Conta Notarial Escrow, criada pela lei 14.711/23 e provimento 197/25 do CNJ, amplia segurança, desjudicialização e eficiência em negócios jurídicos no Brasil
Introdução
A busca por segurança e previsibilidade é uma constante na evolução das relações comerciais e civis. Em um ambiente de negócios dinâmico, a mitigação de riscos associados ao cumprimento de obrigações é um fator determinante para o sucesso de qualquer transação. Historicamente, o depósito de valores em contas de terceiros ou das próprias partes envolvidas sempre representou um ponto de vulnerabilidade, sujeito a inadimplemento, bloqueios judiciais e disputas sobre a titularidade dos fundos.
É nesse cenário que surge a conta notarial de garantia, ou escrow account notarial, uma inovação disruptiva que alinha o Brasil às mais seguras práticas internacionais, prometendo revolucionar a forma como os negócios são estruturados e garantidos. Instituída pelo Marco Legal das Garantias e meticulosamente regulamentada pelo CNJ, a conta notarial transfere a gestão de valores a um terceiro imparcial e dotado de fé pública: o tabelião de notas.
Este artigo se propõe a dissecar este novo instituto, apresentando seu marco legal, suas características, suas vastas aplicações práticas e os pontos de atenção para sua correta utilização, demonstrando seu potencial como ferramenta de pacificação social e fomento à economia.
O Marco Legal e a regulamentação da conta notarial
A materialização da conta notarial no direito brasileiro ocorreu por meio de duas normas fundamentais. Primeiramente, a lei 14.711, de 30 de outubro de 2023, conhecida como o Marco Legal das Garantias, promoveu uma alteração cirúrgica na lei 8.935/1994 (lei dos notários e registradores), inserindo o art. 7º-A1. Este dispositivo autorizou expressamente os tabeliães de notas a prestar o serviço de gestão de contas escrow, vinculadas a atos notariais ou a instrumentos particulares.
Posteriormente, para dar eficácia e padronizar o serviço em todo o território nacional, o CNJ editou o provimento 197, de 13 de junho de 20252. A regulamentação trouxe os detalhes operacionais e, mais importante, estabeleceu a pedra angular da segurança do instituto: a segregação patrimonial. Conforme o provimento, os valores depositados na conta notarial são mantidos em nome do CNB – Colégio Notarial do Brasil, e não em nome das partes ou do tabelião.
Essa desvinculação patrimonial garante que os recursos não possam ser objeto de penhora ou constrição por dívidas de qualquer dos envolvidos, incluindo o próprio notário, salvo se a ordem judicial for específica ao negócio jurídico que deu origem ao depósito. Como bem observa Vitor Frederico Kümpel, em sua obra “Tratado Notarial e Registral”, a fé pública notarial é o elemento diferenciador que confere legitimidade e segurança aos atos praticados pelo tabelião, transformando-o em um verdadeiro “guardião da legalidade”3.
Características e vantagens competitivas
A atratividade da conta notarial reside em um tripé de vantagens: segurança, custo-benefício e eficiência. A segurança, como visto, deriva da segregação patrimonial, que cria uma “fortaleza” jurídica ao redor dos valores transacionados. A segunda vantagem é o custo-benefício. Com uma taxa fixada em 0,08% sobre o valor da operação, o serviço se torna extremamente acessível, democratizando o acesso a uma estrutura de garantia que antes era financeiramente viável apenas para grandes corporações em operações de M&A.
A terceira vantagem é a eficiência e imparcialidade, personificadas na figura do tabelião. Atuando como um gestor neutro, ele é responsável por verificar o cumprimento de condições objetivas, previamente definidas pelas partes, para então liberar os valores. Essa verificação deve ser estritamente documental, sem emissão de juízo de valor, o que confere celeridade e previsibilidade ao processo.
