Apelação Cível nº 1000348-35.2024.8.26.0236

 

Espécie: APELAÇÃO

Número: 1000348-35.2024.8.26.0236

Comarca: IBITINGA

 

PODER JUDICIÁRIO

 

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO

 

CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA

 

Apelação Cível nº 1000348-35.2024.8.26.0236

 

Registro: 2024.0000961735

 

ACÓRDÃO

 

Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível nº 1000348-35.2024.8.26.0236, da Comarca de Ibitinga, em que são apelantes MARIA TERESA ANTONELLI CALDAS e JOÃO ANSELMO MONTANARI DA CUNHA, é apelado OFICIAL DE REGISTRO DE IMÓVEIS E ANEXOS DA COMARCA DE IBITINGA.

 

ACORDAM, em Conselho Superior da Magistratura do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferir a seguinte decisão: “Por maioria de votos, deram provimento ao recurso para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do pacto antenupcial, nos termos do voto do Desembargador Relator Francisco Loureiro. Vencidos os Desembargadores Fernando Torres Garcia, Beretta da Silveira e Xavier de Aquino, que votaram por negar provimento ao recurso. Declararão votos divergentes os Desembargadores Fernando Torres Garcia e Beretta da Silveira.”, de conformidade com o voto do Relator, que integra este acórdão.

 

O julgamento teve a participação dos Exmos. Desembargadores FERNANDO TORRES GARCIA (PRESIDENTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA) (Presidente), BERETTA DA SILVEIRA (VICE PRESIDENTE), XAVIER DE AQUINO (DECANO), TORRES DE CARVALHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO PÚBLICO), ADEMIR BENEDITO(PRES. SEÇÃO DIREITO PRIVADO) E CAMARGO ARANHA FILHO(PRES. SEÇÃO DE DIREITO CRIMINAL).

 

São Paulo, 1º de outubro de 2024.

 

FRANCISCO LOUREIRO

 

Corregedor Geral da Justiça e Relator

 

APELAÇÃO CÍVEL nº 1000348-35.2024.8.26.0236

 

Apelantes: Maria Teresa Antonelli Caldas e João Anselmo Montanari da Cunha

 

Apelado: Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da Comarca de Ibitinga

 

VOTO Nº 43.544

 

Registro de Imóveis – Escritura pública de pacto antenupcial que fixa o regime da separação convencional de bens – Cláusula que prevê a renúncia recíproca ao direito sucessório em concorrência com herdeiros de primeira classe, conforme previsão do art. 1.829, I, do CC – Desqualificação pelo Oficial e dúvida julgada procedente, sob o argumento de infringência ao art. 426 do CC, que veda contrato cujo objeto seja herança de pessoa viva – Controvérsia doutrinária acerca da validade da renúncia antecipada ao direito sucessório concorrencial – Validade da renúncia defendida por parte da doutrina, que não vislumbra transgressão a nenhum dispositivo legal (arts. 426, 1.784 e 1.804, parágrafo único, todos do CC) – Distinção entre pacta corvina e renúncia antecipada à herança, que não tem como objeto disposição sobre o patrimônio de pessoa viva – Discussão sobre a legalidade da renúncia antecipada de herdeiro necessário à legítima, antes da abertura da sucessão, que somente seria possível de lege ferenda – Cônjuges devidamente advertidos, por ocasião da lavratura da escritura, a respeito da controvérsia do tema e possibilidade de invalidação futura da cláusula – Registro no Livro 03 do RI obstado em razão de uma única cláusula, impedindo que o pacto como um todo surta efeitos perante terceiros – Validade da renúncia antecipada será avaliada na esfera jurisdicional se a sociedade e o vínculo conjugal terminarem pela morte de um dos cônjuges e se houver concorrência na sucessão – Registro do pacto essencial para que o regime da separação convencional de bens, em sua totalidade, tenha eficácia em face de terceiros – Registro do pacto não significa adesão à legalidade da cláusula de renúncia antecipada, aberta a via jurisdicional para discussão dos interessados, após a abertura da sucessão – Distinção entre a amplitude da qualificação do registrador para o registro constitutivo de direitos reais e para o registro de pacto antenupcial, para fins de eficácia perante terceiros – Apelação provida para determinar o registro do pacto antenupcial.

 

Trata-se de apelação interposta por Maria Teresa Antonelli Caldas e João Anselmo Montanari da Cunha contra a r. sentença de fls. 81/83, proferida pela MM. Juíza Corregedora Permanente do Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoa Jurídica da Comarca de Ibitinga, que, mantendo a exigência formulada pelo Oficial, negou o registro no Livro nº 3 Registro Auxiliar de escritura pública de Pacto Antenupcial formalizado pelos apelantes.

 

Alegam os recorrentes, em síntese, que está em vias de ser aprovada legislação que prevê expressamente a possibilidade de renúncia tanto ao direito sucessório concorrencial como à condição de herdeiro.

 

Pedem, ao final, o registro do pacto antenupcial (fls. 91/105).

 

A Procuradoria de Justiça opinou pelo não provimento do recurso (fls. 139/142).

 

Petição dos apelantes a fls. 146/150.

 

É o relatório.

 

  1. De acordo com o Oficial, o registro do pacto foi obstado por afronta ao art. 426 do Código Civil, que tem a seguinte redação:

 

Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.

 

Idêntico argumento foi utilizado pela MM. Juíza Corregedora Permanente para julgar a dúvida procedente (fls. 81/83).

 

Em suma, por conter o pacto em uma de suas cláusulas afronta a norma cogente, se negou acesso ao Livro 3 do Oficial de Registro de Imóveis.

