(Princípio da especialidade -Quarta parte)
Des. Ricardo Dip
258. Tratemos agora, no âmbito ainda da especialidade objetiva −ou imobiliária−, o tema categorial da qualidade.
Assim já ficou dito em item anterior desta série, os acidentes de quantidade, qualidade e lugar nunca deixam de encontrar-se nas substâncias corpóreas, e, bem por isto, os imóveis todos têm dimensão, têm figura e ocupam um dado lugar. Enquanto, porém, a quantidade e o lugar são acidentes exclusivos dos entes corpóreos, já a qualidade é também acidente de entes espirituais.
259. Consiste a qualidade predicamental em um modo de ser da substância, uma sua modalidade, uma diferença que determina uma forma substancial. É, pois, um acidente que completa e aperfeiçoa a substância, dando-lhe o modo de ser. Algumas vezes, a qualidade é natural a dada substância, e neste caso este acidente diz-se intrínseco (p.ex., a figura de um ente corpóreo); outras vezes, tal se dá com o hábito e a disposição, a qualidade é adventícia, produzida externamente, extrínseca, podendo, assim, perder-se.
A qualidade é multíplice (atuando na substância com os modos de cor, figura, temperatura, hábito, disposição etc.) e opera à maneira de uma forma (acidental) que afeta a forma da substância, ao passo em que a quantidade aflige a matéria da substância.
Por ser uma forma que determina e dá alguma perfeição à substância, a qualidade é um acidente de maior dignidade do que a quantidade, porque esta não é forma e refere-se à matéria e não a outra forma: há maior nobreza entitativa na forma do que na matéria. Todavia, relacionam-se estes dois acidentes, qualidade e quantidade, de tal sorte que o que é forma acidental −a qualidade− não pode afetar a substância se não houver matéria a que aplicar-se, e esta matéria −suposto que se trate de um ente corpóreo (porque as qualidades imateriais, espirituais, por evidente, não têm realidade corporal a que propriamente destinar-se)− repete-se: esta matéria do ente corpóreo tem a quantidade por primazia nos acidentes, e é esta matéria quantificada indispensável à aplicação da forma qualitativa. Assim, nos entes corpóreos, não há qualidade sem quantidade (forma sem matéria), nem quantidade sem qualidade (ou seja, matéria sem forma): a qualidade, enfim, determina um ente dentro de certos limites (quantitativos ou dimensionais), e, pois, consiste numa diferenciação ou determinação do modo de ser de um suposto.
(Peço licença para uma alegoria. Suponham que um menino entre um açougue e diga que deseja comprar um quilo de carne de boi. A substância está bem indicada −a carne de boi−, a quantidade, por igual, bem assinalada −um quilo. Mas de que modo de ser carne bovina se trata? Um quilo de acém? De alcatra? De coxão duro? Contrafilé? Picanha?).
260. Divide-se a qualidade em quatro pares de acidentes suscetíveis de determinar o modo de ser de uma substância:
(i) hábito e disposição;
(ii) potência e impotência;
(iii) paixão e qualidade passível;
(iv) figura e forma.
Poderá pensar-se, num primeiro momento, que é este último binômio (“figura e forma”) o par que, tratando-se do acidente de qualidade, interessa, de maneira exclusiva, ao direito registral imobiliário. Com efeito, não parece conhecer-se (ou ao menos, sou eu quem não conhece) texto algum de direito registral em que haja remissão explícita aos pares “potência e impotência” e “paixão e qualidade passível” no que se refere às situações jurídico-imobiliárias. Ver-se-á, adiante, que estes dois binômios também relevam para a individualização dos status imobiliários.
261.É, sobretudo, o tema da qualidade de figura o que mais de perto vem merecendo tratamento no campo da especialidade objetiva no registro imobiliário. Isto se deve, nomeadamente, à importância da figura para, em conjunção com a quantidade, resolver os problemas de controle de lugar nos parcelamentos.
Figura e forma são, enquanto ambos modos de ser qualitativo, a diversa disposição das partes quantitativas de um ente (a quantidade. relembre-se, é uma divisão dos entes). Quando essa disposição se refere a entes naturais, fala-se em figura (assim, todo imóvel tem uma figura); quando, porém, essa disposição diz respeito a entes artificiais, produtos da indústria humana, é forma (p.ex., a forma de uma cadeira, a forma de uma vestimenta etc.).
A figura −tanto quanto a forma− pode ser plana ou sólida, e a plana, angular ou circular. Por infrequente que seja, não por isto um imóvel é avesso a uma figura circular. De comum, entretanto, os imóveis são polígonos angulares, tendo a figura possível de triângulos, quadrados, rombos, pentágonos, polígonos irregulares (embora pareçam predominar, nas zonas urbanas, os imóveis com figura retangular, é corrente que, de par com anomalias de fato −assim, as implantações divorciadas das descrições adotadas no registro ou no cadastro−, haja prédios com figuras poligonais irregulares, o que é muito comum em cidades não ordenadas e, ainda nas que fruam de ordenação, para o melhor aproveitamento da situação física local).
É por força desta qualidade que, propriamente, pode falar-se em configuração de um imóvel.
262. Mas também relevam para a situação imobiliária −a isto já se acenou faz pouco− os pares de qualidade potência/impotência e paixão/qualidade passível.
A potência em sentido qualitativo consiste na aptidão de um ente para algum fim. A potência categorial, pois, é a qualidade relativa ao que é normal na ordem dos entes a que corresponda. Opostamente, a impotência, enquanto qualidade, é a incapacidade de um ente para atuar (impotência ativa) ou receber alguma coisa (impotência passiva), de sorte que é um modo precário de ser. Assim, para ficarmos num exemplo, a indisponibilidade jurídica de um imóvel é uma sorte de impotência com que se aflige esse imóvel.
Já as mudanças sensíveis em um dado ente são seus acidentes de qualidade passível e paixão. Essas mudanças são as alterações que se percebem de modo sensório (p.ex., câmbios de cor ou de gosto em uma fruta).
A qualidade passível constitui uma alteração sensível permanente ou estável: p.ex., a abertura de uma estrada em meio de um imóvel ou a abertura de uma rua afetando parte de um prédio são mudanças sensíveis estáveis que interessam ao registro de imóveis.
Se, diversamente, um dado prédio é objeto de uma requisição temporária, emergencial (suponha-se, de maneira ilustrativa, a requisição passageira de uma parte de um dado imóvel para ali instalar-se um hospital durante situação de emergência), tem-se aí indicada a qualidade da paixão, que é a mudança sensível temporária, transitória.
263. Para encerrar estas breves considerações sobre o acidente de qualidade na esfera da especialidade objetiva, convém, assim parece, referir o fato de que só ao fim de década de oitenta foi que, no Brasil, passou, de comum, a considerar-se a qualidade para a aferição da disponibilidade nos parcelamentos do solo (remeto-me aqui ao n. 22 da Revista de Direito Imobiliário −julho-dezembro de 1988, p. 54 et sqq.− e, brevitatis causa, a um parecer da lavra, em 24 de junho de 1998, do hoje Desembargador Marcelo Fortes Barbosa Filho, nos autos n. 8.028/98, da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo).