(Princípio da legalidade – Primeira parte)
290. Se quisermos reduzir a uma pequena assinalação o tema do “princípio da legalidade registral”, poderíamos dizer que ele se resume em que o registro não tem eficácia saneadora, senão que se propõe a inscrever aquilo que, previamente, o registrador reconhece por legalmente válido (i.e., reconhece conformado ao direito posto; re-conhecer é conhecer de novo, é conhecer o que já está, o que já é antecedentemente).
Essa indicação sintética do princípio da legalidade registral põe já em evidência o motivo de também designar-se esse princípio por ser o da legitimidade ou o da validade das inscrições (p.ex., Jerónimo González ou, entre nós, Afrânio de Carvalho). Este último, a propósito, afirmou que “a inscrição não passa uma esponja no passado”, e é de Jerónimo González a referência de que a necessidade de um juízo hipotecário (é dizer, a qualificação registral ou cognitio causæ in tabulā) visa a assegurar “el paralelismo entre los asientos y la realidad jurídica” (entendendo a realidade jurídica sob o modo de uma conformidade com a normativa posta).
Assim, exatamente porque o registro, por si só, não tem aptidão para tornar válido o fato, ato ou negócio jurídico inscritível, é que: (i) deve o registrador aferir, previamente, a validade do que se pretende inscrever, para tanto (ii) considerando um parâmetro de aferição. Ali se tem a qualificação ou exame da validade e autenticidade do fato, ato ou negócio. E o parâmetro a tomar em conta para essa qualificação é a legalidade (disso deriva o nome prevalecente para este princípio registral), ou mais exatamente: uma dada normatividade, cujos limites são, com frequência, muito problemáticos.
291. O tratamento adequado deste princípio não é nada cômodo. Tanto pela extensão do tema, quanto pela dificuldade de suas notas compreensivas (lancei-me, in illo tempore, a uma perigosa aventura intelectual, a de escrever um pequeno estudo intitulado “Princípio da legalidade penal: realidade e mito −Uma perspectiva jusnaturalista”, estudo a que, publicado em obra coordenada pelo valioso jurista Jaques de Camargo Penteado, Justiça penal, n. 7, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, remeto os interessados em percorrer as margens de um abismo pleno de dificuldades).
Parece-me, de toda a sorte, que devamos começar pelo discrimen entre o que se entende por princípio da legalidade ex toto genere suo e as distintas espécies que este gênero abriga (fala-se, ordinariamente, em uma legalidade penal, em legalidade administrativa; cabe a especificação da legalidade registral, e a ela havemos de dedicar cuidadosa atenção).
Na sequência, penso que teremos de considerar uma importante divisão dessa legalidade registrária, que tanto deve estimar o fato, ato ou negócio jurídico inscritível em uma esfera de normatividade extrarregistral, quanto no âmbito do processo do “mundo tabular”. Este dito sumário −quod non est in documentīs et in tabulā non est in mundō−, embora aponte, à saída, uma demarcação objetiva inibidora de juízos hipotecários meramente subjetivos, põe à mostra estas duas fases do exame da legalidade registrária: a verificação da legalidade documental (controle de legalidade exoregistral) e a apuração interna do registro (controle de legalidade endorregistral).
Adiante, a análise diferencial dos limites do juízo hipotecário segundo seus diversos campos de ação −ou, em outros termos, como se diferenciam, no âmbito do controle (e aplicação) da legalidade, as tarefas do juiz e do registrador, e, não menos, as do registrador e as do notário. Isto exigirá que tratemos de dois assuntos: o da jurisdição administrativa e o da equidade (a pergunta fundamental neste plano particular é esta: em que sentido se pode verdadeiramente dizer que ao registrador não cabe atuar com equidade?).
Pôr-se-á, então, de caminho, um pequeno excurso sobre o controle da constitucionalidade no campo administrativo.
Finalmente, versaremos a complexa matéria da qualificação registral.
292. Há um conceito geral de “princípio da legalidade”, e que poderia reportar-se a uma sentença de Jean-Jacques Rousseau −um dos maiores mitômanos oitocentistas−, em seu Discours sur l’economie politique: “la première des lois est de respecter les lois”.
Mas se pode admitir-se, de começo, que a noção de observância da lei é central em toda série das espécies do “princípio da legalidade” (penal, administrativa, notarial, registrária, etc.), isto é apenas nominalmente indicativo de um conceito apropriado para o gênero do “princípio da legalidade”. Mal esconde, porém, ou mesmo nada, a larga margem das discussões acerca do que se haja, aí, de entender por “lei”: se o primado −poderia dizer-se: até a admissão do despotismo− da mera lei formal; se a acolhida −então poderia dizer-se: até a admissão da anarquia subjetivista− da substantividade da norma.
