A questão que trago aos leitores, na coluna de hoje, envolve um suposto conflito normativo entre o art. 1.994 do CC/2002[1], que determina expressamente que a pena de sonegados deve decorrer de atividade probatória em ação própria, denominada ação de sonegados, capaz de revelar a má-fé na omissão do bem (dolo de sonegar); e o disposto no art. 612 do CPC/2015[2], que permite ao juiz decidir todas as questões de direito, desde que os fatos relevantes estejam provados por documento, só remetendo para as vias ordinárias as questões que dependerem de outras provas. O Diploma Adjetivo autorizaria, assim, ao juízo do inventário resolver todas as questões que estejam provadas documentalmente, podendo, inclusive, aplicar a pena de sonegados.
O Superior Tribunal de Justiça, em decisão recente, da lavra do Ministro Marco Aurélio Bellizze, trilhou esse entendimento, de se poder aplicar a pena civil no próprio bojo do inventário, enfatizando a “desnecessidade de remissão da questão de fato, que se achar provada por documento, para os meios ordinários”[3].
Entretanto, essa não parece ser a melhor interpretação a ser atribuída ao art. 1.994 do CC/2002, que permanece a ditar a imprescindibilidade de ação autônoma para se aplicar pena de sonegados, ante a necessidade de instrução probatória para provar o dolo específico.
A letra da norma é expressa ao exigir ação própria para aplicar pena, e isso porque é necessário provar o dolo de sonegar. É fundamental que haja interpelação específica sobre os bens sonegados, para que fique caracterizada a recusa ou omissão dolosa[4]. Ou seja, a aferição do dolo exige o devido processo legal, de modo a propiciar ao herdeiro a quem foi imputada a conduta defender a ausência do dolo de prejudicar a partilha, muito menos de omitir bens.
Na doutrina, a matéria não comporta maiores divergências. Para Pontes de Miranda, há necessidade de se apurar o dolo, permitindo ao demandando provar que não sabia ou não agiu com dolo[5]. Zeno Veloso era enfático em consignar que “a perda do direito que lhe caberia sobre os bens ocultados (pena de sonegados) depende de ação própria, fora do processo de inventário, e, claro, de condenação judicial. Os legitimados para requerer são os herdeiros e os credores da herança. A sentença que for proferida na ação – movida por qualquer herdeiro ou credor da herança – aproveita aos demais interessados”[6]. José Fernando Simão, por sua vez, leciona que “a sonegação deve ser objeto de ação autônoma. Não pode o juiz reconhecê-la nos autos do inventário. Haverá uma ação com citação do sonegador, contestação e ampla dilação probatória. Isso não significa que a sonegação não possa ser arguida no próprio inventário. Se for arguida, o sonegador pode indicar o bem sonegado livrando-se da pena. A pena contida no art. 1.992 precisa de ação autônoma para ser imposta”.[7]
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery também defendem a imprescindibilidade de ação própria para aplicar a pena de sonegados: “Se o sonegador é herdeiro, somente por ação ordinária poderá ele ser privado do direito sobre os bens ocultados, como prescrevem os CC 1992 e 1994.É na ação de sonegados que pode ser imposta pena ao herdeiro (CC 1994 caput), depois de demonstrada, inequivocamente, a intenção de ocultar bens da herança, que sabe não terem sido inventariados”[8].
Aliás, o Tribunal da Cidadania já havia consagrado, em precedentes anteriores, a necessidade da ação de sonegados para justificar a aplicação da pena ao herdeiro que omite bens no inventário[9]. No REsp 1.287.490/RS, por exemplo, o STJ decidiu pelo “ajuizamento da ação de sonegados quando não trazidos à colação os numerários doados pelo pai a alguns dos herdeiros para a aquisição de bens imóveis” e que “a simples renitência do herdeiro, mesmo após interpelação, não configura dolo, sendo necessário, para tanto, demonstração inequívoca de que seu comportamento foi inspirado pela fraude. Não caracterizado o dolo de sonegar, afasta-se a pena da perda dos bens”[10].
Não se nega que possa haver o reconhecimento da sonegação no inventário, mas o dolo de sonegar, inspirado na fraude e no intuito de prejudicar a partilha, deve estar totalmente caracterizado e revelado na ação própria.
A interpretação adotada no Agravo em Recurso Especial nº 1.988.852 / SP implicaria admitir a revogação tácita do art. 1.994 do CC pelo art. 612 do CPC/2015, decisão esta que, com todo respeito e admiração ao relator, não trilhou um bom caminho, na seara hermenêutica.
Primeiro porque as regras aplicáveis à revogação tácita estão previstas no § 1º do art. 2º da LINDB, que continua em vigor (“A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior”)[11]. E, aqui, não há incompatibilidade alguma entre os dois dispositivos, podendo o Juiz do inventário decidir todas as questões provadas por documento, com exceção da aplicação da pena de sonegados, cuja apuração do dolo específico será remetida às vias ordinárias. E ainda que se admitisse um suposto conflito, a opção sistêmica mais adequada ao caso seria a prevalência do art. 1.994 do Código Civil, que é a Lei Material da Sucessão Hereditária e se sobrepõe ao Código de Processo Civil. A solução para o conflito entre o Código Civil e o CPC, especificamente no que tange à imprescindibilidade de ação própria para cominação da pena de sonegados, se daria mediante a aplicação da metarregra lex posteriori generalis non derogat priori speciali, o que equivale dizer, em outras palavras, que a lei especial posterior derroga a lei geral anterior e a lei geral posterior não derroga a lei especial anterior[12].
