Rua Bela Cintra, 746 - cj 111/112 - Consolação - SP
Seg - Sex : 09:00 - 18:00

iRegistradores: “O novo panorama da Regularização Fundiária Urbana de acordo com a Medida Provisória nº 759, de 22 de dezembro de 2016” – por Paola de Castro Ribeiro Macedo

1. Introdução
 
O desenvolvimento das cidades brasileiras intensificou-se na década de 1930, com a chegada ao país da Revolução Industrial. Com esse fenômeno, mais pessoas se deslocaram para trabalhar nas fábricas, ocasionando a necessidade de moradia próxima aos centros urbanos, o que acelerou o parcelamento do solo. Rapidamente, vislumbrou-se uma nova oportunidade de negócio: alienar aos operários porções menores de terra (Cf. Promessa de Compra e Venda e Parcelamento do Solo Urbano, 2011, p. 22).
 
Sem nenhuma preocupação urbanística, mas com a finalidade de garantir maior segurança aos compradores de lotes, foram editados os primeiros textos legislativos, com regramento de parcelamento e venda de imóveis a prazo, com ênfase no Decreto-Lei nº 58, de 10 de dezembro de 1937 e seu regulamento, o Decreto nº 3.079, de 15 de setembro de 1938.
 
O referido diploma legal começou por submeter a regime especial os proprietários que pretendiam vender lotes ao público, mediante pagamento em prestações. Note-se que, antes desse diploma legal, os proprietários eram livres para vender seus imóveis por inteiro, ou em partes, à vista ou em prestações.
 
Com o Decreto-Lei nº 58/37 ocorreu, na lição de Pontes de Miranda, uma juridicização do loteamento nas espécies que ele indicou. Quando houvesse intenção do proprietário em subdividir seu imóvel para venda em prestações sucessivas, por oferta pública, haveria o dever do registro do loteamento, com o depósito em cartório de memorial e planta, devidamente assinados, exemplar do contrato-tipo de compromisso de venda de lotes, além de demais certidões e documentos exigidos para tanto.(Cf. Tratado de Direito Privado, Tomo XIII, 2001, p. 59/60).
 
Assim, passou a ser obrigatório o registro do parcelamento do solo, apenas se preenchidos os requisitos: (i) vontade do proprietário em dividir sua área; (ii) vender em prestações a prazo; e (iii) mediante oferta pública. Se faltasse um dos requisitos, não haveria necessidade de registro do loteamento[1].
 
Em 1965, começaram as preocupações urbanísticas, tornando obrigatória a aprovação pela Prefeitura Municipal do plano e planta de loteamento, para serem observadas questões sanitárias, militares e florestais (Lei nº 4.778/65). Com o advento do Decreto-Lei nº 271, de 28 de fevereiro de 1967, novos padrões e exigências foram criados para a implantação de um loteamento urbano.
 
Posteriormente, com a edição da Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, passou a ser obrigatório o registro do parcelamento do solo em todos os loteamentos e desmembramentos, impondo-se ao parcelador requisitos mais rígidos e uma maior gama de documentos e aprovações a serem apresentados.
 
Quase que concomitantemente com a legislação que regulamentou a matéria de parcelamento do solo, surgiram os loteamentos clandestinos ou irregulares[2], que foram se multiplicando ao longo dos últimos 30 anos, gerando uma situação de incerteza para grande parcela da população que vive nessas áreas.
 
De um lado, o próprio Estado, utilizando-se de áreas públicas ou institucionais, construiu casas para a população de baixa renda, sem preocupação de regularizar a sua titulação. Foram milhares de famílias agraciadas com tais residências, sem qualquer direito formal. No Estado de São Paulo, viu-se até projetos habitacionais implementados pela Administração Pública, em que pessoas adquiriram e pagaram por imóveis em situação de irregularidade, não podendo obter o registro de propriedade.
 
De outro lado, alguns loteadores, criativos em artifícios para burlar o cumprimento das leis de parcelamento do solo, encontraram terreno fértil para se beneficiarem ao longo de anos com as irregularidades perpetradas, especialmente em virtude de uma atuação administrativa de fiscalização incipiente e ineficaz.
 
Aliado a isso, verificou-se, ainda, a invasão de áreas ambientalmente sensíveis e não fiscalizadas, tendo os invasores fixado suas moradias, sem a observância de qualquer regra urbanística ou ambiental.
 