Vem a propósito ilustrar a complexidade deste debate sobre a ideia de “lei” com a referência (que é tão antiga, quanto nova) à polêmica de Antígona e Creonte, ou, em outras palavras, à pugna entre a “normatividade substantiva” e a “primazia da lei formal”. A tragédia sofocliana sobrevive nas meditações contemporâneas (como esquecer, por exemplo, as alusões de Karl Larenz a uma “ordem materialmente justa e de Castanheira Neves à “juridicidade material”?)
Créon é a personagem emblemática do imanentismo positivista, e assim dirigiu uma interpelação a Antígona: “ousaste infringir minha lei?”, pergunta a que responde a heroína de Sófocles:
“… não foi Zeus quem a ditou, nem foi a que vive com os deuses subterrâneos −a Justiça− quem aos homens deu tais normas. Nem em tuas ordens reconheço força que a um mortal permita violar aquelas não escritas e intangíveis leis dos deuses. Estas não são de hoje, ou de ontem; são de sempre; ninguém sabe quando foram promulgadas” (cito aqui pela festejada tradução de Guilherme de Almeida).
Eis aí uma sinopse muito adequada deste embate imorredouro “imanentismo versus transcendência” −ou “positivismo versus iusnaturalismo”−, e que interdita a simplificação conceitual do “princípio da legalidade”.
Bem se avista, pois, que não se faz clara a noção do princípio genérico da legalidade com a só referência a que se trate aí da impositiva observância da lei.
293. Não podemos, todavia, a despeito deste enfrentamento irrefreável, abdicar de alguma aproximação do conceito de “lei”.
Tomemos aqui a célebre e muito segura conceituação tomista, segundo a qual a lei na comunidade é uma ordenação racional para o bem comum, promulgada por quem tenha a seu cargo essa mesma comunidade, daí resultando que seja a lei um meio para a consecução desse bem (bem comum que é sua finalidade), um meio racional, é dizer um meio cujo elemento formal é a razão (mais exatamente a razão prática, uma vez que a lei não é somente uma escolha, mas tem a função de regular, ordenar, normatizar ações na comunidade).
Neste capítulo, cabe destacar, entre parênteses, o primado da razão sobre a vontade do legislador (isto vai um tanto na contramão de uma teoria voluntarista do poder político de nossos tempos).
Um aspecto logo se desvela e avulta, a propósito dessa ideia de lei: o da pluralidade de suas espécies, o que leva a novos problemas, quais o de sua eleição e o da convivência de normas que possam conflitar entre si. A questão não é só (nem principalmente) própria do território dos direitos postos em cada comunidade. Vai muito além: bastaria pensar, ainda uma vez recorrendo à Antígona de Sófocles, na não raro conflituosa relação entre uma dada “lei” (ou aparência de lei) humana e a lei moral (ou a lei natural). Vale dizer, sob diverso enfoque, entre leis objetivas e lei (ou norma) da consciência −o que dá espeque à objeção da consciência (e até, mal embora, de consciência).
Não quero margear esta questão, é verdade, mas não pretendo discuti-la a esta altura de nosso escrito. Fica ela assinalada. Se calhar, um dia voltaremos ao assunto, acaso de par com a meditação sobre o tema da “lei moderna” (tema este a que Michel Bastit destinou, na última década do século XX, sua célebre obra Naissance de la loi moderne, de tão proveitosa leitura).
294. Por agora −e para os estreitos fins de nossos pequenos estudos registrais−, basta-nos reconhecer que a legalidade registral é um princípio que se especializa no quadro geral do princípio da legalidade. Não só, por óbvio, à conta da especificidade (relativa) de sua matéria −mais ou menos autônoma em relação ao conteúdo de outros segmentos do direito−, mas, sobretudo, por força da dispensa de reserva estrita de lei (o que seria, correntemente, inadmissível, por exemplo, tratando-se do princípio da legalidade penal).
Há, portanto, um discrimen material (o conteúdo próprio das normas de interesse registral) e um discrimen formal (os tipos de normas admitidos em dado tempo e lugar) que desembocam na especialização da legalidade registral.
Algo em acréscimo, contudo, leva-nos a dar um passo adiante nesta discriminação: é que existem normas mais próprias de certos segmentos do direito −assim, tomemos um exemplo de norma de caráter diretamente penal: o sequestro de bens− que não deixam de ter interesse registrário. Daí que se deva pensar, também, em um concorrente discrimen de perspectiva para rematar na espécie da legalidade registral.
Prosseguiremos neste espinhoso tema.