Adicionalmente, o provimento 197/25 inovou ao permitir a inserção de cláusulas de confidencialidade, um avanço significativo para negócios sensíveis como fusões e aquisições, planejamento sucessório e divórcios, onde o sigilo é um ativo valioso. Melhim Namem Chalhub, reconhecido especialista em garantias e incorporação imobiliária, destaca que a evolução dos instrumentos de garantia no direito brasileiro sempre buscou equilibrar segurança e eficiência, sendo a conta notarial um exemplo paradigmático dessa evolução4.
Comparativo internacional: Inspiração no notariado latino
O modelo brasileiro de conta notarial se inspira diretamente nas práticas consolidadas do notariado latino, especialmente na Alemanha, Itália e França. Na Alemanha, o notar (notário) desempenha papel central nas transações imobiliárias, atuando como custodiante de valores e garantindo que todas as condições contratuais sejam cumpridas antes da transferência de propriedade. O sistema alemão é reconhecido mundialmente por sua eficiência e segurança, com índices de litígio imobiliário significativamente menores que em países de tradição anglo-saxônica.
Na Itália, o notário (notaio) possui competência similar, sendo responsável não apenas pela formalização dos atos, mas também pela gestão de contas de garantia (conti di garanzia) em operações complexas. O sistema italiano é particularmente avançado na utilização de contas notariais para operações societárias e sucessórias, áreas onde o Brasil ainda está desenvolvendo sua prática.
A França, por sua vez, desenvolveu um sistema híbrido onde o notário (notaire) atua em conjunto com instituições financeiras especializadas, oferecendo serviços de séquestre (equivalente ao escrow) com a mesma segurança jurídica da fé pública notarial. Essa experiência internacional demonstra que a conta notarial não é apenas uma inovação brasileira, mas sim a adoção de uma prática madura e testada em jurisdições desenvolvidas.
Aplicações práticas e a versatilidade do instrumento
A flexibilidade da conta notarial permite sua aplicação em uma vasta gama de negócios jurídicos. No mercado imobiliário, sua utilidade é evidente: pode garantir o pagamento do sinal em uma compra e venda, condicionando a liberação ao vendedor à apresentação de certidões negativas, ou o pagamento do saldo do preço à efetiva transferência do imóvel no registro de imóveis. Em incorporações imobiliárias, pode ser usada para receber os aportes de investidores, liberando os recursos para a construtora à medida que as etapas da obra são concluídas e certificadas.
Em operações de M&A (fusões e aquisições), a conta notarial é ideal para garantir o pagamento de parcelas de preço variáveis, como cláusulas de earnout, cujo pagamento depende da performance futura da empresa adquirida, aferida por meio de auditorias independentes. No âmbito do Direito de Família e Sucessões, a ferramenta pode simplificar partilhas complexas em inventários e divórcios, garantindo que todos os herdeiros e ex-cônjuges recebam seus quinhões de forma segura e simultânea.
Até mesmo em contratos de prestação de serviços, como empreitadas, os pagamentos podem ser depositados na conta e liberados ao prestador conforme as medições e a aprovação das etapas do projeto. A versatilidade do instrumento é tamanha que permite sua utilização desde operações simples, como a compra de um veículo usado, até transações complexas envolvendo múltiplas partes e condições suspensivas.
Exemplos práticos detalhados
Para entender o poder da ferramenta, vejamos três cenários comuns:
Cenário 1: Compra de imóvel usado
O Negócio: Ana compra o apartamento de Bruno por R$ 800.000,00. Ela precisa pagar um sinal de R$ 80.000,00, mas teme que Bruno tenha dívidas trabalhistas ocultas.
A solução com escrow: Em vez de depositar na conta de Bruno, Ana deposita os R$ 80.000,00 na conta notarial. O contrato estabelece que o tabelião só liberará o valor para Bruno após ele apresentar todas as certidões negativas, incluindo a da Justiça do Trabalho. Se uma certidão positiva aparecer, o dinheiro é devolvido a Ana, desfazendo o negócio sem prejuízo.
Antes vs. depois: Sem o escrow, Ana arriscaria perder o sinal ou teria que entrar na justiça. Com o escrow, o risco é eliminado por uma taxa de apenas R$ 64,00 (0,08% de R$ 80.000,00).
