Como a nova decisão do CNJ impacta o mercado com os registros obrigatórios e o que poderia ser feito para mudar essa realidade
O CNJ, sob relatoria do Conselheiro Marcello Terto, proferiu em 15 de agosto de 2025 decisão no procedimento de controle administrativo 0001611-12.2023.2.00.0000, reafirmando a vedação à exigência de CND’s – certidões negativas de débitos tributários como condição para a lavratura de escrituras e o registro de atos envolvendo imóveis.
A decisão tem como fundamento a jurisprudência consolidada do STF, especialmente no julgamento da ADI 394/DF, que declarou inconstitucionais as chamadas sanções políticas tributárias.
Seguindo o entendimento já pacificado, o CNJ reforçou o reconhecimento que a exigência de CND’s por serventias extrajudiciais, como condição para a prática de atos notariais e registrais, configura meio oblíquo de cobrança tributária, violando os princípios constitucionais do devido processo legal, da proporcionalidade e da liberdade econômica, previstos nos arts. 5º, incisos XXXV e LIV, e 170, parágrafo único, da Constituição Federal, dentre outros argumentos já propagados.
Apesar da vedação à exigência como condição para o registro, a decisão admite que a apresentação de certidões, inclusive positivas, pode ser requerida a título informativo, com o objetivo de garantir transparência, segurança e eficácia jurídica ao negócio celebrado. A ressalva visa preservar a função informativa dos registros públicos e permitir que os adquirentes tomem decisões conscientes, especialmente diante de eventuais débitos tributários do alienante.
Essa posição de atestar a inexigibilidade, mas preservar a informação, pode parecer um tanto quanto titubeante e, de fato, revela que a questão é mais complexa e que, nesse caso, talvez o CNJ não consiga resolvê-la.
Há um aspecto não tratado na decisão e que, na esmagadora maioria das vezes não é enfrentada a contento, que diz respeito às incumbências e responsabilidades dos demais envolvidos nos atos – os tabeliões e os registradores imobiliários.
O art. 134 do CTN, em seu inciso VI, estabelece que tabeliões, escrivães e demais serventuários são solidariamente responsáveis pelos tributos nos atos em que intervierem e que forem omissos. A omissão se configura quando não se exige a comprovação da quitação dos tributos, à luz de uma interpretação sistemática das nomas aplicáveis.
A regra de responsabilidade se soma ao que consta do art. 22 da lei 8.935/1994, que regula a atividade de os notários e registradores, na qual onde se encontra a norma que atribuiu responsabilidade pessoal pelos prejuízos que os notários ou os registradores causarem por dolo ou culpa. O prejuízo, nessa situação, nos parece claro em relação ao Estado.
Esse dispositivo impõe responsabilidade pessoal aos delegatários, que, em tese, poderia justificar a exigência de CND’s como medida de cautela para evitar prejuízos decorrentes de registros de negócios jurídicos envolvendo bens com pendências fiscais. A dispensa da exigência, comumente, é objeto de processo próprio do delegatário diligente que, mediante processo judicial por ele mesmo manejado, obtém um “salvo conduto” para observar a orientação dessa e de tantas decisões.
Triste a constatação de que a situação não exprime a tão almejada segurança jurídica, condição básica para um ambiente de negócios minimamente previsível. A própria legislação, como demonstra o §1º do art. 30 da lei de introdução às normas do Direito brasileiro, reconhece o efeito vinculante de decisões como a aqui comentada, tratando-as como instrumentos aptos a promover maior segurança jurídica.
Ainda assim, o tabelião ou registrador, se de um lado podem se amparar na regra e da decisão aqui comentada; de outro, podem se ver inclinados a seguir com a exigência diante das normas que podem lhes causar uma responsabilidade pessoal.
Portanto, mesmo com a orientação definida pelo CNJ, muitos cartórios continuam (e continuarão) exigindo as certidões. E não é por desinformação – é por receio. Notários e registradores seguem sujeitos a regras legais que os responsabilizam pessoalmente por prejuízos ao Estado, caso autorizem atos envolvendo bens com pendências fiscais. Ou seja, mesmo que a exigência seja juridicamente indevida, ela persiste como uma forma de proteção institucional.
São inúmeros os desdobramentos que daí decorrem e não é diferente no âmbito do planejamento patrimonial e sucessório. Nesse ambiente, aliás, o contexto aqui debatido faz com que o termo planejamento tenha uma acepção ainda mais abrangente.
As exigências de CND’s têm impacto direto nos planejamentos patrimoniais e sucessórios. Imagine, por exemplo: os genitores de uma família decidem doar um imóvel para os filhos como parte de uma reorganização patrimonial. O imóvel está regular, mas há uma discussão judicial em curso. O cartório exige a CND, mesmo com a decisão do CNJ em mãos, e o processo fica travado.
Ou o cenário em que uma família decide vender um imóvel que pertence ao espólio, como parte da liquidação de bens após o falecimento do patriarca. O imóvel está regular, mas o espólio possui débitos tributários em discussão judicial. O comprador está ciente e aceita o risco, mas o cartório exige a CND para registrar a escritura. Resultado: o negócio é suspenso, mesmo com respaldo jurídico para seguir sem a certidão.
Em casos mais delicados, como partilhas envolvendo herdeiros menores ou situações de urgência (como doenças graves), a exigência pode gerar atrasos que comprometem não só o planejamento, mas também a paz familiar.
Há também situações em que o planejamento envolve múltiplos imóveis, distribuídos entre diferentes Estados. A exigência de CNDs em uma única serventia pode comprometer toda a estratégia, exigindo revisões estruturais e até a substituição de ativos no plano sucessório. O impacto não é apenas jurídico – é emocional, financeiro e, muitas vezes, intergeracional.
Outro exemplo recorrente é o da integralização de bens imóveis em holdings familiares. Embora não haja alienação, muitos cartórios interpretam a operação como transferência patrimonial e exigem certidões negativas do titular. Isso gera insegurança para famílias que buscam profissionalizar a gestão de seus ativos e proteger o patrimônio contra riscos externos.
Em planejamentos patrimoniais que envolvem cláusulas restritivas, – como inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade -, a exigência de CNDs – certidões negativas de débito pelo cartório soa contraditória. Afinal, tais cláusulas têm justamente a função de proteger o bem, impedindo sua alienação ou constrição. Exigir CNDs nesses casos ignora a natureza do ato, que não visa à circulação do bem, mas à sua preservação. A insistência cartorária, portanto, revela uma desconexão entre a finalidade jurídica do planejamento e a prática registral adotada.
Nesses contextos, o planejamento patrimonial e sucessório exige uma abordagem multidisciplinar, que envolva não só o olhar jurídico, mas também uma leitura prática da realidade registral. É preciso antecipar obstáculos, preparar alternativas e, acima de tudo, manter o foco no objetivo principal: proteger o patrimônio e garantir que ele seja transmitido de forma segura e eficiente.
Então, há alguma esperança, uma vez que estamos num momento de reforma tributária? Não há qualquer indício de que as regras acima serão alteradas. Ao contrário, a regra de responsabilidade não deve sofrer alteração e a saga deve continuar cabendo a cada interessado, com base no caso concreto, buscar pelas vias próprias a dispensa da apresentação de tais certidões conforme necessárias.
Fonte: Migalhas


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