 

  1. Respeitados entendimentos diversos, inclusive aquele lançado em precedentes deste Conselho Superior da Magistratura (apelação nº 1022765-36.2023.8.26.0100, julgada em 11/10/2023, e apelação nº 1007525-42.2022.8.26.0132, julgada em 22/9/2023), o caso é de provimento da apelação, embora com observação.

 

Como ressaltado nos julgados anteriores deste Conselho sobre o tema, é conhecida a controvérsia doutrinária e jurisprudencial acerca da validade da renúncia antecipada ao direito sucessório concorrencial.

 

Discute-se, em resumo, se no momento da lavratura do pacto antenupcial cabe renúncia dos cônjuges à concorrência com herdeiros de primeira classe, na forma prevista do art. 1.829, I, do Código Civil.

 

  1. E é justamente esse intenso debate e a qualidade dos argumentos em ambos os sentidos validade ou invalidade que justificam o registro do título.

 

Os apelantes buscam registrar pacto antenupcial por meio do qual optaram pelo regime da separação convencional de bens (art. 1.687 e 1.688 do CC).

 

Na escritura, de modo coerente com o que pretendem que vigore na hipótese de divórcio, ou seja, a total separação de bens, os interessados renunciaram reciprocamente ao direito sucessório concorrencial, por meio de cláusula assim redigida:

 

“Os outorgantes e reciprocamente outorgados, falando cada um por sua vez, manifestaram o desejo de renunciarem, expressamente, de forma recíproca ao direito sucessório concorrencial, razão pela qual foram devidamente esclarecidos por este Tabelião que atualmente existe grande divergência doutrinária a respeito desta possibilidade sendo certo ainda que a jurisprudência do STJ considera nula essa cláusula por ferir norma de ordem pública, contida no artigo 426 do Código Civil. Mesmo assim, após todas as ciências, desejam deixar registrado que, se a época do falecimento de qualquer um deles, a doutrina ou a jurisprudência permitir, por entenderem não se tratar de pacto corvina, optam por, de fato e de direito, não participarem de futura sucessão um do outro, quando em concorrência com os descendentes ou ascendentes, restando afastada, assim, regra de concorrência dos incisos I e II do artigo 1829 do Código Civil, uma vez que ambos tem seus patrimônios totalmente separados um do outro.

 

Esclarecem ainda que repita-se tudo foi devidamente esclarecido pelo Tabelião, inclusive a posição atual do STJ sobre a matéria, considerando a inegável existência e plena vigência do princípio da autonomia privada, renunciam reciprocamente ao direito sucessório concorrencial, isentando o Tabelião de todas e quaisquer responsabilidades pelo teor da presente declaração” (fls. 4).

 

Sucede que o registro do pacto, negado unicamente em razão do teor da cláusula acima transcrita, é necessário para torná-lo oponível a terceiros (art. 1.657 do Código Civil). Sem o registro da convenção antenupcial no Livro nº 3 Registro Auxiliar (art. 178, V, da Lei nº 6.015/73), o regime de bens como um todo escolhido produzirá efeitos apenas entre os cônjuges, gerando situação de grave insegurança jurídica frente a terceiros.

 

Discute-se acerca de a validade de uma única cláusula ser suficiente para impedir o registro de todo o pacto, que envolve não somente renúncia à herança futura, mas também e sobretudo a adoção do regime da separação convencional de bens.

 

Sabido que um dos princípios cardeais do nosso Código Civil é o da conservação dos negócios jurídicos, positivado em diversos dispositivos, com destaque para o artigo 184 (utile por inutile non vitiatur).

 

Disso decorre que ainda que uma cláusula isolada do pacto seja nula, tal circunstância não compromete a adoção do regime da separação convencional de bens, muito menos que sua publicidade se dê pelo ingresso do título no registro imobiliário.

 

Além disso, diante do teor altamente polêmico da validade da cláusula de renúncia antecipada à herança em concorrência com a primeira classe, se indaga da razoabilidade de que na esfera administrativa se reconheça sua nulidade, antecipando discussão que poderá ser travada na esfera jurisdicional.

 

Finalmente, se a qualificação pelo registrador de um pacto antenupcial, cujo registro lhe empresta eficácia perante terceiros, tem a mesma abrangência da qualificação de um registro de um direito real, de natureza constitutiva.

 

  1. Passa-se ao exame das razões da recusa ao acesso do título.

 

Embora a nota devolutiva do Registrador e a r. Sentença da MM. Juíza Corregedora Permanente tenham entendido que houve contrato cujo objeto é a herança de pessoa viva (pacta corvina), duvidosa se mostra a violação à norma cogente do art. 426 do Código Civil, como se os contratantes desejassem a morte daquele de quem a sucessão se contratara.

 

Na verdade, a expressão “pactos sucessórios” envolve diversas modalidades de negócios. Verificam-se três principais espécies de pactos sucessórios: o pacto positivo ou aquisitivo, também conhecido como de succedendo, segundo o qual o autor da herança alienaria o patrimônio objeto de sua herança a terceira pessoa; o pacto negativo, de non succedendo, popularmente conhecido como pacto renunciativo, em que uma pessoa poderia renunciar à sucessão de outra; e, por fim, os atos bilaterais inter vivos, chamados hereditati tertii.

 

No caso concreto não há propriamente contrato sobre herança de pessoa viva. A vedação legal a tal pacto (pacta corvina) repousa em duas razões. Primeiro, se houver participação no negócio do titular do patrimônio, que ocasionaria violação ao direito potestativo e permanente de revogação de testamento até o momento da morte. Segundo, o estímulo imoral do beneficiário de desejar a morte do disponente.