Cenário 2: Contratação de uma Reforma
O negócio: A empresa “Construir S.A.” contrata a “Reforma Rápida Ltda.” para uma obra de R$ 300.000,00, a ser paga em 3 parcelas de R$ 100.000,00, conforme o andamento.
A solução com escrow: A “Construir S.A.” deposita o valor total na conta notarial. O contrato prevê a liberação de cada parcela de R$ 100.000,00 mediante a apresentação de um laudo de medição assinado pelo engenheiro responsável, atestando a conclusão de 33%, 66% e 100% da obra. Isso garante que o construtor receba pontualmente e que o contratante só pague pelo serviço efetivamente realizado.
Cenário 3: Compra de uma pequena empresa (M&A)
O negócio: Carlos compra a startup de Joana por R$ 1 milhão, mais um bônus de R$ 200.000,00 se a empresa atingir um faturamento de R$ 5 milhões no ano seguinte (earnout).
A solução com escrow: Carlos deposita os R$ 200.000,00 do bônus na conta notarial. A condição para liberação é a apresentação de um relatório de auditoria independente confirmando o faturamento. Isso dá a Joana a certeza de que receberá seu bônus se a meta for cumprida, e a Carlos, a segurança de que só pagará pelo sucesso comprovado.
Analogia jurisprudencial: O precedente dos depósitos judiciais
Embora a conta notarial seja um instituto recente, é possível estabelecer uma analogia valiosa com a jurisprudência consolidada do STJ sobre depósitos judiciais. O STJ tem reiteradamente reconhecido que o depósito de valores em juízo, quando realizado com finalidade de garantia, confere segurança jurídica às partes e reduz significativamente o risco de inadimplemento5.
No julgamento do Tema repetitivo 677, o STJ estabeleceu que “o depósito judicial como garantia do juízo não extingue a mora do devedor, sendo devidos os encargos moratórios até a efetiva liberação dos valores ao credor”6. Essa decisão reforça o entendimento de que o depósito de valores em ambiente controlado e seguro (seja judicial ou notarial) não substitui o cumprimento da obrigação, mas oferece uma garantia adicional de que os recursos estarão disponíveis quando necessário.
A analogia é pertinente porque tanto o depósito judicial quanto a conta notarial compartilham características essenciais: (i) a segregação patrimonial dos valores depositados; (ii) a gestão por um terceiro imparcial e dotado de fé pública; e (iii) a liberação condicionada ao cumprimento de requisitos objetivos. A diferença fundamental é que a conta notarial opera no âmbito extrajudicial, oferecendo maior celeridade e menor custo que o sistema judicial.
Análise crítica e contrapontos
Apesar de suas inúmeras vantagens, a eficácia da conta notarial depende de alguns cuidados. O principal desafio recai sobre os advogados das partes: a redação de cláusulas contratuais com condições que sejam “objetivamente aferíveis”. O tabelião não pode interpretar o contrato nem decidir quem tem razão em caso de ambiguidade. A condição para liberação dos valores deve ser inequívoca e comprovável por meio de documentos (ex: “liberar o valor mediante a apresentação da certidão de matrícula X com o registro da compra e venda”).
Outro ponto que merece atenção é a remuneração dos valores depositados. A regulamentação atual não prevê mecanismos de correção monetária ou rendimentos para os valores mantidos na conta por longos períodos. Este gargalo pode limitar a atratividade do instrumento para negócios com prazos de execução mais extensos, sendo um ponto que certamente demandará aprimoramento futuro.
Por fim, é crucial compreender os limites da atuação notarial. O tabelião não substitui o advogado na análise de riscos do negócio. Sua função é a de um gestor imparcial do mecanismo de garantia. A prudência notarial o obriga a verificar indícios de fraude, simulação ou lavagem de dinheiro, mas a análise de mérito e a consultoria sobre a viabilidade da transação permanecem como atribuições da advocacia.
