Recentemente foram publicadas as primeiras consultas públicas abertas pelo Banco Central (Consultas Públicas n° 109 e 111, de 2024) sobre propostas de resoluções que regulamentam a prestação de serviços de ativos virtuais no país. Esses atos normativos são apresentados à sociedade após anos de monitoramento, estudos e diálogos com agentes de mercado e autoridades nacionais e internacionais, a respeito dos ativos virtuais e dos serviços desenvolvidos no setor.

Este artigo faz um retrospecto no processo de regulamentação da matéria no Brasil e analisa pontos relevantes dos atos normativos divulgados pelo Banco Central, em suas consultas públicas. Trata-se de trabalho essencialmente descritivo, que objetiva construir um panorama de fácil compreensão sobre a regulamentação dos ativos virtuais no país.

A primeira manifestação formal relevante do Banco Central sobre os ativos virtuais — então referidos como “moedas virtuais” ou “moedas criptografadas” — ocorreu no Comunicado nº 25.306, de 19 de fevereiro de 2014. Nesse ato, a autoridade monetária apresentou esclarecimentos sobre o assunto, destacou os riscos relacionados à aquisição de tais ativos e informou a ausência de regulação estatal, naquele momento.

Anos depois, essa manifestação foi complementada pelo Comunicado n° 31.379, de 16 de novembro de 2017, no qual o Banco Central reiterou o alerta sobre os riscos decorrentes de operações de guarda e negociação das denominadas moedas virtuais. Em acréscimo, o comunicado apontou a obrigatoriedade de se observar as normas que disciplinam o mercado de câmbio, sobretudo a realização de transações por meio de instituições autorizadas pelo BC a operar nesse mercado, no caso de operações com moedas virtuais que implicassem transferências internacionais referenciadas em moedas estrangeiras.

Observa-se, assim, o restrito âmbito de ação do Banco Central nos primeiros anos de desenvolvimento do mercado de ativos virtuais. A ausência de lei que estabelecesse expressamente a competência do BC para supervisionar o setor — que é autônomo em relação ao Sistema Financeiro Nacional (SFN) e ao Sistema de Pagamentos Brasileiros (SPB) — afastava a possibilidade de supervisão pela autoridade monetária, com exceção de atos específicos praticados no setor, como a realização de operações que se inserissem no mercado de câmbio.

Expansão do mercado de ativos virtuais

O mercado de ativos virtuais, contudo, continuava se expandindo rapidamente. Essa expansão abrangeu principalmente: a exploração do potencial da tecnologia de registros distribuídos [1], que viabiliza as operações com ativos virtuais; o surgimento de agentes de mercado prestadores de novos serviços; a criação de diversos ativos virtuais com diferentes propósitos ou utilidades; e o aumento significativo do volume de negociações, no Brasil, a partir de 2021.

Além disso, ganha protagonismo o instituto da “tokenização”, que pode ser compreendido como o processo de transferência de um bem ou ativo financeiro para o âmbito da tecnologia de registros distribuídos (com a consequente criação de um “token” desse mesmo bem ou ativo), de modo a tornar negociações e investimentos mais eficientes e menos onerosos.

Paralelamente, a maior captação de poupança popular por esses novos agentes de mercado, os constantes casos de inobservância de regras consumeristas e de uso do mercado de ativos virtuais como veículo para crimes de lavagem de dinheiro pressionaram a exigência pela intervenção e tutela estatal.

Os primeiros atos públicos relevantes que impactaram o setor foram da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) que, desde 2018, enfrentou questões relacionadas a “criptoativos” [2]. Foram proferidas decisões sobre o enquadramento de determinados criptoativos como valores mobiliários, para fins do inciso IX, do artigo 2º da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, e orientações sobre a possibilidade e condições para investimento em criptoativos por fundos de investimento brasileiros.

O posicionamento da CVM foi consubstanciado no Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022 e, em apertada síntese, aquela autarquia compreendeu que criptoativos caracterizar-se-iam como valores mobiliários — e, como tais, seriam regulados pela CVM — sempre que forem:

(1) a representação digital de um dos valores mobiliários listados nos incisos I a VII do artigo 2º da Lei nº 6.385, de 1976 e/ou previsto na Lei nº 14.430, de 2022; ou
(2) se enquadrarem no conceito aberto do inciso IX do artigo 2º da Lei nº 6.385, de 1976, na medida em que se tratar de contrato de investimento.

