A cobrança de luvas em contratos de locação é um tema recorrente no Direito Imobiliário, especialmente nas relações jurídicas envolvendo shoppings centers. As luvas têm tanta relevância nas relações locatícias que o Decreto-Lei nº 24.150, que regulava os processos de renovação de locação, era conhecida como a Lei de Luvas.
Embora o tema seja significativo, a legislação não apresenta um conceito exato de luvas. A própria Lei de Luvas previa apenas que:
“Art. 29. São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que, a partir da data da presente lei, estabelecerem o pagamento antecipado de alugueis, por qualquer forma que seja, benefícios e especiais ou extraordinários, e nomeadamente ‘luvas’ e imposto sôbre a renda, bem como a rescisão dos contratos pelo só fato de fazer o locatário concordata preventiva ou ter decretada a sua falência.”
Na falta de definição legal, restava o entendimento de que as luvas eram os valores exigidos dos locatários pelos locadores no início e na renovação extrajudicial das locações. Contudo, é curioso que esses valores, mesmo proibidos por lei, continuaram a ser cobrados e pagos durante a vigência da Lei de Luvas, como destaca Nascimento Franco:
“luvas sempre foram cobradas e pagas tanto no início como na renovação extrajudicial das locações, a despeito de serem consideradas ilegais. Esse é um caso em que a lei é marginalizada pelos usos e costumes em contrário” (Ação Renovatória, cit., p. 242, nota 744).
Em razão dessa desconexão entre a legislação e a prática, a Lei de Inquilinato alterou a previsão da Lei de Luvas, reforçando a ilegalidade da cobrança apenas na renovação contratual em seu artigo 45: “São nulas de pleno direito as cláusulas do contrato de locação que visem a elidir os objetivos da presente lei, notadamente as que proíbam a prorrogação prevista no art. 47, ou que afastem o direito à renovação, na hipótese do art. 51, ou que imponham obrigações pecuniárias para tanto”.
Essa alteração legislativa teve efeito, tornando legais as cobranças realizadas no momento da contratação e reforçando a ilegalidade daquelas cobradas na renovação. A Lei de Inquilinato também forneceu um instrumento de defesa dos locatários frente a essa imposição arbitrária após o primeiro período de vigência: a ação renovatória.
A falta de uma definição sobre a natureza jurídica dessas verbas gera insegurança jurídica para as partes contratantes, que precisam de clareza sobre o que estão contratando. Isso limita as possibilidades contratuais que a definição em abstrato permitiria, restringindo os contratantes ao que os costumes impõem. É necessário, portanto, que haja uma definição das luvas como categoria ou de sua natureza jurídica.
Taxa de reserva e fundo de comércio
Conforme os costumes, as luvas são uma prestação pecuniária paga pelo locatário ao locador no início da locação.
Considerando a sistemática legal, que veda o enriquecimento sem causa, esse pagamento pelo locatário deve ter uma contrapartida do locador, visto que as luvas não podem ser imotivadas.
A doutrina apresenta duas vertentes sobre a natureza dessa contrapartida do locador: (1) a reserva da locação, durante as tratativas preliminares, ou (2) o aproveitamento pelo locatário do fundo de comércio do locador, sendo um pagamento pela vantagem do locatário de se estabelecer em um local que já possui uma clientela prévia.
A primeira hipótese, relacionada ao pagamento de taxa para reserva, não parece a mais adequada como justificativa para a exigência de luvas. A reserva existiria em um ambiente de múltiplos locatários disputando um mesmo imóvel, sendo a taxa paga como garantia da locação. A finalidade seria, portanto, a própria locação, o que enfrentaria a vedação prevista no artigo 43, inciso I [1], da Lei de Inquilinato [2]. Ademais, tal hipótese não explicaria a vedação à cobrança das luvas na renovação contratual, situação em que também seria possível a disputa do imóvel por mais de um locatário.
O conceito francês do “pas de porte” (taxa de entrada), por vezes utilizado como análogo ao de luvas para fins de estudo, se aproxima dessa condição de taxa de reserva. Nesse sentido, é importante sua análise para verificar a aplicabilidade da taxa de reserva no Brasil.
Alfredo Buzaid, citando Juglart e Ippolito, doutrinadores franceses, explica que o pas de porte, será mais elevado quanto mais baixo for o aluguel e menor quanto maior o aluguel. Dessa forma, entendem que um pas de porte nulo equivaleria ao valor locativo real do imóvel.
Nesse contexto, portanto, a taxa de reserva francesa nada mais é do que o próprio aluguel. Assim, estaria sujeita à mesma vedação do artigo 43, I, da Lei de Inquilinato.