A combinação da má atuação do Poder Público em gerir e fiscalizar o crescimento das cidades, com a ganância dos empreendedores, e a demanda cada vez mais crescente por moradia nos grandes centros urbanos, fez com que o Brasil apresentasse níveis alarmantes de imóveis em situação irregular.
 
Esses imóveis estão à margem do sistema, na medida em que: (i) não podem ser legalmente vendidos, dados em garantia ou herdados; (ii) não geram impostos; (iii) não se valorizam como o restante do mercado imobiliário; (iv) não recebem o mesmo nível de investimento em infraestrutura do Poder Público; e (v) não são mantidos com o mesmo capricho que seriam se tivessem proprietários formais.
 
Assim, o clamor por regularização destes imóveis passou a ser premente. Instrumentos de regularização começaram a ser engendrados por meio de leis e normas, para solucionar esse problema tão negligenciado pelos administradores públicos no passado.
 
2. Mecanismos de Regularização Fundiária
 
Como muito bem citado pelo ilustre Des. José Renato Nalini, existem três dimensões para a regularização fundiária: (i) dimensão urbanística, com os investimentos necessários para melhoria das condições de vida da população; (ii) dimensão jurídica, com a utilização de instrumentos que possibilitem a aquisição da propriedade nas áreas privadas e o reconhecimento da posse nas áreas públicas; e (iii) dimensão registrária, com o lançamento nas respectivas matrículas da aquisição destes direitos, a fim de atribuir eficácia para todos os efeitos da vida civil (Cf. Direitos que a Cidade Esqueceu, 2012, p.167).
 
Em qualquer procedimento de regularização fundiária, cotejando as três dimensões, o objetivo final do conjunto de medidas a serem tomadas é a titulação de seus ocupantes, respeitadas, é claro, a legislação urbanística e ambiental. A devida titulação pacifica conflitos e garante verdadeiramente o direito à moradia digna.
 
Por titulação entende-se a produção de um título aquisitivo com aptidão para ingressar no fólio real, gerando preferencialmente direitos de propriedade ou, se estes não forem possíveis, direitos reais de uso.
 
Nos dizeres de Marcelo Augusto Santana de Melo (Regularização Fundiária, 2014, p. 390 – grifos nossos):
 
Os elementos do direito à cidade são viver com segurança, viver em paz, e viver com dignidade, e somente mediante um sistema de garantia de propriedade adequado é que existirá a satisfação plena de seu conteúdo. (…) a propriedade é o fim a ser observado no direito à moradia porque somente com ela existirá a segurança jurídica plena e a satisfação dos moradores de baixa renda.
 
Antes do advento da Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, as formas de produzir títulos de propriedade para ocupantes de áreas irregulares eram morosas, custosas e geralmente envolviam o Poder Judiciário.[3]
 
Para os adquirentes de lotes em loteamentos clandestinos ou irregulares (áreas particulares), a principal forma de regularizar sua propriedade era ingressar com ação de usucapião. A ação de usucapião, além de muito demorada, dada a quantidade de documentos e providências exigidos por lei, resolve a questão individualmente, sem observância de requisitos urbanísticos e ambientais, o que não se mostra muito eficiente, como muito bem descrito por Maria do Carmo de Rezende Campos Couto: “A questão da regularização fundiária deve ser enfrentada e solucionada de modo global e planejado, como previu a Lei nº 11.977/2009, e não por meio de doses homeopáticas comprovadamente insuficientes, como a usucapião.” (Regularização de Interesse Específico, 2012, p; 28).
 
Para as ocupações em áreas públicas, onde a ação de usucapião é incabível por vedação constitucional[4], há outros mecanismos de regularização, como: (i) a concessão de uso especial para fins de moradia (Medida Provisória 2.220/2001); (ii) concessão de direito real de uso (Lei nº 11.481/2007 e Lei nº 11.952/2009); (iii) legitimação de posse de terras devolutas (Lei nº 6.383/76); e (iv) titulação de posse, nos imóveis em que houve desapropriação de interesse social para fins de regularização (Lei nº 9.785/1999).
 
Entretanto, a maior parte desses mecanismos em áreas públicas não garantiam aos seus ocupantes o status de proprietários, conferindo, no máximo, o reconhecimento de um direito real de uso. Ademais, traziam requisitos restritos e muitas vezes transitórios, não beneficiando uma gama significativa da população.
 
