A Convenção sobre a Eliminação da Exigência de Legalização de Documentos Públicos Estrangeiros está em vigor no Brasil desde agosto de 2016.
Também conhecida como Convenção da Apostila, tornou mais simples e ágil a tramitação de documentos públicos entre o Brasil e os mais de cem países signatários do acordo. A vigência da Convenção da Apostila traz significativos benefícios para cidadãos e empresas que necessitem tramitar internacionalmente documentos como diplomas, certidões de nascimento, casamento ou óbito, além de documentos emitidos por tribunais e registros comerciais.
A Convenção da Apostila permite a “legalização única”, bastando ao interessado dirigir-se a uma Autoridade Competente no Estado e solicitar a emissão de uma “Apostila de Haia” para um determinado documento.
Esse procedimento garante que as partes interessadas gastem menos recursos e tempo na tramitação internacional de documentos, o que contribui de forma decisiva para o fomento da atividade econômica. A Convenção da Apostila é um documento que aproxima os países a um “acordo de fidelidade” e exige das autoridades apostilantes, sob o manto da segurança jurídica, a “certificação da origem do documento”.
Nos termos do artigo 6º da Convenção da Apostila, é necessário que cada Estado Signatário designe uma ou mais Autoridades Competentes para emitir as Apostilas.
Cada Estado é livre para determinar a identidade e número de Autoridades Competentes. Essas autoridades são a espinha dorsal do bom funcionamento da Convenção da Apostila, pois devem desempenhar três funções principais no âmbito da Convenção, quais sejam: (i) Verificar a autenticidade e origem de documentos; (ii) Emitir Apostilas; e (iii) Gravar cada apostila emitida num registro, com a finalidade de possibilitar a verificação de sua origem a pedido do destinatário.
Fato é que cada Estado Signatário faz a leitura de seus documentos pautados em culturas e experiências jurídicas próprias, o que pode variar a metodologia de trabalho de cada um.
Como é sabido, a construção brasileira de leitura e validade dos documentos está intimamente relacionada com a instituição do cartório (extrajudicial). Talvez como em nenhum outro país, a figura do cartório extrajudicial tenha relevância cultural sem precedentes. Tanto que sua origem tem espaço na Carta Magna de 1988. (art. 236, CF)
Inimaginável em nossa cultura admitir a realização de transferência de um carro sem que antes um tabelião de notas tenha validado as assinaturas apostas no DUT (reconhecimento de firma por autenticidade). Da mesma forma, inimaginável admitir a realização de transferência de propriedade de bens imóveis pura e simplesmente por contrato particular de compra e venda, sem a lavratura de uma escritura pública de venda e compra. Neste aspecto, a cultura brasileira tem prestigiado o cartório extrajudicial como órgão propulsor de segurança jurídica de atos e negócios jurídicos.
O projeto matriz da Convenção da Apostila, sabiamente, não estabeleceu métodos fechados aos Estados Signatários. Prescreveu tão somente os elementos que o Estado deveria certificar, deixando o método de implementação a critério da cultura interna de cada um. Não se pretendeu adentrar a esse mérito ou fixar uma forma única de produzir os documentos, mas tão somente certificar a existência do mesmo, a validade jurídica no solo em que foi emitido e a autoridade emitente do documento. Até porque, o documento apostilado não tem efeito vinculante para o destinatário, de modo que é plenamente possível que um documento apostilado sob a higidez da lei do Estado emitente (País X, por exemplo) seja recusado pelo Estado destinatário (País Y, por exemplo) que entender que o mesmo, embora válido no país de origem, não poderia produzir qualquer efeito no país destinatário (efeitos limitados do apostilamento).
Nesta trilha veio a Convenção de Haia, celebrada em Haia, em 5 de outubro de 1961, aprovada pelo Congresso Nacional consoante Decreto Legislativo 148, de 6 de julho de 2015, ratificada no plano internacional por meio do depósito do instrumento de adesão perante o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Reino dos Países Baixos, em 2 de dezembro de 2015, e promulgada no plano interno conforme, Decreto 8.660, de 29 de janeiro de 2016, regulamentado pela Resolução nº 228/2016-CNJ, e finalmente aprimorada pelo Provimento 58/2016-CNJ.
Até a edição da Resolução nº 228/2016-CNJ não era possível delimitar com clareza os métodos de trabalhos perquiridos pelo CNJ para que Convenção da Apostila fosse introduzida no cenário jurídico nacional. A pretensão era supostamente simples: informar se o documento é público, autêntico e tem validade jurídica no território onde foi emitido. E como o Brasil, Estado signatário, iria responder aos anseios da Convenção da Apostila?
Dando cumprimento ao texto do artigo 6º da Convenção da Apostila, a Resolução nº 228/2016-CNJ, também em seu artigo 6º, estabeleceu: “São autoridades competentes para a aposição de apostila em documentos públicos produzidos no território nacional as Corregedorias Gerais de Justiça e os Juízes Diretores do Foro nas demais unidades judiciárias, comarcas ou subseções, quanto a documentos de interesse do Poder Judiciário; e, os Titulares dos Cartórios Extrajudiciais, no limite das suas atribuições”.