Destaca-se que, mesmo havendo decisões judiciais validando a referida taxa de reserva, sua fundamentação aponta como natureza jurídica dos valores cobrados a retribuição pelo fundo de comércio do locador. Nesse sentido, decisão do TJ-SP:
“A jurisprudência deste Tribunal é pacífica em admitir como lícita a verba cobrada a título de reserva de loja, ou res sperata, não podendo prevalecer a tese de que é ela abusiva. Caracteriza-se ela como retribuição ao locador pelas vantagens do lojista em se estabelecer em complexo comercial, possuindo maiores chances de êxito em suas vendas.” (TJSP; Apelação Cível 9120325-07.2007.8.26.0000; relator (a): Morais Pucci; Órgão Julgador: 27ª Câmara de Direito Privado; Foro de Marília – 4ª Vara Cível; data do julgamento: 19/03/2013; data de registro: 26/03/2013)
Dada a falta de afinidade entre a taxa de reserva e o ordenamento jurídico (a aceitação das luvas pela Lei de Inquilinato ocorreria apenas na contratação), entende-se que não é possível conceituar as luvas como uma taxa de reserva.
Portanto, pode-se afirmar que a definição conceitual das luvas que melhor se adequa à legislação é aquela que as estabelece como remuneração pelo fundo de comércio do locador.
Luvas na prática
A prática está restrita a locações comerciais, mas não se limita aos complexos de lojas. Tendo o fundo de comércio a finalidade de garantir o “direito a uma clientela” [3], o mero acesso à rua possibilitaria uma presunção de facilidade na obtenção de clientes [4], bem como sua localização ou outras características do imóvel. Um restaurante de frutos do mar à beira-mar, por exemplo, tem maior facilidade de atração de clientela do que um restaurante do mesmo segmento, na mesma região, porém distante da praia. Percebe-se que existem características do imóvel que podem lhe dar acesso privilegiado na prospecção e que não dependem do locador.
Ademais, é possível a cobrança de luvas mesmo que o empreendimento não tenha sido inaugurado, sendo comum sua utilização como método de investimento para realização de reformas e/ou construções de centros empresariais que terão suas unidades locadas. A contraprestação do locador, que é o acesso a uma clientela, será devida apenas no início da locação.
Além disso, o pagamento das luvas não equivale a uma garantia dada pelo locador do sucesso da iniciativa comercial do locatário. Os tribunais não têm entendido que o insucesso da locação ou a devolução antecipada do imóvel devam ensejar a devolução do valor pago a título de luvas [5].
Na melhor das hipóteses, o locatário poderá requerer a devolução das luvas caso o valor não tenha equivalência com o fundo de comércio disponibilizado pelo locador. Exemplos disso incluem: (1) shopping não construído ou (2) com infraestrutura muito inferior àquela prometida. Nesses casos, seria possível a discussão da devolução das luvas ou da diminuição do seu valor.
Ressalta-se que, dada a natureza abstrata do fundo de comércio (um ativo intangível da empresa), a tarefa de analisar a equivalência econômico-financeira é incerta. Por isso, o pleito do locatário só nos parece possível quando a contraprestação do locador for nula (infraestrutura ou fundo de comércio inexistente) [6].
Percebe-se que as luvas, desde a Lei de Inquilinato de 1991, saíram daquele status de clandestinidade [7] e hoje são geralmente cobradas e formalizadas por contratos escritos, embora ainda apartados do contrato de locação principal [8].
Considerações sobre as luvas nos centros empresariais
A prática para prever o pagamento das luvas, muito comum em contratos de shopping center, é formalizada em contratos de cessão do direito de uso da infraestrutura, o “CDU”. Esses contratos costumam guardar conexão com o contrato de locação, tendo o preço das luvas pago em uma única parcela.
O contrato CDU tem clara natureza de negócio jurídico da remuneração do fundo de comércio, com o pagamento se destinando a recompensar o empreendedor pelo investimento realizado no imóvel locado [9]. O locatário paga o valor esperando receber as recompensas desse investimento, ou seja, um fundo de comércio já constituído.
Após o momento inicial, caberá ao locatário desenvolver um fundo de comércio próprio de seu estabelecimento comercial, interligado ao do shopping (daí a importância do tenant mix), mas dele independente. Por isso, não se justifica o pagamento das luvas na renovação contratual, respeitando o que já era previsto na Lei de Luvas e ratificado no artigo 45 da Lei de Inquilinato.
Parece, portanto, que a formalização das luvas em contrato de CDU, conexo ao contrato de locação e pagas apenas no início da vigência, está de acordo com a previsão legal.
Uma questão problemática é a prática de não realizar aditivos, mas sim novos contratos em hipóteses de renovação do prazo contratual, objetivando burlar a vedação da cobrança de luvas na renovação. Embora nada impeça que as partes optem por seguir dessa forma, a cobrança das luvas nesse segundo momento não se sustenta.
É claro que a prática das luvas, dado todo seu histórico de pagamentos escondidos, contará com suas cifras negras, ou seja, aquelas pagas ilicitamente e não discutidas judicialmente. Todavia, a melhor técnica jurídica deveria impor a nulidade de contratos que exigem o pagamento de luvas nessa hipótese específica.
