O mercado imobiliário brasileiro movimenta, anualmente, cifras que ultrapassam a casa do trilhão de reais. Embora seja difícil mensurar com exatidão esse montante, alguns indicadores ajudam a dimensionar sua grandeza: somente o Sistema Financeiro da Habitação (SFH) e o Sistema de Financiamento Imobiliário (SFI)¹ — giram em torno de R$ 150 a R$ 200 bilhões por ano; a Câmara Brasileira da Indústria da Construção (CBIC) registrou R$ 203 bilhões em vendas entre julho de 2023 e junho de 2024² e, quando somamos a isso as negociações realizadas à vista e fora do sistema bancário, torna-se plausível trabalhar com a estimativa de mais de R$ 1 trilhão por ano em movimentação.
Diante de tamanha magnitude, o setor imobiliário naturalmente se apresenta como ambiente propício para práticas ilícitas, em especial o crime de lavagem de capitais, popularmente chamado de “lavagem de dinheiro”. A legislação brasileira, após a alteração promovida pela Lei n° 12.683/2012, ampliou consideravelmente o alcance da Lei n° 9.613/1998, deixando de adotar um rol taxativo de crimes antecedentes e passando a considerar qualquer infração penal — crime ou contravenção — como suficiente para caracterizar a lavagem.
Não por acaso, diversas profissões passaram a ser regulamentadas com o objetivo de colaborar com a prevenção desse delito. No setor imobiliário, a Resolução Cofeci n° 1.336/2014 impõe a pessoas físicas e jurídicas que atuam na promoção, compra e venda de imóveis a obrigação de comunicar ao Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) operações suspeitas de lavagem de capitais, inclusive por meio da declaração anual de não ocorrência.
Ocorre que, diferentemente da advocacia — em que a lei exige a participação do advogado em atos privativos (com raras exceções que são dispostas de forma clara em lei), sob pena de nulidade —, a intermediação imobiliária pode ocorrer sem o corretor de imóveis. Na prática, é comum observar transações realizadas diretamente entre comprador e vendedor, em uma falsa ilusão de economia. Essa ausência de profissional habilitado, no entanto, gera insegurança jurídica para ambas as partes, além de transmitir a equivocada percepção de que o corretor não possui responsabilidade efetiva sobre o negócio.
Falta de corretor fragiliza o sistema
Ainda que presente na negociação, o corretor frequentemente não tem seu nome formalmente registrado na escritura pública de compra e venda ou no contrato de financiamento, o que fragiliza o sistema. Caso houvesse previsão legal exigindo a assinatura de um corretor credenciado nesses instrumentos, haveria não apenas maior valorização da categoria, mas também um cuidado redobrado por parte dos profissionais, que passariam a assumir responsabilidade direta pelo negócio.
Sem essa obrigatoriedade, a comunicação anual exigida ao Coaf pelos corretores de imóveis se torna, na prática, um ato meramente burocrático, mais próximo de um procedimento “para inglês ver” do que de um verdadeiro instrumento de prevenção. Afinal, como identificar a participação do corretor em uma negociação se a própria lei não exige sua presença para a realização do ato? Soa contraditório exigir que o profissional fiscalize operações suspeitas de lavagem de capitais, impondo-lhe deveres de comunicação, mas não garantir que sua presença esteja formalmente registrada nos negócios jurídicos lícitos que deveriam ser objeto dessa fiscalização.
Essa contradição se evidencia nos números oficiais. Entre 1998 e 2022, o setor imobiliário realizou um total de 28.222 comunicações de operações suspeitas de lavagem de capitais, o que corresponde a uma média de pouco mais de 1.128 por ano. Já em 2023, esse número caiu para 892 comunicações, equivalendo a menos de 0,04% das ocorrências no período — dados do Relatório Integrado de Gestão 2023 – Coaf³. Em um mercado tão robusto como o imobiliário, é difícil acreditar que esse número reflita a realidade.
A princípio, pode parecer que se pretende transferir ao corretor de imóveis uma responsabilidade que não lhe compete. No entanto, a proposta segue caminho inverso: trata-se de conferir respaldo legal a uma categoria essencial, que contribui para a movimentação de cifras astronômicas na economia nacional. Ao mesmo tempo, a medida serviria para valorizar a profissão e destacar os bons profissionais, que atuariam com maior segurança jurídica e reconhecimento institucional.
Leis para identificação formal do corretor
Não se trata, portanto, de uma proposta inédita ou desconectada da realidade. Já existem iniciativas legislativas e normativas que caminham justamente nesse sentido de exigir a identificação formal do corretor de imóveis nas escrituras públicas.
Leis estaduais já aprovadas:
Lei nº 19.428/2018 (Paraná): determina que, havendo corretores envolvidos na transação, seus nomes devem constar obrigatoriamente nas escrituras públicas.
Lei nº 11.618/2021 (Mato Grosso) e Nota de Orientação nº 70/2022 (Anoreg-MT): exigem que as escrituras públicas de compra e venda indiquem expressamente se houve intermediação, mencionando o corretor e seu Creci.
Projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional:
PL nº 1.809/2011: propõe a inclusão do nome e do número de inscrição no CRECI do corretor em todas as escrituras públicas de transações imobiliárias. O projeto, contudo, está há anos parado, atualmente aguardando designação de relator na Comissão de Trabalho (CTRAB).