 

Na renúncia não se dispõe e nem se cria qualquer ônus sobre a herança. Apenas o potencial herdeiro abdica de tal qualidade antes da abertura da sucessão. O único óbice diz respeito ao próprio herdeiro, e não ao titular do patrimônio, qual seja, o de abdicar de avaliar quanto ao melhor momento da renúncia.

 

Ao renunciar à herança, o renunciante abre mão de qualquer benefício que poderia ter com o falecimento do autor da herança.

 

Ao contrário da pacta corvina, a renúncia à herança não deve despertar qualquer desejo de morte do autor da herança quando, do contrário, estaria em acordo com um projeto de vida e de planejamento familiar.

 

Sobre a necessidade de se dar interpretação restritiva ao art. 426 do Código Civil, Maria Berenice Dias, citando entendimento de Mário Luiz Delgado[1], afirma:

 

“Ressalta-se a relevância de distinguir, conceitualmente, herança e sucessão. Sucessão constitui o direito por força do qual a herança é devolvida a alguém, enquanto herança refere-se ao acervo de bens transmitidos por ocasião da morte. De tal maneira que a vedação do ordenamento jurídico alcança a herança, ou seja, o acervo de bens, mas não o direito sucessório em si. Não há como confundir os dois institutos. A proibição é de ser feito “contrato” que é um ato bilateral. Já a renúncia é ato unilateral de vontade. Manifestação livre e espontânea de um direito que é seu. Deste modo, não existe qualquer restrição à renúncia de direitos futuros. Até porque são expressas as vedações de renúncias antecipadas (CC 556, 424 e 1.793). E conclui: a restrição à pactuação sucessória não é absoluta e a interpretação do art. 426 do CC deve ser necessariamente restritiva, de modo a abranger apenas a proibição expressa da dicção da lei, qual seja, a de contratar herança de pessoa viva. Vale dizer, o que está vedado de maneira expressa é a cláusula contratual que tenha por objeto “herança” de pessoa diversa das partes contratantes” (Manual das Sucessões – 8ª ed., rev, atual. e ampl. São Paulo: Editora JusPodivm, 2022 p. 266).

 

Segundo esse entendimento, a cláusula não infringe o art. 426 do Código Civil por duas razões distintas: em primeiro, porque a renúncia, ato unilateral por excelência, não se confunde com contrato; em segundo, porque o dispositivo veda a estipulação relativa à herança que diz respeito aos bens transmitidos por ocasião da morte , silenciando em relação ao direito sucessório disposição legal que justifica a atribuição da herança a alguém.

 

Sei perfeitamente que parte prestigiosa da doutrina Pontes de Miranda e Clovis Bevilacqua afirma que a vedação legal a pactos sucessórios envolve não apenas negócios onerosos de cessão de herança, como também atos abdicativos.

 

Nem todo pacto sucessório, porém, é nulo. A própria legislação civil autoriza que a herança de pessoa viva seja objeto de ato ou negócio jurídico, em casos como o da partilha em vida, em que o autor da herança poderá partilhar todo o seu patrimônio com seus herdeiros, ainda em vida, atendendo à sua vontade e respeitando-se a legítima, conforme assim determina o artigo 2.018 do Código Civil, que soa: É válida a partilha feita por ascendente, por ato entre vivos ou de última vontade, contanto que não prejudique a legítima dos herdeiros necessários.

 

No caso de partilha em vida, expressamente admitida pela lei civil e hoje extremamente em voga sob o rótulo de “planejamento sucessório” nada impede um dos herdeiros abdique de sua quota parte, anda que integre a legítima. Disso decorre que, na prática, já é possível abdicar do quinhão hereditário em negócio jurídico de partilha em vida.

 

Consequência disso é que a interpretação tradicional deve ceder espaço a uma nova interpretação do alcance da pacta corvina, vedada pela norma cogente do art. 426 do Código Civil.

 

É por essa razão que a maioria dos modernos Códigos Civis da Europa fez um corte no sentido da milenar vedação moral e jurídica ao pacta corvina, e admite a renúncia antecipada à herança. São os casos da Alemanha (BGB, § 1941), Suíça (Código Civil Suíço, art. 468), Itália (Código Civil Italiano, art. 768, bis ss), França ( art. 929 do Code Civil e Portugal (Lei 48/2018).

 

Há quem defenda que a renúncia à concorrência sucessória em pacto antenupcial vai de encontro ao que dispõe os arts. 1.784[2] e 1.804, parágrafo único[3], ambos do Código Civil. Esse, todavia, não é o entendimento, por exemplo, de Rolf Madaleno:

 

“Ocorre que nem o artigo 1.784 nem o parágrafo único do art. 1.804 ou qualquer outro dispositivo do Código Civil brasileiro mencionam só ser possível renunciar à herança depois de aberta a respectiva sucessão, mas referem que a transmissão da herança só ocorre depois da abertura da sucessão, ou seja, em realidade, o parágrafo único do artigo 1.804 do Código Civil apenas proíbe transmitir a herança se o herdeiro renunciou, pouco importando se a renúncia foi antes ou depois de aberta a sucessão, porque o comando legal é de não transmitir a herança a favor de quem renunciou” (Separação convencional de bens, expectativa de fato e renúncia da concorrência sucessória em pacto antenupcial. In Direito Civil: Diálogos entre a doutrina e a jurisprudência, vol. 2; org. Luiz Felipe Salomão, Flávio Tartuce São Paulo: Atlas, 2021 p. 739/740).

