Quando o assunto é inventário de bens, surgem, naturalmente, dúvidas e questionamentos. Portanto, é importante se ter conhecimento de que o direito de propriedade assegura ao seu titular o poder de usar o bem, usufruir e dispor dele, além de reivindicá-lo de quem o detenha (ilegalmente). Tais atribuições podem ser destinadas a mais de uma pessoa. Quando isso ocorre, os envolvidos se tornam usufrutuários, os quais passam a ter autoridade para utilizar o bem, e dele usufrui-lo, deixando à outra pessoa, denominada nua-proprietária, os demais atributos.
 
Não raro, ainda em vida, pessoas repartem seus bens, reservando o usufruto a seus sucessores. É comum doadores assinalarem que, diante do falecimento de um cônjuge, o sobrevivente passará a ter o direito de exercer o usufruto sobre todo o patrimônio. Sendo assim, surge a questão: pode o proprietário instituir usufruto sobre a legítima de seus sucessores necessários (descendentes, cônjuge e ascendentes)?
 
Recentemente, inclusive, foi atribuída a uma viúva meeira parcela da nua-propriedade e usufruto vitalício sobre a totalidade dos bens de seu falecido ex-marido, com o qual havia se casado sob o regime da comunhão universal dos bens. A fim de esclarecer o assunto, conversamos com o mestre José Fernando Simão, advogado e diretor consultivo do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Confira o comentário do jurista:
 
A questão é interessante e tormentosa. Como se sabe, o sistema jurídico brasileiro garante aos herdeiros necessários a chamada ‘legítima’, ou seja, um percentual do patrimônio do falecido que não pode ser deixado para terceiros. O percentual de legítima varia de acordo com cada país e com cada classe de herdeiro. No Brasil, a legítima é fixa e independe da classe, sendo igual para descendentes, ascendentes e cônjuge sobrevivente: 50% dos bens do falecido, descontando-se dívidas e acrescidos os bens doados que devam ser colacionados.
 
A legítima teve proteção ampliada pelo CC de 2002. Isso porque, no passado, o direito de o testador clausular a legítima era potestativo e não necessitava de justificação. Com a vigência do atual CC, para se clausular a legítima é necessária a motivação, justificação. Se o testador não o fizer, a cláusula é ineficaz e não produz efeitos (art. 1.848 do CC).
 
As cláusulas em questão compõem verdadeiro triunvirato: inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade. São cláusulas que retiram do herdeiro ou legatário alguns poderes da propriedade. Pela inalienabilidade (que gera automática impenhorabilidade e incomunicabilidade), o bem não pode ter a propriedade transferida. Alienar é tornar alheio. Assim, o bem não pode ser vendido, doado ou permutado pelo herdeiro. Impenhorabilidade significa que o bem não pode ser dado em garantia pelo herdeiro (penhor, hipoteca etc) nem penhorado por dívidas dos herdeiros. Fica fora do alcance dos credores. Incomunicabilidade (a mais restrita delas) significa que o bem não integra a comunhão universal, ou seja, sobre ele não haverá meação. É bem particular.
 
É possível clausular a legítima com usufruto, garantindo ao herdeiro a nua-propriedade apenas? A nua-propriedade é uma propriedade decepada, reduzida, fantasmagórica. Vale pouco, na prática. É algo que fica limitado ao poder de disposição. Em termos mercadológicos, quem adquire um imóvel gravado com cláusula de usufruto que normalmente é vitalício? Qual é a depreciação de um imóvel sobre o qual recai o usufruto?
 
Por essa razão, é ineficaz a cláusula de usufruto que recai sobre a legítima. A cláusula retira o poder de usar e fruir, que é decorrência natural da propriedade. A legítima, decepada, mutilada, não é legítima. Por essa razão, não cabe o usufruto sobre a legítima. Agora, segundo o julgado (caso da viúva meeira), os herdeiros fizeram um acordo aceitando a mutilação da legítima: “Também já se reconheceu que não há nenhuma irregularidade na especialização ao cônjuge supérstite da totalidade do usufruto de todos os imóveis, com atribuição aos herdeiros da nua-propriedade dos mesmos imóveis, bastando o consenso entre eles”, conforme consta na decisão.
 
Mais complicada é a questão de renúncia da meação em troca de criação de usufruto. Se renúncia houve, essa seguiria as regras do instituto em que eu renuncio, e a propriedade se torna vaga, de ninguém. Se há renúncia em favor dos herdeiros, na realidade há negócio jurídico bilateral, afinal os herdeiros devem concordar. Aliás, é em razão da “renúncia da meação” que se cria o usufruto. Nesse ponto, razão tem o fisco. Trata-se de cessão onerosa da meação e não de simples renúncia. Cabe, então, analisarem-se as regras tributárias para se verificar a incidência de imposto por decorrência da transmissão entre vivos.