem afirmar. Por um segundo, tudo diferente.

 

O traço problemático desse raciocínio imediatista, contudo, não está na dimensão processual da cláusula de eleição, mas nos contornos de direito material que a recobrem.

 

Admitir a aplicação imediata do novo art. 63, §1º, do CPC impõe ao intérprete o impossível ônus de justificar como uma regra mais restritiva poderia afetar uma deliberação livremente havida entre as partes, no espectro de liberdade negocial que lhe autorizava o legislador, e consubstanciada em um instrumento contratual perfeito e acabado, com potencial de emanação de diversos direitos e deveres.

 

  1. O ato jurídico perfeito

 

Debruçando-se sobre o conceito de ato jurídico perfeito, Luis Roberto Barroso2, argumenta que:

 

O problema de direito intertemporal se coloca exatamente em relação aos eventos que começaram a se verificar antes, mas cujos efeitos ou parte deles apenas ocorreram depois da vigência da nova lei. Ademais, a segurança jurídica seria gravemente vulnerada se apenas se pudesse ter certeza das regras aplicáveis a atos ou negócios instantâneos, que se esgotassem em um único momento; nessa linha de raciocínio, qualquer relação que perdurasse no tempo poderia ser colhida pela lei nova, em detrimento evidente da previsibilidade mínima que se espera do Estado de Direito.

 

Sendo a cláusula de eleição de foro, em última análise, um negócio jurídico3 (de viés processual), é inquestionável que o instrumento que a salvaguardou reveste-se de contornos de imutabilidade, em virtude da garantia constante no art. 5º, XXXVI, da CF, onde se lê que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.

 

Ora, não se trata de impedir que o Judiciário realize controle de legalidade de dispositivo negociado pelas partes, mas de assegurar que, nessa investida, o referencial normativo seja utilizado de maneira adequada. Ou seja, para que o juízo repute inválida eleição de foro pactuada livremente pelas partes contratantes, seria preciso demonstrar que essa pactuação desatendia à norma vigente ao tempo da sua celebração (a redação originária do art. 63, §1º, do CPC).

 

Com efeito, se o negócio jurídico processual foi praticado na vigência da redação originária do art. 63, §1º, do CPC, apenas esse artigo poderá ser utilizado como referencial hermenêutico pelo órgão julgador, mesmo que a ação judicial tenha sido ajuizada quando da vigência da nova redação desse dispositivo.

 

Não sendo assim, incorre-se em violenta hermenêutica de medir situação pretérita por régua interpretativa criada posteriormente, fazendo com que, nesse movimento, o direito adquirido (de acessar o foro de eleição) originário de um ato jurídico perfeito (negócio jurídico processual) seja irremediavelmente violado.

 

Aqui, vale tomar de empréstimo a lição de Eduardo Cambi acerca da norma processual no tempo:

 

(…) Os fatos ocorridos e situações jurídicas já consumadas no passado, quando da vigência do CPC-73, não se regem pelo NCPC, mas continuam valorados segundo a lei do seu tempo, respeitados e preservados os efeitos deles já produzidos e aqueles ainda a serem produzidos.4

 

Nesse mesmo sentido, o magistério de Luiz Fux:

 

A lei processual tem efeito imediato e geral, aplicando-se aos processos pendentes, respeitados os direitos subjetivo-processuais adquiridos, o ato processual perfeito, seus efeitos já produzidos ou a se produzir sob a égide da nova lei, bem como a coisa julgada.5

 

Esse foi o entendimento encampado pelo TJSP no julgamento do Agravo de Instrumento 2209311-60.2024.8.26.00006, do qual se extrai o seguinte trecho do voto de relatoria da desembargadora Ana de Lourdes Coutinho,

 

Por fim, não cabe aplicar ao caso a nova redação da norma do §1°, do artigo 63 do CPC, introduzida pela lei 14.879/24.

 

Embora a lei processual tenha aplicação imediata, não pode retroagir para prejudicar direitos adquiridos, atos jurídicos perfeitos ou a coisa julgada.

 

E no caso em tela, verifica-se que o contrato foi firmado em data anterior à vigência da nova lei, de maneira que, inexistindo tais limitações e atuando as partes de acordo com a autonomia que lhes era então garantida, a cláusula de eleição de foro estabelecida no contrato deve ser reputada válida

 

No memo sentido,

 

Alinhe-se, outrossim, que não se desconhece o teor da lei 14.879, mas, para sua aplicação, deve ser observada a data de vigência da norma – 4/6/24 – admitindo-se sua pertinência somente para casos havidos após a sua entrada em vigor e não àqueles em que se verifica o ato jurídico perfeito, com o direito material ou imaterial já aperfeiçoados.7

 

Em sentido contrário, no entanto, privilegiando o argumento do tempus regit actum, é possível citar, exemplificativamente, o seguinte precedente:

 