 

Para essa corrente doutrinária, não há dispositivo legal que proíba a renúncia antes da abertura da sucessão. Enquanto o art. 1.784 do Código Civil preceitua que a transmissão da herança se dá logo após à morte, o parágrafo único do art. 1.804 excepciona essa regra, prescrevendo que a transmissão não ocorre na hipótese de herdeiro renunciante.

 

Note-se, ainda, que os interessados renunciaram por meio do pacto ora analisado apenas à concorrência com descendentes ou ascendentes (art. 1.829, I e II, do Código Civil), disposição aceita por boa parte da doutrina. Acerca de pactos sucessórios renunciativos, Rolf Madaleno, citando Daniel Bulcar[4], esclarece que “admitir a sua incidência está no cerne da autonomia sucessória, e não pode o Estado, a partir de uma proibição pouco delineada como a do artigo 426 do Código Civil, vedar tais pactos, pois se trata de situação jurídica dúplice, em que aspectos patrimoniais e existenciais se confundem plenamente” (Separação convencional de bens, expectativa de fato e renúncia da concorrência sucessória em pacto antenupcial. In Direito Civil: Diálogos entre a doutrina e a jurisprudência, vol. 2; org. Luiz Felipe Salomão, Flávio Tartuce São Paulo: Atlas, 2021 p. 742).

 

Enquanto o herdeiro necessário possui expectativa de direito sobre seu quinhão hereditário, o herdeiro concorrente mantém mera expectativa de fato, tornando possível, também por esse motivo, a renúncia à concorrência, que para ele seria mero benefício vidual[5].

 

E como ressaltado pelos apelantes em seu recurso, há projeto de reforma do Código Civil que objetiva prever, de forma expressa, a possibilidade de cônjuges ou companheiros renunciarem à concorrência sucessória.

 

Ou seja, a cláusula em análise, de acordo com boa parte da doutrina, é válida no atual ordenamento e há expectativa razoável de que a futura legislação coloque fim à discussão, admitindo expressamente a possibilidade da renúncia ao direito concorrencial.

 

A vedação da renúncia antecipada da herança parece não mais condizer com os anseios da sociedade atual. Ora, se o casal opta pelo regime de separação de bens, sua vontade seguirá a mesma lógica de não compartilhar o matrimônio com o fim da relação, seja tal fim operado em vida, ou com a morte. Com mais força ainda, revela a vontade dos cônjuges e companheiros se realiza mediante declaração expressa de vontade.

 

Evidente que solução de lege ferenda eliminaria toda e qualquer discussão sobre o tema. Ainda sem modificação legislativa, porém, a admissão da renúncia antecipada à herança conta com bons defensores e sólidos argumentos, não havendo, ainda, jurisprudência dominante dos tribunais vedando tal negócio unilateral.

 

  1. Nesse panorama, não parece adequado que o Oficial de Registro de Imóveis desqualifique o título, afirmando desde logo sua invalidade.

 

De igual modo, se mostra temerário que este Conselho Superior da Magistratura, em sede de procedimento de dúvida, cuja decisão tem natureza administrativa e normativa a todos os registradores do Estado de São Paulo, fixe desde logo a nulidade da renúncia antecipada à herança do viúvo em concorrência com os descendentes.

 

Em outras palavras, a decisão administrativa em caráter normativo se anteciparia à discussão que eventualmente será travada na esfera jurisdicional no momento da abertura da sucessão.

 

De modo bem simples, negaria em sede de dúvida e natureza normativa o que eventualmente poderá ser admitido na esfera jurisdicional.

 

Não é demasia ingressar na amplitude do poder qualificador do Oficial de Registro de Imóveis, ao analisar pactos antenupciais que terão acesso ao Livro nº 03.

 

Em atribuição que se distancia de suas funções usuais tanto é que a inscrição é efetuada em livro auxiliar destinado a atos que não dizem respeito a imóvel matriculado (art. 177 da Lei nº 6.015/73) , negaria o registro do pacto antenupcial, impedindo que toda a avença e não só a cláusula questionada produza efeitos erga omnes.

 

Note-se que o registro do pacto diz respeito apenas à sua eficácia contra terceiros, pois o negócio jurídico de direito matrimonial já produz plenos efeitos entre os cônjuges a partir da celebração do casamento.

 

Não tem o registro em questão natureza constitutiva, mas tão somente publicitária do pacto.

 

Essa a razão pela qual a qualificação dos pactos antenupciais deve ser feita com outro viés e menor rigor quanto a cláusulas que eventualmente possam romper as malhas da lei.

 

  1. Note-se que não se afirma e nem se nega nesta via administrativa a validade da renúncia antecipada à herança do cônjuge em concorrência com herdeiros de primeira classe.

 

Afirma-se, sim, que o pacto antenupcial, lavrado com todas as cautelas e informações possíveis, deve ser registrado na serventia imobiliária.

 

No futuro, caso o casal venha a se divorciar, a cláusula aqui discutida estará prejudicada. Na hipótese de falecimento de um dos cônjuges sem que haja concorrência com descendentes ou ascendentes (art. 1.829, I e II, do Código Civil), a cláusula também não produzirá efeito algum, pois a herança será atribuída por inteiro ao cônjuge sobrevivente (art. 1.829, III, do Código Civil).

 

Já em caso de falecimento de um dos cônjuges, havendo concorrência entre herdeiros de primeira classe, caberá ao Juiz do inventário, na esfera jurisdicional, decidir acerca da validade da cláusula, sem afetar as demais disposições da separação convencional de bens.