PL nº 3.748/2021: reforça a obrigatoriedade de registro do nome e da inscrição do corretor ou da imobiliária nos cartórios, tendo sido apensado ao PL nº 1.809/2011.
Esses exemplos demonstram que, embora já existam avanços relevantes em âmbito estadual, apenas uma norma federal uniforme poderá garantir efetividade em todo o território nacional. Mais do que autorizar a inclusão dos dados do corretor apenas quando houver intermediação, é necessário tornar a sua identificação obrigatória, de modo a valorizar a profissão e fortalecer os mecanismos de prevenção à lavagem de capitais.
Nesse ponto, cabe destacar a relevância da implementação de mecanismos de compliance específicos para o mercado imobiliário, reforçando o papel do corretor como verdadeiro gatekeeper. Protocolos de integridade, como a adoção do know your client (KYC), o registro documentado das operações e o treinamento contínuo de profissionais, tornariam a atuação mais transparente e efetiva, alinhando o setor aos padrões internacionais já exigidos pelo Gafi e pela União Europeia.
Cegueira deliberada
Enquanto não houver a obrigatoriedade de identificação formal do corretor de imóveis nos atos jurídicos, continuará sendo comum a chamada “cegueira deliberada” (a conhecida teoria do avestruz). O corretor atende um cliente com claros indícios de lavagem de capitais, mas, diante da baixa valorização da profissão e da fiscalização incipiente quanto ao cumprimento das normas vigentes, acaba por concluir que não há problema em “não ver nada”.
Essa postura não apenas fragiliza a efetividade do sistema de prevenção à lavagem de capitais, como também priva a sociedade de um importante aliado no combate a ilícitos financeiros. Na doutrina contemporânea, a cegueira deliberada é equiparada ao dolo eventual. Isso significa que, ainda que o corretor de imóveis acredite não haver problema em adotar tal postura, poderá ser responsabilizado penalmente por sua omissão consciente. Daí a relevância de se avançar na valorização da categoria e na obrigatoriedade do registro formal de sua presença nas transações imobiliárias — medida que, por si só, proporcionaria maior segurança ao mercado nacional e elevaria o nível de qualificação profissional e técnica dos corretores.
A própria jurisprudência já reconhece que o corretor de imóveis possui deveres de diligência e cautela na intermediação. O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o REsp 1.266.937/MG, perfilhou o entendimento de que “o corretor de imóveis deve atuar com diligência, prestando às partes do negócio que intermedeia as informações relevantes, de modo a evitar a celebração de contratos nulos ou anuláveis, podendo, nesses casos, constatada a sua negligência quanto às cautelas que razoavelmente são esperadas de sua parte, responder por perdas e danos” (Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 06/12/2011, DJe 01/02/2012).
Se na esfera civil já se exige atuação diligente, com responsabilidade por prejuízos decorrentes de sua negligência, não parece desarrazoado ampliar essa lógica para o campo da prevenção penal, reconhecendo que a valorização institucional do corretor, por meio da obrigatoriedade de seu registro formal nos negócios, contribuiria decisivamente para o combate à lavagem de capitais.
Como combater a lavagem de capitais
Entende-se que, para uma efetiva atuação dos corretores de imóveis no combate à lavagem de capitais, são necessárias duas medidas centrais:
1) Criação de uma qualificação complementar destinada a todos os corretores já credenciados junto ao Creci. Em um primeiro momento, a adesão seria facultativa, funcionando como título adicional para destacar os profissionais comprometidos com a capacitação contínua e conferindo-lhes maior reconhecimento em sua trajetória. Para os futuros inscritos, essa qualificação passaria a ser obrigatória no curso de formação, de modo que, a longo prazo, todo corretor credenciado estaria plenamente habilitado a exercer a profissão em sua totalidade, com valorização, respaldo legal e responsabilidade sobre seus atos.
2) Exigência da presença formal do corretor nas escrituras públicas e nos contratos de financiamento imobiliário. Essa medida garantiria não apenas maior segurança jurídica às transações, mas também a valorização concreta da categoria, fortalecendo seu papel como agente de prevenção à lavagem de capitais.
É natural que parte da categoria manifeste resistência à ideia de maior formalização e responsabilidade. No entanto, a médio e longo prazo, a medida tende a proteger o próprio corretor, pois sua atuação passará a ser reconhecida institucionalmente, com respaldo legal e critérios objetivos de responsabilização. Em vez de vulnerabilidade, o profissional ganhará valorização e segurança jurídica em sua prática cotidiana.
Em síntese, valorizar o corretor de imóveis é valorizar também o próprio sistema de prevenção à lavagem de capitais. A criação de uma qualificação complementar, aliada à obrigatoriedade de registro formal nos instrumentos jurídicos, representa um passo decisivo para transformar a categoria em verdadeiro pilar de segurança jurídica e compliance no setor imobiliário. Mais do que evitar ilícitos, trata-se de conferir à sociedade maior transparência em um mercado que movimenta cifras astronômicas e que, justamente por isso, não pode permanecer à margem de mecanismos eficazes de controle.
Fonte: Conjur

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