Mudança na regulamentação em torno dos ativos virtuais

A alteração do cenário jurídico a respeito dos ativos virtuais se inicia com o advento da Lei n° 14.478, de 21 de dezembro de 2022, que estabeleceu as diretrizes a serem observadas na prestação de serviços e na regulamentação das prestadoras de serviços de ativos virtuais (“PSAVs”, de acordo com a sigla que vem sendo empregada pelo Banco Central).

O legislador volta-se totalmente à prestação de serviços no setor e não estabelece regras específicas relacionadas ao desenvolvimento e uso da tecnologia e à emissão dos ativos virtuais — opção legislativa que persiste, até o presente momento.

Em resumo, a Lei n° 14.478, de 2022, contém a definição dos ativos virtuais (artigo 3º), prevê diretrizes para a regulamentação da matéria (artigo 4º), delimita os serviços prestados pelas PSAVs (artigo 5º) e define as competências da autoridade reguladora (artigo 7º), que não é indicada na lei. Os ativos virtuais são conceituados com base em dois vetores: a representação digital de valor, que permite a sua negociação ou transferência por meios eletrônicos; e o seu propósito de viabilizar pagamentos ou investimentos.

Destaque-se que ativos tradicionais, já tratados em lei ou regulamentação (como ações ou títulos de dívidas de instituições financeiras, por exemplo), que sejam objeto de tokenização, não são considerados ativos virtuais nos termos da lei. A tokenização, portanto, não modifica a natureza jurídica do bem ou ativo tokenizado. Desse modo, as competências da CVM são plenamente preservadas e os tokens de valores mobiliários seguem sob a supervisão daquela autarquia.

BC é autoridade reguladora de ativos virtuais

Coube ao Decreto nº 11.563, de 13 de junho 2023, definir o Banco Central como a autoridade reguladora do setor de ativos virtuais, com as amplas atribuições de regulamentar, autorizar e supervisionar as PSAVs.

E, no mesmo ano em que foi designado como regulador, o Banco Central divulgou a Consulta Pública n° 97, de 14 de dezembro de 2023, no inédito formato de “tomada pública de subsídios”. Tratou-se de um conjunto de perguntas feitas pelo BC com o objetivo de obter, de forma democrática e transparente, dados e contribuições dos agentes de mercado e demais interessados, para a construção da regulamentação da Lei nº 14.478, de 2022.

Foram esses subsídios, além de recomendações internacionais e tratativas institucionais mantidas com a CVM e com o Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), que viabilizaram a construção dos primeiros atos normativos que disciplinam a prestação de serviços de ativos virtuais.

Passa-se, então, a Consulta Pública nº 109, de 2024, na qual o Banco Central apresenta duas propostas normativas. A primeira resolução trata de aspectos negociais, pois disciplina a constituição e o funcionamento das PSAVs e a prestação de serviços de ativos virtuais (atividade que também poderá ser prestada por bancos, sociedades corretoras de valores mobiliários e distribuidoras de valores mobiliários, mediante a prévia comunicação ao BC).

Quanto à segunda resolução, trata-se de norma tradicional de Banco Central, que elenca os atos que exigem a autorização prévia, os requisitos para a obtenção da respectiva autorização, bem como aspectos procedimentais. A resolução sobre os aspectos negociais merece, portanto, análise mais detida, visto que será a principal norma que balizará a prestação de serviços no mercado de ativos virtuais.

Conceitos essenciais para mercado de ativos virtuais

Nesse sentido, tal resolução contém extenso rol de conceitos essenciais para o mercado de ativos virtuais. Essa relação de conceitos alinha-se com o artigo 11, § 1º, inciso I, do Decreto n° 12.002, de 22 abril de 2024, por se tratar de palavras ou expressões novas e técnicas e que, sem as suas definições, poderiam dificultar a interpretação da norma.

Há o conceito de ativos virtuais, alinhado à definição legal, embora faça menção de forma exemplificativa à tecnologia de registros distribuídos. Dada a necessidade de não se inibir o desenvolvimento do setor e não limitar a supervisão pelo Banco Central, não há rol que elenque os ativos virtuais regulados.