Em segundo lugar, não se pode esquecer que estamos a falar da aplicação de uma pena civil, de caráter punitivo e, como tal, exige a interpretação restritiva da disposição legal (art. 1.994), como foi reconhecido pelo próprio STJ em diversas ocasiões: “Nessa perspectiva, em se tratando de norma de nítido caráter punitivo, impõe-se a interpretação restritiva, revelando-se descabida, a meu ver, a ampliação da hipótese de incidência para alcançar sujeitos de direito não previstos de forma explícita na lei”[13]. E ainda: “(…) Normas que impõem sanção devem ser interpretadas de forma restritiva, motivo por que o referido dispositivo legal não se aplica aos casos de extinção do processo sem julgamento do mérito”[14].
A exigência de ação própria para aplicar a pena de sonegados tem o escopo de revelar a má-fé daquele que omite bem no inventário, com intuito de prejudicar a partilha. Se a lei substantiva exige ação própria, é porque o dolo de sonegar não se revela tão facilmente, pela leitura de documentos e argumentos retóricos de uma parte ou outra. A instrução probatória, com observância do devido processo legal, é o único meio de tornar cristalina a intenção do herdeiro/beneficiário em prejudicar os demais co-herdeiros.
[1] Art.1.994. A pena de sonegados só se pode requerer e impor em ação movida pelos herdeiros ou pelos credores da herança. Parágrafo único. A sentença que se proferir na ação de sonegados, movida por qualquer dos herdeiros ou credores, aproveita aos demais interessados.
[2] Art. 612. O juiz decidirá todas as questões de direito desde que os fatos relevantes estejam provados por documento, só remetendo para as vias ordinárias as questões que dependerem de outras provas.
[3] Agravo em Recurso Especial nº 1988852 / SP.
[4] OLIVEIRA, Euclides de. AMORIM, Sebastião. Inventário e partilha. Teoria e prática. São Paulo, Saraiva, 2021, p. 339.
[5] “Não obstante, como adverte Pontes de Miranda nos seus comentários a este parágrafo, a presunção de dolo é relativa, uma vez que o suposto sonegador poderá provar, na ação própria, que não sabia da existência do bem em nome do autor da herança”. Tratado de direito privado – TOMO VX Direito das Sucessões. Inventário e Partilha. Atualizado por Giselda Hironaka, Paulo Lôbo e Euclides Olivera. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2012, p. 362-364.
[6] VELOSO, Zeno. Código civil comentado. Coord. Regina Beatriz Tavares da Silva, 9ª edição, São Paulo, Saraiva, 2013, p. 1.928.
[7] Código civil comentado – doutrina e jurisprudência. SCHREIBER, Anderson et. al. Rio de Janeiro, Forense, 2019, p. 1.540.
[8] NERY JUNIOR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Instituições de direito civil: Teoria Geral do Direito de Sucessões – Processo Judicial e Extrajudicial de Inventário. São Paulo (SP): Editora Revista dos Tribunais. 2017. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/doutrina/instituicoes-de-direito-civil-teoria-geral-do-direito-de-sucessoes-processo-judicial-e-extrajudicial-de-inventario/1296147482. Acesso em: 1 de Outubro de 2024.
[9] REsp 1.631.95/SP, Rel. Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, QUARTA TURMA, julgado em 12/05/1998, DJ de 29/06/1998, p. 217.
[10] REsp 1.287.490/RS, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, Rel. p/ Acórdão Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/08/2014, DJe de 08/09/2014.
[11] A questão da revogação tácita é problema complexo que chama a atenção do direito intertemporal. Identificar se houve ou não a revogação tácita, de forma a se poder identificar ou não a presença de um conflito temporal, demanda análise complexa e constitui tarefa hermenêutica de peso, de difícil pacificação na jurisprudência ou na doutrina.
[12] Inexistem diferenças formais entre leis gerais e leis especiais. Na verdade, o conceito de norma especial é um resultado da interpretação. Em outras palavras, o atributo da especialidade é compatível com qualquer tipo de norma. É o intérprete, diante de cada situação concreta, quem vai dizer se uma norma é geral ou especial. Num mesmo corpo normativo, podemos encontrar as duas categorias. Assim, dentro do próprio Código Civil podemos identificar determinados dispositivos que são especiais em relação a outros. A divisão entre Parte Geral e Parte Especial denota bem essa situação. Algumas leis esparsas são especiais ou gerais a depender do referencial normativo. A Lei das Sociedades Anônimas, por exemplo, é especial em relação ao Código Civil, cuja incidência às companhias se dará apenas nos casos omissos. Mas a mesma lei será geral em relação à Lei n. 11.101/2005, sempre que uma sociedade anônima se submeter à recuperação judicial, à recuperação extrajudicial ou à falência.
[13] REsp n. 1.567.276/CE, relator Ministro Lázaro Guimarães [Desembargador Convocado do TRF 5ª Região], relatora para acórdão Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 11/6/2019, DJe de 1/7/2019.
[14] AgInt no REsp 1.588.151/SC, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 13.12.2018, DJe 19.12.2018.
Fonte: Conjur
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