 

Dizendo de outro modo, o registro não significa a chancela judicial à validade da cláusula, mas tão somente que não se deve negar eficácia perante terceiros ao pacto antenupcial, até que em momento e na esfera própria a questão da nulidade eventualmente seja arguida e decidida na esfera jurisdicional.

 

Ante o exposto, pelo meu voto, dou provimento à apelação para julgar improcedente a dúvida e determinar o registro do pacto antenupcial de fls. 3/4.

 

FRANCISCO LOUREIRO

 

Corregedor Geral da Justiça e Relator

 

Nota:

 

[1] Da renúncia prévia ao direito concorrencial por cônjuges e companheiros. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-abr-07/processo-familiar-renuncia-previa-direito-concorrencial-conjugecompanheiro/.

 

[2] Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e testamentários.

 

[3] Art. 1.804. Aceita a herança, torna-se definitiva a sua transmissão ao herdeiro, desde a abertura da sucessão.

 

Parágrafo único. A transmissão tem-se por não verificada quando o herdeiro renuncia à herança.

 

[4] Pactos sucessórios: possibilidades e instrumentalização. In: Ana Carolina Brochado Teixeira; Renata de Lima Rodrigues (coord.). Contratos de Família e Sucessões: diálogos interdisciplinares. São Paulo: Foco, 2020.

 

[5] Separação convencional de bens, expectativa de fato e renúncia da concorrência sucessória em pacto antenupcial. In Direito Civil: Diálogos entre a doutrina e a jurisprudência, vol. 2; org. Luiz Felipe Salomão, Flávio Tartuce São Paulo: Atlas, 2021 p. 739/740).

 

DECLARAÇÃO DE VOTO Nº 39.469 (DIVERGENTE)

 

Registro de imóveis – Dúvida – Pacto antenupcial – Negócio jurídico sobre herança de pessoa viva – Infringência ao art. 426 do Código Civil – Nulidade – Sentido inequívoco da proibição de pactos sucessórios no direito brasileiro – Considerações “de lege ferenda” que não bastam para admitir o ingresso de negócio jurídico nulo – Inscrição que implicaria insegurança jurídica, por depender de futura apreciação jurisdicional, o que contraria a razão de ser do registro público – Sentença bem prolatada – Apelação a que se nega provimento.

 

Trata-se de apelação (fls. 91/105) interposta por Maria Teresa Antonelli Caldas e João Anselmo Montanari da Cunha contra a r. sentença (fls. 81/83) proferida pela MM.ª Juíza Corregedora Permanente do Oficial de Registro de Imóveis e Anexos da comarca de Ibitinga, a qual, reconhecendo a nulidade do título, julgou procedente a dúvida e manteve o indeferimento do registro stricto sensu do pacto antenupcial (cópia da escritura pública a fls. 03/04) celebrado entre os apelantes.

 

Alegam os apelantes que o negócio por eles celebrado logo será admitido no direito brasileiro, por força de reforma da legislação civil, o que bem indica o desacerto da recusa impugnada (fls. 91/105).

 

A douta Procuradoria Geral de Justiça opinou pelo não provimento da apelação (fls. 139/142).

 

É o relatório.

 

Ao celebrar pacto antenupcial (cf. a fls. 03/04 a cópia da escritura pública lavrada a fls. 351/352 do livro nº 493 do 2º Tabelião de Notas e de Protesto de Letras e Títulos da comarca de Ibitinga), os nubentes, ora apelantes, “falando cada um por sua vez, manifestaram o desejo de renunciarem, expressamente, de forma recíproca ao direito sucessório concorrencial” e, advertidos embora, insistiram em “deixar registrado que […] optam por, de fato e de direito, não participarem de futura sucessão um do outro, quando em concorrência com os descendentes ou ascendentes, restando afastada, assim, a regra de concorrência dos incisos I e II do artigo 1829, do Código Civil, uma vez que ambos têm seus patrimônios totalmente separados, não desejando, nem por sucessão, caso exista concorrência, receberem patrimônio um do outro”.

 

Claro está, portanto, que os recorrentes celebraram negócio jurídico sobre herança de pessoa viva, o que é vedado pelo art. 426, do Código Civil; logo, o negócio jurídico é nulo (Cód. Civil, art. 1.655) e, por força do princípio da legalidade registral (Lei 6.015/1973, art. 198; Lei 8.935/1994, art. 30, XIII; Cód. Civil, art. 1.496; Normas de Serviço dos Cartórios Extrajudiciais, Cap. XX, item 117), não podia ter sido dado a registro, como corretamente não foi (cf. nota devolutiva posta a fls. 01).

 

A jurisprudência administrativa deste Estado, chamada a dizer acerca dessa questão específica, já se manifestou nesse exato sentido, ou seja, pela nulidade do pacto antenupcial em que se faz ajuste sobre herança de pessoa viva.

 

Assim:

 

“No título em análise, escritura pública de pacto antenupcial, verifica-se que há item que contraria expressa previsão legal. De fato, os contratantes, na cláusula 3.7, estipularam sobre a herança de pessoas vivas, o que não é admitido por nosso sistema jurídico (aquela do art. 426 do Código Civil), ainda que façam ressalva quanto à futura aplicabilidade da previsão (fls. 27). Justamente por isso, a estipulação é nula de pleno direito (art. 1.655 do Código Civil) e não pode ingressar no fólio real.” (1ª Vara de Registros Públicos de São Paulo, Autos nº 1118160-89.2022.8.26.0100, j. 29.11.2022)

 