Opta-se, assim como na Lei n° 14.478, de 2022, por afastar determinados ativos do conceito de ativos virtuais, a saber, os tokens não fungíveis (ativo digital que representa a propriedade de um bem e que não pode ser trocado por outro idêntico) e tokens de ativos tradicionais e de bens móveis e imóveis. Como explicado na própria resolução, a tokenização deve ser compreendida como o processo de transformação da representação de um ativo em token no formato digital, com o seu registro em sistema baseado na tecnologia de registros distribuídos ou similar.

Outro conceito essencial para o mercado é o de ativo virtual estável ou “stablecoin”. Trata-se do ativo virtual criado com o propósito de manter o seu valor constante em relação ao valor de uma moeda fiduciária ou índice composto por cesta de moedas fiduciárias.

A oferta e a negociação de stablecoins são afetadas por comandos da resolução, como o rol de requisitos mínimos para a seleção de ativos virtuais que serão oferecidos aos clientes pelas PSAVs. As PSAVs deverão adotar diligências ou verificações junto aos emissores de stablecoins, pois, dentre outros fatores, deverão avaliar os ativos de reserva do stablecoin (que garantem a estabilidade do seu valor) e os riscos relacionados a tais ativos de reserva, bem como as salvaguardas existentes para as situações que afetem o ativo virtual estável, especialmente em favor do cliente.

Serviços envolvidos no setor de ativos virtuais

Os serviços previstos no artigo 5º da Lei nº 14.478, de 2022, além de outras atividades usualmente desempenhadas no setor, são distribuídos pelo Banco Central em três modalidades de PSAVs: as intermediárias, as custodiantes e as corretoras. É válido mencionar que, futuramente, outras atividades poderão ser trazidas pelo Banco Central para o âmbito da regulamentação, caso avalie que o serviço está, direta ou indiretamente, relacionado às atividades típicas de PSAVs e deva estar sob a tutela estatal. Essa prerrogativa é conferida ao BC pelo parágrafo único do citado artigo 5º.

As intermediárias são as PSAVs que atuam com a efetiva negociação dos ativos virtuais, ou seja, realizam trocas, compras e vendas, dentre outros serviços. Destaca-se, também, a possibilidade de as intermediárias realizarem “staking”, operação na qual uma pessoa trava ativos virtuais para participar da validação das transações que ocorrem no âmbito da tecnologia de registros distribuídos e, assim, obter recompensa (como o recebimento de ativos virtuais).

As custodiantes, essencialmente, efetuam a guarda e o controle dos ativos virtuais. Ademais, cabe a essas entidades efetuar o tratamento de eventos relativos aos ativos virtuais custodiados, como o registro de ônus e gravames.

Os capítulos seguintes da resolução, em resumo, contêm: regras de governança, que buscam garantir o cumprimento da regulamentação pelas PSAVs; exigências de capital mínimo de acordo com a modalidade e operações realizadas; regras para a contratação de serviços essenciais (como a custódia dos ativos virtuais, o provimento de liquidez para operações no setor e serviços de tecnologia); e procedimentos de segurança cibernética e da informação, como políticas específicas relativas à guarda e à proteção de chaves privadas (a sequência única de caracteres que permite autorizar as transações com os ativos virtuais).

Ponto que merece maior atenção é o dever estabelecido na resolução de separação entre o patrimônio da PSAV e os patrimônios de seus clientes. A Lei nº 14.478, de 2022, não previu essa segregação, diferentemente da opção legislativa adotada na Lei n° 12.865, de 2013 (artigos 12 e 12-A), que rege a atuação das instituições de pagamento.

De modo a conferir maior segurança àqueles que transacionam com as PSVAs, o Banco Central, dentro de seu perímetro de competência de disciplinar o funcionamento dessas instituições, estabeleceu regras procedimentais que garantem a separação patrimonial. Há, nesse sentido, três determinações para as PSAVs:

(1) devem separar os recursos próprios dos recursos de seus clientes, por meio de contas de pagamento ou de depósito individualizadas;
(2) devem adotar mecanismos e procedimentos para separar ativos virtuais próprios dos ativos virtuais de clientes, o que exige a guarda das chaves privadas de clientes em carteiras distintas daquelas utilizadas para a guarda de chaves privadas da própria instituição; e
(3) a vedação ao uso de ativos virtuais de clientes em operações da própria PSAV.

Por último, chega-se à Consulta Pública n° 111, de 29 de novembro de 2024, na qual o Banco Central divulga proposta de resolução que inclui operações das PSAVs no mercado de câmbio e dispõe sobre as hipóteses em que deverão submeter-se à regulamentação de capitais brasileiros no exterior e capitais estrangeiros no país.

