Planejar a sucessão de herdeiros vulneráveis é um gesto de cuidado que não pode ser adiado

Deixar uma herança sem planejamento é como largar um navio à deriva, torcendo para que o vento sopre na direção certa. Quando o herdeiro é uma criança, adolescente ou pessoa com alguma incapacidade, a corrente é ainda mais imprevisível. Como alertou Sêneca, “a sorte não ajuda quem não se prepara”.

No Brasil, onde o planejamento sucessório já costuma ser ignorado, o adiamento nesse caso é crítico. No caso de herdeiros incapazes, a espera pelo “momento certo” pode significar a completa ausência de planejamento —e os prejuízos recaem sobre quem mais precisa.

Todos têm direito à herança, mas nem todos têm capacidade jurídica para administrá-la. Crianças, adolescentes e pessoas com limitações cognitivas ou funcionais são legalmente consideradas incapazes para certos atos da vida civil. Isso não retira seus direitos, mas exige a presença de um tutor ou curador para representá-los. O problema é que, sem uma indicação prévia, essa responsabilidade recai sobre o Judiciário —o que pode gerar disputas familiares, decisões burocráticas e até desamparo.

Segundo o IBGE, mais de 17 milhões de brasileiros têm algum tipo de deficiência. Muitos deles dependem do cuidado direto de familiares. Apesar disso, é comum que até famílias com boa condição financeira deixem de organizar a sucessão, confiando que tudo se resolverá “naturalmente”. Em alguns casos, esse improviso acaba judicializando situações que poderiam ter sido resolvidas com um testamento simples.

O testamento, aliás, vai muito além da divisão de bens. Ele permite nomear um curador ou tutor, justificar escolhas e garantir que o herdeiro vulnerável será assistido por alguém de confiança —mesmo que não seja um parente. A Justiça brasileira já reconheceu a validade da nomeação testamentária mesmo quando diferente da ordem legal. O fundamental é que reflita a vontade e o cuidado de quem parte.

Com a Lei Brasileira de Inclusão, a regra passou a ser a autonomia, com apoio apenas nos atos necessários. A curatela hoje deve ser proporcional e limitada. Isso torna ainda mais importante que o planejamento sucessório seja sensível às capacidades reais do herdeiro, evitando tanto a omissão quanto o excesso de tutela.

Outro ponto essencial é garantir a moradia. Uma forma eficaz de fazer isso é o direito real de habitação, que assegura ao herdeiro com deficiência o direito de viver no imóvel da família, mesmo sem ser o proprietário. Essa cláusula pode ser formalizada em testamento ou escritura pública e impede que outros herdeiros forcem a venda ou disputem a posse do imóvel.

É recomendável que o testamento seja lavrado por escritura pública, pois esse formato é automaticamente incorporado ao inventário judicial, sem risco de ser perdido ou contestado. O custo de cartório é tabelado e não passa de R$ 2.000. O testamento particular, embora legal, é mais vulnerável e pode simplesmente desaparecer —levando com ele toda a vontade não formalizada.

Planejar a sucessão de herdeiros incapazes não é uma frieza jurídica. É um gesto de responsabilidade, um cuidado que ultrapassa a vida. É deixar uma estrutura, não um problema. Porque, para quem precisa de apoio contínuo, o silêncio dos vivos pode custar mais do que o luto.

Fonte: Folha de S.Paulo

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