Por outro lado, a edição da Lei nº 11.977/2009, alterada pela Lei nº 12.424/2011, criou um aparato jurídico novo, com uma série de ferramentas com vistas a facilitar e acelerar a regularização dos loteamentos, sendo um verdadeiro divisor de águas.
 
Com efeito, o sistema de 2009 flexibilizou as regras registrais, a fim de obter a regularização de assentamentos irregulares e a titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado[5].
 
Em matéria de regularização fundiária, foi o diploma legal mais forte e completo, arquitetado para conceder propriedade aos ocupantes dos assentamentos irregulares.
 
Na esteira dessa legislação, o Conselho Nacional de Justiça editou o Provimento nº 44, de 18 de março de 2015, com normas gerais e diretrizes para aplicação da regularização fundiária urbana.
 
No Estado de São Paulo, a Corregedoria Geral da Justiça editou, de maneira exemplar, provimentos para regulamentar os pormenores do procedimento de regularização fundiária, criando uma seção própria no Capítulo XX, das Normas de Serviço, dedicada exclusivamente ao tema, com vistas a esclarecer os pontos nebulosos da legislação, simplificar os procedimentos, dispensar práticas desnecessárias e ampliar o âmbito de atuação do Oficial de Registro de Imóveis, de forma a assegurar a aplicação da legislação de forma mais célere e eficiente.[6]
 
Além disso, foi editado em 2014 um material pelo Governo do Estado de São Paulo, em parceria com a Corregedoria do Estado de São Paulo, chamado de “Cartilha de Regularização”, com explicações passo a passo, modelos de atos administrativos e registrais, para facilitar o entendimento e a aplicação das leis e normas, a fim de acelerar os processos de regularização.
 
Com base nesse aparato jurídico, avançou-se muito em matéria de regularização fundiária. Somente no Estado de São Paulo, até abril de 2017, foram 2.156 loteamentos, 205.431 lotes regularizados e 25.676 imóveis titulados[7], o que claramente demonstra a força dos mecanismos criados. Com o passar do tempo, já havia sido criada doutrina a respeito do tema e até um número significativo de jurisprudência para dirimir as questões ainda obscuras.[8]
 
No entanto, para surpresa da comunidade jurídica, em 23 de dezembro de 2016, foi publicada a Medida Provisória nº 759, de 22.12.2016. Além de trazer alterações pontuais em matéria de regularização de imóveis rurais, modificando artigos de leis já vigentes[9], a MP 759 simplesmente revogou por completo o Capítulo III da Lei nº 11.977/2009, e o Capítulo XII da Lei nº 6.015/73, que tratavam de regularização fundiária urbana, como se toda a experiência anterior de regularização tivesse sido um grande equívoco para o país. (Cf. Artigo: A nova Medida Provisória nº 759/2016 e seus reflexos no Registro de Imóveis)
 
Por ato do Presidente da Mesa do Congresso Nacional nº 10, de 20 de março de 2017, a Medida Provisória nº 759 teve sua vigência prorrogada pelo período de 60 dias, ou seja, até 20 de maio de 2017.
 
Assim, nesse momento, o panorama da regularização fundiária no Brasil não é muito confortável. A normativa trazida pela Lei nº 11.977/2009, que serviu para regularizar mais de 200 mil imóveis no Estado de São Paulo não está mais em vigor. E o novo aparato trazido pela Medida Provisória nº 759, mesmo estando vigente, ainda segue de maneira precária, uma vez que não se sabe como seus preceitos serão incorporados ao ordenamento jurídico, especialmente pelo número significativo de propostas de emendas em tramitação no Congresso Nacional (mais de 700 propostas).
 
3. Os novos instrumentos de Regularização Fundiária Urbana trazidos pela Medida Provisória nº 759
 
A exposição de motivos da Medida Provisória nº 759 justifica a sua proposição na “falta de regramento jurídico específico sobre determinados temas, ou mesmo por desconformidade entre as normas existentes e a realidade fática dos tempos hodiernos.” Ao tratar do tema regularização urbana, destaca que o modelo da REURB proposto em caráter substitutivo, para além de preencher lacunas deixadas pelo legislador, vem dinamizar e simplificar – inclusive sob uma perspectiva registral – o processo de regularização fundiária urbana no País, permitindo que este efetivamente alcance os seus fins.
 
Como se vê, a MP considerou que não havia, até o momento, um aparato jurídico suficiente para resolver o problema da irregularidade urbana no País, argumento que pode ser refutado pelas estatísticas das regularizações já concretizadas.
 
Baseado nessa premissa aparentemente equívoca, a Medida Provisória nº 759 altera profundamente a sistemática de regularização de imóveis urbanos, apresentando muitas novidades em matéria de conceitos, princípios, objetivos e procedimentos para se atingir a regularização, deixando muitas questões para serem regulamentadas posteriormente por ato do Poder Executivo Federal.
 
a) Conceito e Objeto de Regularização Fundiária Urbana – REURB
 
A Medida Provisória nº 759 aproveita parte do conceito da legislação anterior, quando trata a regularização como um conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais. No entanto, muda o objeto da regularização, ao inserir a ideia de núcleos urbanos informais, que seriam imóveis públicos, privados ou mistos, qualificadoscomo urbanos ou rurais (com características e usos urbanos), destinados de forma predominante à moradia de seus ocupantes, em loteamentos, condomínios ou conjuntos habitacionais irregulares ou clandestinos.
 
Com relação ao tipo de imóvel passível de regularização, a Medida Provisória aponta para a finalidade urbana da área, mesmo que esteja fisicamente localizada em área rural, desde que tenha área inferior ao módulo mínimo de parcelamento.
 
Tal alteração de conceito está sendo questionada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo, que defende que a regularização precisa ser macroplanejada e considerada como um todo, visando a integração da cidade informal à cidade formal (Cf. Regularização Fundiária Urbana, de acordo com a Medida Provisória nº 759 de 22 de dezembro de 2016, 2017, p. 9).
 
Note-se que não se fala mais em assentamentos irregulares em área consolidada, objeto de preocupação da lei anterior, que visava resolver o problema da cidade que se desenvolveu à margem do sistema registral, de maneira irreversível. A regularização era tratada, portanto, como um instituto de exceção, a ser cuidadosamente manejada onde já existisse de fato um assentamento. No novo objeto criado pela Medida Provisória, chamado de núcleo urbano informal, não se vislumbra essa preocupação com o caráter de irreversibilidade ou consolidação das ocupações, pois foram retirados quase todos os parâmetros temporais que existiam na legislação anterior.
 
b) Princípios e Objetivos da REURB
 
A Medida Provisória traz novos princípios a serem observados no âmbito da regularização, mais ligados à área econômica do que à busca do direito à moradia: competitividade, sustentabilidade econômica, social e ambiental, ordenação territorial, eficiência energética, complexidade funcional, e ocupação do solo de maneira eficiente.
 
E aponta como objetivos: identificação e organização dos núcleos urbanos informais, prestação de serviços públicos aos ocupantes, ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, com prioridade para permanência dos ocupantes nos locais, integração social e geração de empregos, estímulo à resolução extrajudicial de conflitos, com cooperação entre Estado e sociedade, concessão de direitos reais preferencialmente à mulher, garantia do direito à moradia digna, pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e eficiência na ocupação e uso do solo.
 
Muitos desses objetivos estavam contidos em princípios da legislação anterior e já eram implementados pelo ente público ao analisar e aprovar a regularização fundiária.
 
Por outro lado, verifica-se que não há mais a menção da “participação dos interessados em todas as etapas do processo de regularização”, o que enfraquece a atuação das associações de bairro e dos próprios beneficiários durante todo o procedimento, além de reduzir o grau de transparência e integração existente anteriormente. Destaca-se que a gestão democrática por meio da participação da população na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos é diretriz da política de desenvolvimento urbano do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2011, art. 2º, II).
 
Na exposição de motivos da Medida Provisória, o Governo Federal justifica esses princípios e objetivos do ponto de vista dos investimentos públicos, aduzindo que a identificação dos núcleos informais passíveis de regularização, insere-os no “radar dos investimentos públicos federais”, facultando a realização de obras de habitação popular, saneamento e mobilidade urbana, servindo, ainda, como fato indutor para o alcance das metas estabelecidas para a aplicação dos recursos destinados às ações de desenvolvimento urbano.
 
c) Modalidades de Regularização Fundiária
 
A Medida Provisória nº 759 manteve as duas modalidades de regularização fundiária já conhecidas: Regularização Fundiária de Interesse Social – REURB-S e Regularização Fundiária de Interesse Específico – REURB-E, acabando com a modalidade chamada pela doutrina de Regularização Inominada, que era prevista no art. 71, da Lei nº 11.977/2009.
 