O que faz parte do mercado de câmbio

Atualmente, a Resolução BCB n° 277, de 2022, inclui no mercado de câmbio, dentre outras transações, os pagamentos e as transferências internacionais, as contas em reais de titularidade de não residentes e as contas em moeda estrangeira mantidas no Brasil. Vale esclarecer que o Banco Central inclui no mercado de câmbio as operações que afetam o balanço de pagamentos, que é o registro estatístico de todas as transações — fluxo de bens e direitos de valor econômico — entre os residentes da economia brasileira e o restante do mundo, ocorridos em determinado período de tempo.

Nesse contexto e em paralelo com as operações citadas no parágrafo anterior, a proposta de resolução veiculada na Consulta Pública n° 111, de 2024, altera a citada Resolução BCB n° 277, de 2022, para incluir no mercado de câmbio:

(1) o pagamento ou a transferência internacional mediante transmissão de ativos virtuais;
(2) a compra, venda, troca ou custódia de ativos virtuais estáveis, criados com o propósito de manter seu valor estável em relação ao real, de propriedade de não residentes; e
(3) a compra, venda, troca, transferência ou custódia de ativos virtuais estáveis, criados com o propósito de manter seu valor estável em relação a determinada moeda estrangeira.

Em relação às regras relativas ao capital estrangeiro no país, atualmente veiculadas na Resolução BCB nº 278, de 2022, a proposta de resolução insere naquela norma as operações de crédito externo e investimento estrangeiro direto que envolvam a transmissão de ativos virtuais. Propõe-se inclusão similar na Resolução BCB nº 279, de 2022, que trata do capital brasileiro no exterior, uma vez que as operações de residentes no país, realizadas fora do território nacional e que envolvam a transmissão de ativos virtuais, passariam a observar o disposto naquela norma do Banco Central.

A entrada em vigor dos atos normativos divulgados pelo Banco Central formará a base jurídica para a prestação de ativos virtuais no Brasil, após longo período de desenvolvimento da regulamentação e da própria consolidação do setor. As regras elaboradas pelo BC indicam a necessidade de atuação transparente e diligente pelas PSAVs, que garanta informações essenciais aos clientes, bem como o adequado controle e monitoramento das operações e a adoção de estruturas e ações para mitigação de riscos.

Outros aspectos específicos do setor deverão ser objeto de normas do Banco Central, futuramente, mas os comandos essenciais ao funcionamento adequado das PSAVs — sujeitos a ajustes e/ou complementações, em razão das consultas públicas — foram estabelecidos e tendem a fomentar a continuidade do processo de expansão do mercado de ativos virtuais no Brasil.

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Referências

BRASIL. Banco Central do Brasil. Comunicado n° 25.306, de 19 de fevereiro de 2014. Disponível em https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=comunicado&numero=25306. Acesso em 25 de novembro de 2024.

BRASIL. Banco Central do Brasil. Comunicado n° 31.379, de 16 de novembro de 2017. Disponível em https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/exibenormativo?tipo=Comunicado&numero=31379. Acesso em 25 de novembro de 2024.

BRASIL. Banco Central do Brasil. Consulta Pública n° 109, de 8 de novembro de 2024. Disponível em https://www.gov.br/participamaisbrasil/edital-de-participacao-social-n-109-2024-proposta-de-regulamentacao-do- . Acesso em 26 de novembro de 2024.

BRASIL. Banco Central do Brasil. Consulta Pública n° 111, de 29 de novembro de 2024. Disponível em https://www.gov.br/participamaisbrasil/consulta-publica-n-111. Acesso em 26 de novembro de 2024.

BRASIL. Comissão de Valores Mobiliários. Parecer de Orientação CVM n° 40, de 11 de outubro de 2022. Disponível em https://conteudo.cvm.gov.br/legislacao/pareceres-orientacao/pare040.html. Acesso em 25 de novembro de 2024.

 

[1] No inglês, “Distributed Ledger Technology – DLT”.

[2] Nesse momento, em que inexistia lei voltada ao mercado de ativos virtuais, a CVM adotava o conceito de “criptoativos” que seriam “ativos representados digitalmente, protegidos por criptografia, que podem ser objeto de transações executadas e armazenadas por meio de tecnologias de registro distribuído (Distributed Ledger Technologies – DLTs)”.

Fonte: Conjur

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