A chamada “usucapião extrajudicial” foi introduzida no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei Federal nº 13.105/2015, isto é, o atual Código de Processo Civil, na esteira do movimento de desjudicialização que marcou as últimas décadas1. Para este mister, o novo CPC acresceu o art. 216-A à Lei de Registros Públicos (6.015/1973), admitindo o pedido de reconhecimento extrajudicial da usucapião, por meio de procedimento próprio, realizado perante o registro imobiliário da comarca de situação do imóvel usucapiendo.
 
A inovação foi recebida com grandes expectativas pelo mercado imobiliário, por representar uma forma ágil de formalização do título aquisitivo da propriedade imobiliária usucapida, sem a necessidade de movimentação da máquina Judiciária para tal.
 
Pressupondo o caráter não litigioso da via extrajudicial2, o legislador impôs, como condição de viabilidade da usucapião administrativa, a concordância entre todos os envolvidos, isto é, entre todos os titulares de direitos reais e de outros direitos registrados ou averbados na matrícula do imóvel usucapiendo e na matrícula dos imóveis confinantes. Na dicção original do inc. II do art. 216-A, tal assentimento estaria consubstanciado nas assinaturas apostas, pelos referidos titulares, na planta e no memorial descritivo apresentados ao registrador.
 
Contemplando a hipótese de faltar a assinatura por algum dos titulares, o § 2º do art. 216-A previu a possibilidade de sua notificação extrajudicial, evitando-se, assim, a simples qualificação negativa do título.
 
Neste caso, uma vez notificado o titular faltante, este terá o prazo de 15 dias para declarar sua terminante concordância, que será posteriormente juntada à documentação apresentada, de modo a permitir o registro da usucapião. Caso contrário, isto é, caso o titular discorde, cai por terra a extrajudicialidade da usucapião, por faltar o pressuposto fundamental de consensualidade. Considerava, ainda, o referido § 2º, a hipótese de simples omissão do titular notificado, prevendo que, neste caso, a ausência de manifestação dos titulares seria entendida como discordância, igualmente obstando a efetivação do registro pela via administrativa.
 
A formulação originária da usucapião administrativa, entretanto, foi significativamente alterada com a recente promulgação da Lei nº 13.465/2017, cujo escopo era, em tese, converter em Lei a Medida Provisória 759 de 22 de dezembro de 2016. “Em tese” porque a MP 759, ao contrário do que se observa no texto final da Lei nº 13.465/2017, não trazia qualquer menção à usucapião – muito menos à usucapião extrajudicial. De fato, o ato normativo originalmente versava sobre a regularização fundiária rural e urbana, sobre a liquidação de créditos concedidos aos assentados da reforma agrária e sobre a regularização fundiária no âmbito da Amazônia Legal, instituindo mecanismos para aprimorar a eficiência dos procedimentos de alienação de imóveis da União.
 
Cumpre recordar, neste ponto, que a Medida Provisória (MP) é um instrumento com força de lei3, produzindo imediatos efeitos na ordem jurídica, mas cuja transformação definitiva em lei depende de aprovação do Congresso Nacional. Nota-se que a possibilidade de edição, pelo Presidente da República, de Medidas Provisórias, representa uma exceção à divisão dos Poderes, por conferir poderes legiferantes ao membro do Poder Executivo. Por isso, sua legitimidade depende da rigorosa observância de determinados pressupostos constitucionalmente exigidos, quais sejam: a relevância e a urgência4. A despeito da clareza constitucional, ultimamente tal apetrecho legislativo vem sendo utilizado ao arrepio do seu principal requisito, isto é, a urgência.
 
O prazo de vigência das medidas provisórias, de acordo com o art. 62, § 4º, da Constituição Federal, é de sessenta dias, prorrogável apenas uma vez por igual período. Findo o referido prazo sem que se opere a conversão, em lei, da medida provisória, este perde sua eficácia, retornando o ordenamento jurídico ao status quo imediatamente anterior à edição da MP.
 
A MP 759 sofreu, durante o período de sua vigência, 732 (setecentos e trinta e duas) emendas, até que, em 31 de maio de 2017, foi aprovada a sua redação final, pela Comissão Mista (criada no âmbito do Congresso Nacional e integrada por deputados e senadores), concluindo pelo Projeto de Lei por Conversão nº 12 de 2017, então submetido à sanção presidencial5.
 