“Registro de imóveis – Dúvida julgada procedente – Escritura pública de pacto de convivência em união estável – Regime convencional da separação total de bens – Existência de disposições no pacto estabelecido que, segundo o oficial, não comportam ingresso no registro de imóveis porque ilegais – Renúncia à postulação de comunicação patrimonial, embasada na Súmula 377 do STF, que apenas reforça a incomunicabilidade de bens na vigência da união estável – Nulidade não configurada – Renúncia ao direito real de habitação – Renúncia também ao direito concorrencial pelos conviventes – Artigo 426 do Código Civil que veda o pacto sucessório – Sistema dos registros públicos em que impera o princípio da legalidade estrita – Título que, tal como se apresenta, não comporta registro – Apelação não provida.” (CSMSP, Apel. Cível nº 1007525-42.2022.8.26.0132, j. 22.9.2023)

 

“Registro de imóveis – Dúvida julgada procedente – Escritura pública de pacto antenupcial – Regime convencional da separação total de bens – Existência de disposição no pacto estabelecido que, segundo o oficial, não comporta ingresso no registro de imóveis porque ilegal – Renúncia ao direito sucessório – Artigo 426 do Código Civil que veda o pacto sucessório – Sistema dos registros públicos em que impera o princípio da legalidade estrita – Pedido subsidiário de cindibilidade do título que não comporta acolhimento – Título que, tal como se apresenta, não comporta registro – Apelação a que se nega provimento.” (CSMSP, Apel. Cível nº 1007525-42.2022.8.26.0132, j. 22.9.2023)

 

“Registro de imóveis – Dúvida julgada procedente – Escritura pública de pacto antenupcial – Regime híbrido que mescla regras do regime da comunhão parcial de bens com o da separação convencional de bens – Existência de disposições no pacto estabelecido que, segundo o oficial, não comportam ingresso no registro de imóveis porque ilegais – Renúncia a alimentos – Questão não afeta ao pacto antenupcial – Inteligência do disposto no artigo 1.639 do código civil – Renúncia também à concorrência sucessória do cônjuge com os ascendentes ou descendentes prevista no artigo 1.829 do código civil – Artigo 426 do código civil que veda o pacto sucessório – Afastamento dos frutos dos bens particulares de cada cônjuge da comunhão (artigo 1.660, incido v, do código civil) – Cláusula válida – Sistema dos registros públicos em que impera o princípio da legalidade estrita – Título que, tal como se apresenta, não comporta registro – Apelação não provida.” (CSMSP, Apel. Cível nº 1003090-14.2023.8.26.0577, j. 30.11.2023)

 

É importante chamar a atenção para o fato de que, na longa, rica e vasta história da jurisdição administrativo-registral de São Paulo, o tema ora discutido foi analisado tão poucas vezes, e em datas tão recentes, como se vê nos arestos que se acabou de mencionar. Isso é demonstrativo cabal de que tão clara é a proibição de pactum corvinum, que até hoje não se cogitou seriamente de contestar a interpretação assente do direito brasileiro há mais de um século segundo a qual a lei, vedando contrato sobre herança de pessoa viva, quis impedir tanto as estipulações para suceder (pactum de succedendo) quanto as avenças renunciativas (pactum de non succedendo), indistintamente.

 

Trazendo para a sua Consolidação das Leis Civis as disposições que estavam na Ordenação, Livro 4, Título 70, §§ 3º e 4º, sintetizou Teixeira de Freitas:

 

“Art. 353. São nulos todos os pactos sucessórios, para suceder, ou não suceder; ou sejam entre aqueles que esperam ser herdeiros, ou com a própria pessoa de cuja herança se trata.” Clóvis Beviláqua (Código Civil comentado IV, 11ª ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1958, p. 203) esclarece:

 

“O Código Civil, fiel à tradição do nosso direito, condena os pactos sucessórios. Realmente, a sucessão pactícia oferece grandes inconvenientes:

 

  1. a) Determina o surto de sentimentos imorais, porque toma por base de suas combinações a morte da pessoa, de cuja sucessão se trata, sejam os pactos aquisitivos (de succedendo), sejam renunciativos (de non succedendo). […] b) Contraria o princípio da liberdade essencial às disposições de última vontade, que devem ser revogáveis até a morte do disponente.” Pontes de Miranda (Tratado de Direito Privado XXXVIII, Rio de Janeiro: Borsoi, 1962, § 4.208, 2) comenta:

 

“No direito brasileiro, não se admite qualquer contrato sucessório, nem a renúncia a herança. Estatui o Código Civil, art. 1.089: ‘Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva’. A regra jurídica, a despeito dos dois termos empregados ‘contrato’ e ‘herança’, tem de ser entendida como se estivesse escrito: ‘Não pode ser objeto de negócio jurídico unilateral, bilateral ou plurilateral a herança ou qualquer elemento da herança de pessoa viva’. Não importa quem seja o outorgante (o decujo ou o provável herdeiro ou legatário), nem quem seja o outorgado (cônjuge, provável herdeiro ou legatário, ou terceiro). Nas Ordenações Filipinas, Livro IV, Titulo 70, § 3, permitiam-se, ex argumento, os pactos chamados renunciativos ou abdicativos (pacta de non succedendo), se sob juramento perante o Tribunal do Desembargo do Paço, mas isso foi revogado pelo costume, confirmado pela não-atribuição de tomada de tal juramento a qualquer outro órgão estatal.” Carlos Roberto Gonçalves (Direito Civil Brasileiro III, 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 69) explica:

 

“Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.