Além disso, houve alteração na definição do que é considerada REURB-S e REURB-E, delegando-se ao Poder Executivo Federal a atribuição de detalhamento normativo.
 
Na sistemática anterior, eram requisitos para enquadramento na Regularização de Interesse Social: (i) população de baixa renda; (ii) área ocupada de forma mansa e pacífica por pelo menos 5 anos; (iii) imóveis em ZEIS (Zona Especial de Interesse Social definida em lei) ou área pública declarada de interesse para implantação de regularização fundiária de interesse social.
 
Pelas novas regras, a REURB-S servirá para regularizar núcleos informais ocupados por população de baixa renda, observado o disposto em ato do Poder Executivo Federal. Não há critério temporal ou de localização, restando essa regra de aplicação discricionária, o que pode ser uma porta aberta à fraude.
 
A falta de critério temporal pode estimular mais irregularidades, abrindo brechas para que novas ocupações se beneficiassem dos instrumentos da regularização fundiária. Seus mecanismos jamais podem ser usados para atenuar exigências de novos empreendimentos. Para os novos empreendimentos deve-se aplicar com rigor as regras contidas na Lei nº 6.766/79 (parcelamento do solo) e na Lei nº 4.591/64 (condomínio edilício). Nesse ponto, a fiscalização do Poder Público deve ser implacável, para que não sejam criados novos parcelamentos irregulares a serem posteriormente regularizados, o que constituiria um prêmio ao burlador da lei, eternizando o problema.
 
Ademais, a ausência do critério de localização em ZEIS parece atrapalhar o planejamento da cidade, a ocupação racional e ordenada, contrariando os próprios princípios da Medida Provisória.
 
A REURB-E é definida por exclusão também na nova legislação. Porém, como, nesse momento, somente há um requisito a ser cumprido para enquadramento na REURB-S, que é o predomínio de população de baixa renda, as duas modalidades têm poucos pontos de diferenciação conceitual. Além disso, não há uma definição legal objetiva para identificar se determinada população é ou não de baixa renda.
 
A classificação de uma regularização na categoria de interesse social, traz inúmeras vantagens, tais como: critérios diferenciados para consolidação de área de preservação permanente, custeio de projeto e de obras de infraestrutura e pagamento de emolumentos de registro, ou seja, muitas vantagens e poucas definições legais para seu enquadramento de forma justa.
 
Com relação ao tamanho dos lotes e as exigências de áreas de uso público, a Medida Provisória é ainda mais permissiva, na medida em que admite a flexibilização dessas regras, em qualquer modalidade de regularização, sem nenhum controle temporal. A lei anterior permitia a flexibilização somente em assentamentos consolidados antes de 2009.
 
Além disso, na nova normativa não há previsão de implementação de regularização por etapas, o que era uma ferramenta importante na sistemática anterior. Muitos parcelamentos são grandes demais para serem feitos de uma única vez, dada a quantidade e complexidade de questões a serem combatidas. Em outros casos, há parcelamentos que já estão quase inteiramente regularizados por meio de ações isoladas de usucapião, sobrando lotes esparsos, que não comporiam uma única planta.
 
Com relação à chamada Regularização Inominada, a Medida Provisória não repete o contido nos parágrafos do artigo 71, da Lei nº 11.977/2009. Ao contrário, o art. 55, da Medida Provisória nº 759, estabelece que as glebas parceladas antes de 19/12/1979 e integradas à cidade, poderão ser regularizadas por meio dos instrumentos previstos na própria Medida Provisória. Não há tratamento diferenciado para esses parcelamentos muito antigos e de situação irreversível.
 
Além disso, a MP eliminou de nosso ordenamento jurídico a figura da demarcação urbanística, que tinha dupla função: (i) descrever e definir os limites da área onde seria registrado o projeto de regularização (especialmente para os casos em que não houvesse registro da área); e (ii) identificar os ocupantes, para posterior legitimação de posse.
 
Atualmente, pelo art. 50, parágrafo único, da Medida Provisória, não sendo identificadas transcrições ou matrículas da área regularizada, o Oficial de Registro de Imóveis abrirá matrícula com a descrição do perímetro do núcleo urbano informal a ser regularizado.
 
d) Regularização Fundiária em Áreas de Risco, Áreas de Preservação Permanente – APP, Unidades de Conservação e Reservatórios Artificiais de Água
 
Os núcleos urbanos informais de natureza pública, privada ou mista (copropriedade entre pública e privada) podem ser regularizados (art. 9º, I, b), com destinação predominante à moradia, mas também podendo ter uso misto de atividades, para promover a integração social e a geração de empregos (art. 11, parágrafo 3º).
 