Da parte final do artigo supra extraímos nosso primeiro objeto de estudo. Vejamos:
O artigo 6º da Resolução nº 228/2016-CNJ, replicado no artigo 5º do Provimento nº 58/2016-CNJ, prediz que as Serventias Extrajudiciais são autoridades competentes para a aposição de apostila NO LIMITE DAS SUAS ATRIBUIÇÕES.
Pela redação do artigo tem-se que o apostilamento estaria adstrito às especialidades de cada serventia extrajudicial. Neste passo, um Registro de Imóveis, enquanto Serventia Extrajudicial, só poderia apostilar os documentos do seu ofício típico. Um Registro de Título de Documentos, Serventia Extrajudicial, só poderia apostilar os documentos do seu ofício típico. De igual forma, o Protesto de Títulos, os Registros Civis das Pessoas Naturais, Serventias de Notas, também só poderiam apostilar os documentos dos seus respectivos ofícios típicos.
Interpretação diversa é de difícil sustentação, pois pressuporia que o Conselho Nacional de Justiça teria agido descuidadamente quando da edição da resolução, o que não se deve presumir, visto o elenco distinto de conselheiros daquela casa. Então partamos da premissa de que o CNJ dimensionou todas as nuances de seu texto normativo, e impôs limites à atuação das serventia extrajudicial quando da realização do apostilamento.
No entanto, existe uma gama de documentos públicos, ou cuja validação oficial poderia torná-los públicos, que sequer são emitidos por cartórios. Para estes casos, temos defendidos que as serventias de notas absorveriam tal demanda por competência residual.
Assim, nos termos da Resolução nº 228/2016-CNJ c/c Provimento nº 58/2016-CNJ, a resposta é legalistamente amarga e sugere que cada Serventia estaria autorizada a realizar o apostilamento daqueles documentos conhecidos e típicos de sua funcionalidade, excepcionados os casos em que os documentos forem emitidos por órgãos alheios ao serviço extrajudicial, ficando essa parcela reservada a competência residual das Serventias de Notas por força do artigo 6º da Lei Federal nº 8.935/94.
O segundo, e último, objeto de estudo deste artigo diz ao reconhecimento de firma dos documentos a serem apostilados.
O Provimento nº 58/2016-CNJ, editado em 09/12/2016, trouxe em seu bojo contornos mais específicos e nacionais (culturais) ao apostilamento – agora não a nível teórico lato senso, e sim a nível didático e prático direcionado ao modus operandi das Serventias Extrajudiciais.
O texto do Prov. 58 não alterou as disposições do artigo 6º da Resolução nº 228/2016, pelo contrário, novamente reproduziu seu texto no artigo 5º ao prescrever que, aparentemente sem reservas, “os titulares de serviços notariais e de registro, nos termos do art. 5º da Lei n. 8.935/1994, são autoridades competentes …”
Entretanto, o artigo 10, §§ 2º, 3º, 4º e 5 º do novo texto emanado do CNJ impôs à rotina de trabalho do apostilamento a figura típica do RECONHECIMENTO DE FIRMA. Ipsis litteris:
Art. 10. As autoridades competentes para a aposição de apostila deverão, por dever de ofício, prestar todos os esclarecimentos necessários antes do ato.
§ 2º Para a emissão da apostila, a autoridade competente deverá realizar a análise formal do documento apresentado, aferindo a autenticidade da assinatura aposta, do cargo ou função exercida pelo signatário e, quando cabível, a autenticidade do selo ou do carimbo aposto.
§ 3º Em caso de apostilamento de documento original, deve ser reconhecida, por semelhança, a assinatura do signatário ou o sinal público do notário caso o reconhecimento de firma já tenha sido realizado em cartório distinto daquele que irá apostilar o documento.
§ 4º No caso de apostilamento de cópia autenticada, a autoridade competente responsabiliza-se também pela autenticidade da assinatura aposta, do cargo ou função exercida pelo signatário e, quando cabível, pela autenticidade do selo ou do carimbo constantes do documento original.
§ 5º Em caso de apostilamento de cópia autenticada por autoridade apostilante, a autenticidade da assinatura, da função ou do cargo exercido a ser lançada na apostila é a do tabelião ou a do seu preposto que apôs a fé pública no documento, dispensado, nesse caso, o reconhecimento de firma do signatário do documento.
Esta segunda crítica, talvez ainda mais emblemática e difícil de se tratar, diz respeito a metodologia adotada pelo Provimento 58/2016-CNJ, que possivelmente tenha limitado ainda mais as próprias Serventias Extrajudiciais, cuja análise propomos.