Conclusão
A conta notarial de garantia representa um dos mais significativos avanços na busca por um ambiente de negócios mais seguro e eficiente no Brasil. Ao combinar a fé pública e a expertise técnica do notariado com uma estrutura de baixo custo e alta proteção patrimonial, o instrumento não apenas oferece uma solução robusta para a garantia de obrigações, mas também se consolida como uma poderosa ferramenta de desjudicialização e prevenção de litígios.
A inspiração nas melhores práticas internacionais do notariado latino, aliada à adaptação às especificidades do direito brasileiro, demonstra a maturidade e o potencial transformador deste instituto. A analogia com a jurisprudência consolidada do STJ sobre depósitos judiciais reforça a solidez jurídica do modelo, enquanto as contribuições doutrinárias de juristas como Kümpel e Chalhub oferecem o embasamento teórico necessário para sua plena compreensão e aplicação.
A sua implementação bem-sucedida tem o potencial de reduzir a incerteza, fomentar investimentos e consolidar o papel do tabelião como um agente de pacificação social na era digital. Cabe agora aos operadores do Direito – advogados, tabeliães e o próprio Judiciário – explorar, aprimorar e difundir essa nova filosofia de gestão de riscos, transformando a promessa de segurança jurídica em uma realidade concreta e acessível a todos.
Seção de perguntas frequentes (FAQ)
1. Quanto custa exatamente o serviço? Atualmente a taxa é de 0,08% sobre o valor da operação depositado na conta notarial, um custo extremamente baixo quando comparado à segurança oferecida. Há um banco que validou este serviço junto aos notários, sendo possível a redução desta taxa, no futuro, conforme a concorrência de novos players ofertando o serviço, e a popularização do mesmo.
2. O dinheiro depositado na conta notarial rende juros ou é corrigido? Não. A regulamentação atual não prevê remuneração ou correção monetária sobre o valor depositado. Por isso, o instrumento é mais indicado para negócios de curto e médio prazo.
3. E se uma das partes não cumprir o combinado? O tabelião não pode decidir a disputa. Se a condição para liberação não for cumprida no prazo, o valor pode ser devolvido ao depositante (se o contrato prever) ou as partes deverão buscar a via judicial para que um juiz determine o destino do dinheiro, que permanecerá seguro na conta notarial.
4. Qualquer cartório de notas oferece esse serviço? A adesão é facultativa. Atualmente, centenas de tabelionatos já estão cadastrados na plataforma gerida pelo Colégio Notarial do Brasil, e o número cresce continuamente.
5. Preciso de um advogado para usar a conta notarial? Embora não seja obrigatório, é altamente recomendável. O advogado é essencial para redigir um contrato com cláusulas claras e objetivas, garantindo que a atuação do tabelião seja fluida e indiscutível.
6.A conta é 100% à prova de penhoras? Ela é imune a penhoras por dívidas das partes ou do tabelião que sejam estranhas ao negócio. Contudo, um juiz pode, em uma decisão fundamentada, determinar a penhora dos valores se a própria operação for considerada uma fraude.
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Referências
1 BRASIL. Lei nº 14.711, de 30 de outubro de 2023. Altera a Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/lei/L14711.htm. Acesso em: 21 set. 2025.
2 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Provimento nº 197, de 13 de junho de 2025. Regulamenta a prestação do serviço de conta notarial pelos tabeliães de notas. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/6186. Acesso em: 21 set. 2025.
3 KÜMPEL, Vitor Frederico. Tratado Notarial e Registral. São Paulo: YK Editora, 2023. v. II.
4 CHALHUB, Melhim Namem. Curso de Direito Civil: Direitos Reais. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
5 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1.896.777/SP. Relator: Min. Luis Felipe Salomão. Julgado em: 13 abr. 2021. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 21 set. 2025.
6 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Tema Repetitivo 677. O depósito judicial como garantia do juízo não extingue a mora do devedor, sendo devidos os encargos moratórios até a efetiva liberação dos valores ao credor. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 21 set. 2025.
Fonte: Migalhas


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