 

Trata-se de regra tradicional e de ordem pública, destinada a afastar os pacta corvina ou votum captandae mortis. A sua inobservância torna nulo o contrato em razão da impossibilidade jurídica do objeto. O nosso ordenamento só admite duas formas de sucessão causa mortis: a legítima e a testamentária. O dispositivo em questão afasta a sucessão contratual. Apontam os autores, no entanto, duas exceções: a) é permitido aos nubentes fazer doações antenupciais, dispondo a respeito da recíproca e futura sucessão, desde que não excedam a metade dos bens (CC, arts. 1.668, IV, e 546); b) podem os pais, por ato entre vivos, partilhar o seu patrimônio entre os descendentes (CC, art. 2.018). Quando em vigor o Código de 1916, a doutrina mencionava também, como exceção à regra proibitiva da sucessão contratual, a estipulação, no pacto antenupcial, de doações para depois da morte do doador, prevista no art. 314 daquele diploma. Esta hipótese não é, todavia, disciplinada no Código de 2002 (arts. 1.653 a 1.657). Parece-nos que, em face do novo diploma, somente a partilha inter vivos pode ser considerada exceção à norma do art. 426, por corresponder a uma sucessão antecipada, visto que os citados arts. 546 e 1.668, que tratam de doações entre cônjuges, não contemplam a hipótese de recíproca e futura sucessão causa mortis. A cláusula que assim dispõe é considerada não escrita, por fraudar lei imperativa, contrariando disposição absoluta de lei (CC, arts. 166, VI, e 1.655). Na realidade, nas doações propter nuptias a exceção é apenas aparente, porquanto a doação, como foi dito, não vem subordinada ao evento morte, mas sim ao casamento, sendo a morte mera consequência.”

 

No mesmo sentido, ainda, Nelson Rosenwald, in Peluzo, Cezar, Código Civil comentado, 11ª ed., Barueri: Manole, 2017, p. 448-449.

 

Não se ignora que em parte da bibliografia hoje se anseie por dar ao mencionado art. 426, do Código Civil, interpretação algo restritiva, mediante a qual seja permitida a pactuação renunciativa ou abdicativa, como aquela trazida no título em discussão (fls. 03/04). Essa tendência da doutrina entende-se, consideradas não apenas as confusas inovações trazidas em matéria sucessória pelo vigente Código Civil, como também a contemporânea aversão a regras cogentes no direito de família e no direito das sucessões.

 

Contudo, entender aquele anseio não significa que se possa justificá-lo, ou que esse almejo possa implicar mais que uma aspiração de lege ferenda: como se viu, na tradição do direito brasileiro o sentido e o alcance do art. 426 são perfeitamente inequívocos, e bastam para dizer, como afirmaram corretamente a nota devolutiva e o MM. Juízo a quo, que o pacto antenupcial, tal como celebrado, não pode ser dado a registro, de lege lata, segundo a lei como está posta.

 

Cabe salientar, de resto, que a causa final do registro público é a segurança jurídica, um direito fundamental (Ricardo Dip, Registros sobre Registros I, Descalvado: Primus, 2017, p. 25, n. 19); a instituição registral há de ser organizada e tem de atuar para que se garanta aos indivíduos o conhecimento estável da situação jurídica de suas pessoas, de seus bens e de seus direitos (CF/1988, art. 5º, caput e LIV; Lei n° 6.015/1973, art. 1º, caput; e Lei 8.935/1994, art. 1º).

 

Portanto, contraria a razão de ser do registro a inscrição de título nulo, ainda que para o futuro possa haver reconhecimento jurisdicional (ou seja, extratabular) de alguma eficácia: a própria incerteza advinda do próprio registro indica a inconveniência do ingresso do título, de modo que também por esse motivo estavam corretas a recusa do oficial e a r. sentença recorrida, como bem salientado pela Procuradoria de Justiça.

 

Ante o exposto, pelo meu voto, nego provimento à apelação.

 

FERNANDO ANTONIO TORRES GARCIA

 

PRESIDENTE DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

 

DECLARAÇÃO DE VOTO

 

Tributado o devido respeito ao douto voto do E. Corregedor Geral, apresento voto divergente.

 

É certo que a Constituição Federal trouxe um novo olhar sobre o Direito das Famílias baseado nos princípios fundamentais.

 

A possibilidade de realizar-se um planejamento sucessório ainda em vida é consequência direta do fenômeno da pluralidade de famílias e relações afetivas que o momento mundial hoje experimenta. Explica Daniele Chaves Teixeira que o planejamento sucessório é o instrumento jurídico capaz de “permitir a adoção de uma estratégia voltada para a transferência eficaz e eficiente do patrimônio de uma pessoa após a sua morte” (TEIXEIRA, Daniele Chaves. Noções prévias de direito das sucessões, sociedade, funcionalização e planejamento sucessório, p. 35.).

 

O ordenamento jurídico, entretanto, tradicionalmente conhece apenas o testamento como instrumento capaz de possibilitar o planejamento sucessório (NEVARES, Ana Luiza Maia. Perspectivas para o planejamento sucessório. In: TEIXEIRA, Daniele Chaves (Coord). Arquitetura do planejamento sucessório, cit., p. 280)

 

Segundo Ana Luiza Maia Nevares, os principais obstáculos para uma maior amplitude no planejamento sucessório no Brasil são a legítima dos herdeiros necessários e a vedação aos pactos sucessórios. Quanto a esses últimos, entende a autora mencionada que tal restrição trazida pela legislação civil tem o condão de proteger o autor da herança do desejo de morte de alguém que pudesse ser favorecido pela sua sucessão (NEVARES, Ana Luiza Maia. Direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2020, pp. 279-280).