Em regra, não se pode regularizar núcleos informais situados em áreas de risco geotécnico, de inundações ou de outros riscos especificados em lei. Porém, pela Medida Provisória é possível tal regularização se houver estudos técnicos a fim de examinar a possibilidade de eliminação, correção ou administração do risco, sendo indispensável a implementação de medidas indicadas nos referidos estudos (art. 12).
 
Nesse ponto, na legislação anterior, a regularização em Áreas de Preservação Permanente e em Áreas de Risco era restrita a situações consolidadas até 31/12/2007, apenas de interesse social e também com os devidos estudos técnicos. A normativa atual é mais flexível, o que pode fomentar a ocupação desse tipo de região, vulnerável a desastres naturais.
 
Além disso, a Medida Provisória sob comento alterou a Lei nº 12.651/12, nos seus artigos 64 e 65, para admitir a regularização fundiária em Áreas de Preservação Permanente tanto na modalidade de interesse social como específico, tratando-se de núcleo urbano consolidado que se caracteriza por: (i) sua existência na data da publicação da Medida Provisória (23/12/2016); (ii) difícil reversão, considerado o tempo da ocupação, a natureza das edificações, e a localização das vias e equipamentos públicos.
 
A diferença entre as duas modalidades, REURB-S e REURB-E, ditará os requisitos que deverão conter os estudos técnicos de viabilidade da regularização em Áreas de Preservação Permanente que são mais rigorosos e detalhados na REURB-E.
 
A análise conjunta do art. 12, da Medida Provisória nº 759/2016 e o art. 65, da Lei nº 12.651/2012 faz crer que em áreas de risco geotécnico, não seria possível a REURB-E. Entretanto, o texto não é claro nesse sentido, podendo dar ensejo a interpretação diversa.
 
Além disso, a Medida Provisória permite a regularização em Unidade de Conservação de Uso Sustentável, nos termos da Lei 9.985/2000, sendo obrigatória a anuência do órgão gestor e a apresentação de estudo técnico (art. 9º, parágrafo 5º). A REURB às margens de reservatório artificial de água, destinado à geração de energia ou abastecimento público, deverá ainda respeitar a distância entre o nível máximo operativo normal e a cota máxima maximorum (art. 9º, parágrafo 6º).
 
e) Legitimados a requerer a REURB
 
A Medida Provisória ampliou o rol de legitimados a requerer a REURB, habilitando também entidades da administração pública indireta, proprietários, loteadores ou incorporadores, Defensoria Pública, em nome dos beneficiários hipossuficientes e o Ministério Público.
 
A ampliação dos legitimados deve ser aplaudida na medida que facilita a regularização fundiária e a titulação de seus ocupantes.
 
f) Processo Administrativo no âmbito da Municipalidade
 
Com o falacioso intuito de desburocratizar a regularização fundiária, a Medida Provisória deslocou o centro do processo administrativo para o Município, ou Distrito Federal, instituindo uma normativa específica e requisitos próprios que devem ser observados pelo ente público.
 
No entanto, como se verá, ao invés de facilitar a regularização, criou-se mais providências, não necessariamente úteis, que, ao final, poderão inviabilizar a regularização na grande maioria dos casos.
 
Pela nova sistemática, o Município deverá instaurar um processo administrativo, com a finalidade de: (i) classificar a modalidade de regularização em REURB-S ou REURB-E; (ii) processar, analisar e aprovar os projetos de regularização; (iii) notificar os proprietários, loteadores, incorporadores, confinantes, terceiros interessados ou aqueles que constem no registro de imóveis como titulares de domínio, para, querendo, apresentar impugnação no prazo de 15 dias; e (iv) publicar edital para que terceiros interessados ou aqueles que não puderam ser notificados tenham a chance de impugnar o pedido.
 