Quando da realização dos estudos sobre quem seriam as autoridades competentes brasileiras para a realização do procedimento de apostilamento, o Conselho Nacional de Justiça ponderou que os cartórios extrajudiciais seriam as figuras ideais, visto que desde a época da “legalização” já participavam dos processos atestando as assinaturas dos emitentes dos documentos, e com isso municiando o Ministério das Relações Exteriores para que a legalização fosse possível. Neste desiderato, houve por bem entregar parcela do apostilamento ao serviço extrajudicial.
Creio não ser papel deste advogado fechar a questão e escolher lado “A” ou lado “B”, pelo contrário, pretende-se tão somente fomentar a discussão, mas o fato que exsurge é a possível, talvez intransponível interpretação no sentido de que o Provimento nº 58/2016-CNJ limitou/reservou a atribuição para apostilamento aos serviços notariais (cartórios de notas).
Numa dura e restritiva análise, quando o CNJ trouxe o reconhecimento de firma como parte integrante do procedimento do apostilamento, penso que implicitamente pretendeu absorver tão somente aqueles cartórios que têm em seu rol de atribuições as “Notas”. Isso porque somente o “Notas” teria em seu rol a possibilidade jurídica de atesta a assinatura de alguém. Aliás, nos termos do artigo 7º, IV da Lei Federal nº 8.935/94, o Tabelionato de Notas detém competência exclusiva para realização de reconhecimento de firma (atestar a assinatura de alguém).
A redação dos parágrafos do artigo 10 do Provimento nº 58/2016-CNJ, em regra, conduzem a uma percepção de que não é possível o apostilamento sem que antes as assinaturas sejam reconhecidas. Na cultura brasileira, o método juridicamente reconhecido para atestar a veracidade da assinatura de uma pessoa ainda é a emissão de selo de reconhecimento de firma por tabelião de notas. Logo, se a previsão do CNJ é pelo reconhecimento de firma, tem-se que, possivelmente, implicitamente, o apostilamento deve ser conduzido tão somente aos cartórios que tenham em seu rol de atribuições as “Notas”.
Vejamos, mesmo que o documento público apresentado para fins de apostilamento já contenha o reconhecimento de firma realizado por outra serventia, a Serventia que pretender realizar o apostilamento deverá realizar o reconhecimento do sinal público daquele que, antes, havia reconhecido a assinatura do emitente do documento, tal como dispõe o artigo 10, § 3º do Prov. nº 58/2016-CNJ.
Ou seja, os textos normativos caminham para que o apostilamento seja realizado com características e análises internas de cada serventia de “notas”. Pelo que se extrai do Prov. 58, ressalvado exceção, não há viabilidade o apostilamento de documento se a assinatura nele aposta não tiver a chancela da serventia apostilante, ora pelo reconhecimento de firma, ora pelo reconhecimento do sinal público.
Neste particular, cogita-se que o apostilamento é atributo tão somente das Serventias de Notas, visto que todas as outras não dispõem deste predicado (reconhecimento de firma).
Há quem defenda que a liberação de acesso à CENSEC resolveria tal impasse, visto que daria às outras serventias a possibilidade de se verificar a “autenticidade” da assinatura de outro registrador cadastrado.
Ouso divergir desta corrente, pois entendo que a CENSEC é instrumento de meio (e não de finalidade) a contribuir com a realização do procedimento fim, qual seja, o reconhecimento de sinal público. A admissão desta tese fragilizaria os procedimentos e não garantiriam a devida segurança jurídica ao ato. A emissão do selo de reconhecimento de sinal público, tal como o reconhecimento de firma, é a exteriorização da fé pública do notário, de modo que para sua ausência não se pode ofertar fé pública.
Entendo que a questão seja complexa se analisada sob o prisma de que toda a classe cartorária deva ser prestigiada com apostilamento. Entendo também que o projeto matriz da Convenção de Haia foi introduzida no ordenamento jurídico pátrio para dar capilaridade ao serviço em prestígio à sociedade. Porém, tal como foi redigido o Provimento nº 58/2016-CNJ, inicialmente não vejo viabilidade jurídica para o apostilamento por serventias que não sejam as “Notas”.
Mais ainda, qualquer edição de norma pelo CNJ que estenda os efeitos do artigo 10 à toda serventia extrajudicial (RCPN, RTD, RGI, PROTESTO), inobservando que tais serventias não podem reconhecer firma, implicaria em revogação tácita do artigo 7º, IV da Lei Federal nº 8.935/94, o que juridicamente é impossível – uma resolução ou provimento do CNJ não pode, ou deveria, revogar uma Lei Federal.
Não há fácil solução para a demanda, mas é possível defender a revogação dos parágrafos do artigo 10 do Provimento nº 58/2016-CNJ na parte que trazem o reconhecimento de firma como condição sine qua non ao procedimento do apostilamento; ou decisão em Pedido de Providência que positive o entendimento do CNJ acerca da matéria, quiçá, positivando de forma mais clara sua preferência pelas Serventias de Notas para fins de realização dos procedimentos de apostilamento.
São nossas percepções.