 

São vedados pelo ordenamento jurídico qualquer modalidade de pacto que contenha como objeto herança futura. O artigo 426 do Código Civil é expresso ao vedar que seja objeto de contrato a herança de pessoa viva. Os pactos sucessórios são também conhecidos como “pacta corvina”, expressão que remonta ao Direito Romano, e que explica a analogia entre os hábitos alimentares do corvo, ave carnívora que se alimenta de restos mortais, e do objeto do contrato, como se os contratantes desejassem a morte daquele de quem a sucessão se contratara (SIMÃO, José Fernando. Os pactos sucessórios ontem e hoje: uma leitura à luz da teoria do patrimônio mínimo de Luiz Edson Fachin. Revista Entre Aspas.Salvador: UNICORP, 2005, p. 47).

 

Verificam-se três principais espécies de pactos sucessórios: o pacto positivo ou aquisitivo, também conhecido como de succedendo, segundo o qual o autor da herança alienaria o patrimônio objeto de sua herança a terceira pessoa; o pacto negativo, de non succedendo, popularmente conhecido como pacto renunciativo, em que uma pessoa poderia renunciar à sucessão de outra; e, por fim, os atos bilaterais inter vivos, chamados hereditati tertii (GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Princípios constitucionais de direito de família: guarda compartilhada à luz da lei n°11.698/08, cit.,p. 176). No mesmo sentido: DELGADO, Mário Luiz. MARINHO JÚNIOR, Posso renunciar à herança em pacto antenupcial, p. 1). Embora exista clara diferenciação entre as modalidades de pacto sucessório, a doutrina majoritária entende que qualquer ato ou negócio jurídico que envolva a herança de pessoa viva estaria albergada pela vedação do art. 426 do Código Civil. Nesse caso, a renúncia antecipada à herança é entendida como nula por grande parte da doutrina brasileira atual, diante da vedação à pacta corvina. Nesse sentido, é o entendimento de Clóvis Beviláqua (2000), Flávio Tartuce (2011), Orlando Gomes (2012), Carlos Roberto Gonçalves (2012), Silvio Venosa (2013), Giselda Hironaka (2014), dentre outros, como muito bem já trazido à colação o voto do e. Presidente Torres Garcia.

 

Em diversos países europeus a renúncia antecipada à herança é autorizada pela legislação, como é o caso da Alemanha (BGB, § 1941) e da Suíça (Código Civil Suíço, art. 468). Na Itália, desde 2006 a legislação civil possibilita a partilha em vida da empresa familiar, com o intuito de evitar a fragmentação do patrimônio, bem como destinar os bens hereditários conforme a aptidão de cada herdeiro (Código Civil Italiano, art. 768, bis).

 

A diferenciação de pacto e contrato é meramente semântica, eis que se cuidam de mesmo conceito. De mais a mais, na espécie, os dois pactos, assim vistos em seu escopo, constituem verdadeiro contrato, na medida que estabelecem, no mesmo documento, a prévia e recíproca renúncia da futura herança.

 

A existência de projeto de lei para alterar a legislação atual se traduz em mera expectativa. Aliás, o próprio argumento de que há possibilidade de alteração legislativa para ser possível tal renúncia é dizer que hoje a lei não permite.

 

Não se apresenta razoável permitir o registro para que mais adiante o pacto seja objeto de questionamento judicial. A função do Judiciário é de revolver conflitos e não os criar.

 

O indeferimento do registro não terá caráter jurisdicional e por óbvio nada antecipada a esse respeito (oportuno lembrar que a proibição de registro sequer se constituiria impedimento ao ajuizamento de fortuita demanda, que sempre estará disponível mercê do princípio da indeclinabilidade da jurisdição às partes interessadas), mas apenas por respeito ao princípio da segurança jurídica fixará critério a ser seguido por todos os registradores, impedindo o registro de ato nulo.

 

Ao fim, vale sobrelevar que a cláusula que institui a renúncia é nula de pleno direito, estando a violar regras expressas do Código Civil (“Art. 426. Não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva.” e “Art. 1.808. Não se pode aceitar ou renunciar a herança em parte, sob condição ou a termo.”), em especial quanto à última por prever condicionante proibida pelo texto legal (“se a época do falecimento de qualquer um deles, a doutrina ou a jurisprudência permitir”). Logo, havendo nulidade absoluta, referida ilegalidade se estende à íntegra do escrito, situação a evidenciar, mais ainda, a proibição do registro.

 

Como muito bem lembrado no douto voto divergente do e. Presidente Fernando Torres Garcia, a causa final do registro público é a segurança jurídica, um direito fundamental (Ricardo Dip, Registros sobre Registros I, Descalvado: Primus, 2017, p. 25, n. 19), o fato é que, no sistema dos registros públicos, impera o princípio da legalidade estrita, de modo que, tal como se apresenta, o título não comporta registro.

 

Relembro, por derradeiro, dois precedentes deste Sério Conselho Superior da Magistratura (aliás, mencionados pelo próprio CGJ), ambos de 2023, tendo como Relator o então Corregedor Geral de Justiça, Des. Fernando Antonio Torres Garcia hoje na Presidência da Corte) em que votei com Sua Excelência como membro integrante do CSM, na honrosa Presidência da Seção de Direito Privado: CSMSP, Apel. Cível nº 1007525-42.2022.8.26.0132, j. 22.9.2023, e CSMSP, Apel. Cível nº 1003090-14.2023.8.26.0577, j. 30.11.2023.

 

Ante o exposto, NEGO PROVIMENTO ao recurso.

 

BERETTA DE SILVEIRA

 

VICE-PRESIDENTE (DJe de 11.10.2024 – SP)

 

Fonte: DJESP

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