Os itens (i) e (ii) já eram praticados na vigência da lei anterior, mesmo que isso não constasse expressamente da normativa específica, pois é sabido que, para fornecer o licenciamento urbanístico e ambiental e aprovar os projetos de regularização, a Municipalidade já instaurava um processo administrativo interno. Nesse particular, vale destacar a doutrina de Maria Sylvia Zanella Di Pietro a respeito do processo administrativo: “tudo o que a Administração Pública faz, operações materiais ou atos jurídicos, fica documentado em um processo; cada vez que ela for tomar uma decisão, executar uma obra, celebrar um contrato, editar um regulamento, o ato final é sempre precedido de uma série de atos materiais ou jurídicos, consistentes em estudos, pareceres, informações, laudos, audiências, enfim, tudo o que for necessário para instruir, preparar e fundamentar o ato final objetivado pela Administração.” (Cf. Direito Administrativo, 2016, p. 767).
 
Já os itens (iii) e (iv) são requisitos novos trazidos pela Medida Provisória nº 759. Na sistemática anterior, não havia obrigatoriedade de notificar proprietários, confrontantes, loteadores ou incorporadores, ou publicar edital para atingir possíveis interessados, salvo para demarcação urbanística, que somente era necessária caso não fosse localizada a matrícula ou transcrição da área a ser regularizada[10].
 
Nos demais casos de regularização, em que a demarcação urbanística era dispensável, pela existência de registro da área regularizanda, somente haveria necessidade de intimação de confrontantes se houvesse expansão do parcelamento para além da área descrita na matrícula ou transcrição. [11]
 
As novas regras, em aparente conflito com o espírito da Medida Provisória, burocratizarão sobremaneira o procedimento da REURB pois, na grande maioria dos parcelamentos irregulares, existem centenas de proprietários de frações ideias registradas nas matrículas, além de dezenas de confrontantes. Notificar todos esses envolvidos em toda e qualquer regularização será custoso e demorado, dificultando a obtenção da efetiva regularização, perdendo-se o foco da simplificação de procedimentos.
 
Se houver impugnação de algum dos notificados ou de qualquer interessado, prevê a nova legislação que será iniciado procedimento extrajudicial de composição de conflitos em Câmaras de Prevenção e Resolução Administrativa, no âmbito das Advocacias Públicas, com vistas à celebração de Termos de Ajustamento de Conduta (art. 28, parágrafo 1º e art. 36).
 
Anteriormente, as tentativas de conciliação ocorriam no Registro de Imóveis, sob a presidência do Oficial Registrador, que detém conhecimento jurídico da área para guiar as partes a chegarem a um consenso (art. 57, parágrafo 9º, Lei nº 11.977/2009). Se as tentativas restassem infrutíferas, o Oficial, por ato motivado, poderia rejeitar as impugnações infundadas, encaminhando ao Juiz Corregedor apenas em caso de impugnação fundada ou de apelação.
 
Não há necessidade de onerar os cofres públicos com a criação de Câmaras de Prevenção e Resolução Extrajudicial de Conflitos, se esse papel já vinha sendo desenvolvido a contento pelo Registrador Imobiliário, sem custo para a Administração Pública.
 
Na REURB-S, o Poder Público implementará a infraestrutura essencial, equipamentos públicos e melhorias habitacionais, arcando com o custo de sua manutenção, enquanto que na REURB-E, quando da aprovação do projeto, deverão ser definidos os responsáveis pela implantação do sistema viário, infraestrutura essencial, equipamentos públicos, mitigação ou compensação urbanística e ambiental, mediante assinatura do termo de compromisso com as autoridades competentes.
 
A nova normativa divide o processo administrativo perante a Municipalidade em diversas fases, a saber:
 
(i) Requerimento dos legitimados: União, Estados, Municípios, DF, entidades da administração pública indireta, beneficiários, individual ou coletivamente, cooperativas habitacionais, associação de moradores, fundações, organizações sociais, proprietários, loteadores, incorporadores, Defensoria Pública e Ministério Público.
 
(ii) Elaboração do Projeto de Regularização Fundiária: O projeto deverá indicar unidades imobiliárias a serem regularizadas, vias de circulação existentes ou projetadas, medidas para adequação de infraestrutura, por meio de desenhos, memoriais descritivos e cronograma físico de obras e serviços a serem realizados. Na REURB-S, o projeto será elaborado e custeado pela Municipalidade, enquanto que na REURB-E, os custos serão suportados pelos beneficiários.
 
(iii) Saneamento do processo administrativo: O ente público dará o processo por saneado após as providências de notificações, aprovações e devidas análises.
 
(iv) Decisão da autoridade competente, mediante ato formal, que deverá: a) indicar as intervenções a serem executadas; b) aprovar o projeto de regularização; c) identificar e declarar os ocupantes de cada unidade i