Conclusão
A prática do pagamento das luvas, embora envolta em complexidades legais e históricas, tem se mostrado uma solução pragmática para as relações locatícias, especialmente em ambientes comerciais como shoppings centers. Essa modalidade de pagamento reflete a dinâmica do mercado, onde a busca por um fundo de comércio e o acesso a uma clientela pré-estabelecida são fundamentais para o sucesso do locatário.
A Lei de Inquilinato, ao regular essa prática, contribui para a transparência nas relações contratuais, proporcionando uma base legal que protege tanto locadores quanto locatários. A legislação atual não apenas reafirma a ilegalidade da cobrança de luvas na renovação contratual, mas também reconhece sua legitimidade quando associada ao início da locação, promovendo um equilíbrio necessário entre os interesses das partes.
Assim, é crucial que as partes envolvidas na locação estejam cientes de seus direitos e obrigações, buscando sempre a formalização adequada dos contratos. A clareza nas definições e a observância das normas legais não apenas mitigam riscos de litígios, mas também favorecem um ambiente de negócios mais saudável e competitivo.
[1] Art. 43. Constitui contravenção penal, punível com prisão simples de cinco dias a seis meses ou multa de três a doze meses do valor do último aluguel atualizado, revertida em favor do locatário:
I – exigir, por motivo de locação ou sublocação, quantia ou valor além do aluguel e encargos permitidos;
[2] Nesse sentido, julgados do TJ-PR de números 0007026-42.2021.8.16.0018 e 0013556-50.2017.8.16.0035.
[3] Georges Ripert, Traité Élémentaire de Droit Commercial, Pp. 446 e 450
[4] Nessa situação se deu o nascimento do pas de porte, como ensina Alfredo Buzaid, informando que “Segundo Henri Blaise, originariamente o pas de porte representou a vantagem que constituía para o comerciante o fato de ter uma loja cuja porta dava diretamente para a via pública. Parece que em seguida a expressão pas de porte designou o direito ao letreiro e ao nome comercial, o que se explica pelo fato de estes dois elementos figurarem sobre a porta da loja.”
[5] Nesse sentido decide o TJ-SP, vide exemplos das (i) Apelação Cível 0198019-65.2008.8.26.0100; (ii) Apelação Cível 1010743-60.2021.8.26.0020; e (iii) Apelação Cível 9179730-08.2006.8.26.0000.
[6] Nesse sentido, Apelação Cível 1002762-61.2019.8.26.0048, com ementa: “APELAÇÃO – AÇÃO INDENIZATÓRIA – LOCAÇÃO COMERCIAL EM SHOPPING CENTER – INEXECUÇÃO DO CONTRATO PELAS LOCADORAS – EMPREENDIMENTO NÃO CONCLUÍDO – CLÁUSULA DE RENÚNCIA ANTECIPADA – NULIDADE – DEVOLUÇÃO DA RES SPERATA – POSSIBILIDADE – FIXAÇÃO DE MULTA CONTRATUAL – POSSIBILIDADE 1 – Cláusula prevendo a renúncia antecipada de qualquer pretensão indenizatória é nula por implicar em renúncia a pretensões inexistentes. Precedente análogo do C. STJ. 2 – Antecipação da res sperata em contrato de locação comercial em shopping center deve ser restituída em caso de não construção do empreendimento, sob pena de enriquecimento sem causa das locadoras. Precedente do C. STJ. 3 – Fixação de multa contratual por analogia é possível em razão da função social dos contratos e para manter o equilíbrio econômico, respeitando os limites da revisão judicial dos contratos (CC, art. 421 e 421-A, III). RECURSO NÃO PROVIDO.”
[7] Ainda Alfredo Buzaid indica que “(…) o que ordinariamente acontece é que o beneficiário das luvas não as recebe por meio de cláusula contra legem inserida no contrato, violando assim direta e abertamente o preceito legal que as veda; ele emprega artifícios ou meios sub-reptícios, ofendendo o preceito sem atacá-lo frontalmente. Mediante os mais variados expedientes, às escondidas, ele consegue obliquamente o resultado, burlando assim a norma que as proíbe. A verificação dessa cobrança ilegal e ilícita é difícil de ser feita. O grave problema está na prova do fato, porque geralmente quem pleiteia as luvas as recebe sem deixar indícios de fraude à lei. Não aceita cheque; quer dinheiro vivo. Não permite que o recebimento seja presenciado por testemunhas; o evento tem lugar só entre o locatário e locador; tudo é concluído às ocultas, não transparecendo em público.
[8] A prática talvez se dê pela preocupação dos locadores com a vedação do art. 43, I, da Lei de Inquilinato ou do receio de que as verbas fossem consideradas de maneira prejudicial em uma análise do contrato em sede de ação renovatória. Nada impede, entretanto, a previsão das luvas no contrato de locação.
[9]Vide a anotação anterior de Gustavo Tepedino.
Fonte: Conjur
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