PROCESSO CIVIL. CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA. 2ª VARA DE SOBRADINHO/DF (SUSCITANTE) E 24ª VARA CÍVEL DE BRASÍLIA/DF (SUSCITADO). CLÁUSULA DE ELEIÇÃO DE FORO. ESCOLHA ALEATÓRIA. ABUSIVIDADE. DECLÍNIO DA COMPETÊNCIA DE OFÍCIO. POSSIBILIDADE. LEI 14.879/2024. DECLARADO COMPETENTE O JUÍZO SUSCITANTE. I. Em 4 de junho de 2024 foi sancionada a Lei 14.879/2024, que altera o artigo 63 da Lei 13.105/2015, para estabelecer que a eleição de foro deve guardar pertinência com o domicílio das partes ou com o local da obrigação e que o ajuizamento de ação em juízo aleatório constitui prática abusiva, passível de declinação de competência de ofício. II. Além disso, o princípio da imediatidade, positivado no art. 14 do Código de Processo Civil, determina a aplicação imediata da norma processual aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas já consolidadas (situações estas não ocorrentes no caso concreto). (…)

 

(TJ-DF 07292511620248070000 1912996, relator: FERNANDO ANTONIO TAVERNARD LIMA, Data de Julgamento: 26/8/24, 2ª Câmara Cível, Data de Publicação: 11/9/24)

 

Sob nossa perspectiva, não se trata de recusar vigência o art. 14 do CPC, mas de privilegiar a segurança jurídica inerente ao negócio jurídico que, uma vez aperfeiçoado, vincula as partes e o próprio Judiciário.8

 

  1. Uma conclusão: No futuro, o passado

 

O direito não escapa da contingência das mudanças cantada por Gil. O que se escreve hoje, amanhã pode vir acompanhado de ressalvas, condicionantes, balizamentos – seja por um movimento hermenêutico-jurisprudencial, seja porque assim achou por bem o legislador.

 

Em certa medida, no entanto, reconhecer esse estado de insegurança é o que permite avançar na elaboração de garantias capazes de defender as situações jurídicas desse estado de latente imprevisibilidade, consolidando acordos, estabilizando decisões.

 

Promovendo, enfim, uma espécie de movimento contrafactual no qual o passado se projeta no futuro e a ele vincula.

 

Para que guardemos coerência com o tema deste breve artigo: a garantia do ato jurídico perfeito, a resguardar a cláusula de eleição de foro celebrada antes da modificação legislativa do art. 63, §1º, do CPC, nada mais é do que manifestação desse passado teimoso que se recusa a esmorecer.

 

Se bem pensadas, talvez o acordo venha da união das vozes de Gil e Caetano; daquele que, sabendo-se a qualquer tempo exposto à mudança, ainda consiga solfejar: “Peço-te o prazer legítimo // E o movimento preciso // Tempo, tempo, tempo, tempo // Quando o tempo for propício”.

 

___________

 

1 Parece-nos, mesmo em uma análise prima facie, que o dispositivo pode ser lido como uma afronta, no âmbito constitucional, à autonomia privada (art. 170 da CF); e, no âmbito infraconstitucional, à liberdade negocial insculpida no art. 421, parágrafo único, do CC.

 

2 Em algum lugar do passado: segurança jurídica, direito intertemporal e o novo Código Civil. In: Revista Brasileira De Estudos Políticos, 90, p. 45, https://doi.org/10.9732/3.

 

3 “Negócio jurídico é um ato pelo qual, em razão do autorregramento da vontade, o sujeito manifesta vontade visando à criação, modificação ou extinção de situações jurídica previamente definidas no ordenamento jurídico” (NOGUEIRA apud AVELINO, Murilo Teixeira. Sobre a atipicidade dos negócios processuais e a hipótese típica de calendarização. In: Novo CPC doutrina selecionada, v.1. Salvador: Editora JusPodivm, 2015, p. 1113)

 

4 CAMBI, Eduardo et al. Direito intertemporal – Aplicação do Novo Código de Processo Civil no Tempo, Flávio Luiz in Yarshell (coordenador); PESSOA, Fábio Guidei Tabosa (coordenador); DIDIER JÚNIOR, Fredie (coordenador geral). Direito Intertemporal, Coleção Grandes Temas do Novo CPC. Salvador: Juspodivm, 2016, v. 7. p. 174.

 

5 Fux, Luiz. Curso de direito processual. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 26

 

6 TJ-SP – Agravo de Instrumento: 22093116020248260000 São Paulo, Relator: Ana de Lourdes Coutinho Silva da Fonseca, Data de Julgamento: 10/09/2024, 13ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 10/09/2024

 

7 TJ-SP – Agravo de Instrumento: 21774384220248260000 São Paulo, Relator: Dimas Rubens Fonseca, Data de Julgamento: 10/09/2024, 28ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 11/09/2024

 

8 É consequência do disposto no artigo 200 do Código de Processo Civil que as declarações bilaterais de vontade têm efeito imediato, exceto nas hipóteses em que a lei determine a homologação judicial. Desse modo, por consequência, os magistrados estarão, em princípio, sujeitos aos termos do negócio (SANTOS, Silas Silva et al., Comentários ao Código de Processo Civil – Ed. 2020, Editora Revista dos Tribunais, página RL-1.40)

 

Fonte: Migalhas

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