Em que pese ter sido parcialmente vetado pelo presidente da República, o referido Projeto de Lei foi transformado em norma jurídica no dia 12 de julho de 2017, como Lei nº 13.465/2017. No que tange à questão da usucapião, introduzida no PLV durante o trâmite legislativo, a Lei nº 13.465/2017 determinou a alteração de diversos pontos do art. 216-A da Lei dos Registro Públicos, conforme se observa no seguinte quadro comparativo:


Percebe-se que a Lei nº 13.465/2017 não se limitou a esclarecer pontos lacunosos deixados pelo CPC/2015, nem a fixar simples regras procedimentais – na verdade, introduziu uma mudança profunda no instituto, que se por um lado traz expectativas por maior efetividade da via extrajudicial, por outro pode vir a suscitar dúvidas quanto à constitucionalidade da lei: se antes o silêncio do titular de direitos reais relativos ao imóvel usucapiendo era tido como discordância, pela Lei nº 13.465/2017 tal silêncio passa a ser interpretado como concordância, permitindo o prosseguimento e a concretização da usucapião em sede extrajudicial.
 
A novidade causa certa estranheza ao se considerar a hipótese prevista no novo § 13 do art. 216-A: caso não seja encontrado o notificando ou caso ele esteja em lugar incerto e não sabido, passa a ser possível sua notificação por edital. Caso o notificando não se manifeste, presumir-se-á sua concordância. Em outras palavras: é possível que o titular de direito real sobre o imóvel perca definitivamente seu direito, pela via extrajudicial, sem que sequer tenha tomado efetiva ciência do procedimento, já que a ciência gerada pela notificação editalícia é meramente presumida. Presume-se, assim, não apenas sua ciência como também sua concordância, e tais presunções bastam para a alteração do fólio real sem a necessidade de intervenção judicial.
 
Por outro lado, há de se considerar que a opção originária pela presunção de litígio no caso de omissão do titular notificado fadava o instituto a uma quase inviabilidade prática, pouco contribuindo à efetiva desjudicialização almejada pelo legislador processual6. Raros seriam os casos em que um proprietário, já inerte durante todo o transcurso do prazo de posse mansa e pacífica exigido para a usucapião, seria proativo justamente no momento de concordar em perder sua propriedade.
 
A Lei nº 13.465/2017, nesse sentido, deu novo fôlego ao instituto, aumentando suas chances de aplicabilidade. Além disso, cuidou de suprir outras lacunas que almejavam soluções práticas para a implementação extrajudicial da usucapião, notadamente nos parágrafos 11 a 15 acrescidos ao art. 216-A. Tais dispositivos deixam evidente a tentativa do legislador desjudicializar o feito da usucapião, dando ao usucapiente, em vários momentos, a oportunidade de fazer prova da sua posse justa, como por exemplo:
 
(…)
 
5o Para a elucidação de qualquer ponto de dúvida, poderão ser solicitadas ou realizadas diligências pelo oficial de registro de imóveis.
 
(…)
 
7oEm qualquer caso, é lícito ao interessado suscitar o procedimento de dúvida, nos termos desta Lei.
 
(…)
 
15. No caso de ausência ou insuficiência dos documentos de que trata o inciso IV do caput deste artigo, a posse e os demais dados necessários poderão ser comprovados em procedimento de justificação administrativa perante a serventia extrajudicial, que obedecerá, no que couber, ao disposto no § 5o do art. 381 e ao rito previsto nos arts. 382 e 383 da Lei no 13.105, de 16 março de 2015 (grifei).
 
O § 15, em especial, confere ao operador do Direito um instrumento de grande valia a fim de evitar a judicialização da usucapião – a justificação administrativa, que consiste em procedimento destinado a suprir a falta de documento ou à produção de prova de fato ou de outra circunstância que trouxe dúvida ou insegurança ao registrador imobiliário. Essa justificação se processa diretamente no registro imobiliário, entretanto, nada impede ser requerida pelo registrador uma nova constatação fática através do notário, o que seria feito mediante nova ata notarial e diligência ao imóvel usucapiendo e/ou seus confrontantes.
 
Em síntese, as principais modificações trazidas pela Lei nº 13.465/2017 foram as seguintes:
 
O silêncio dos titulares de direitos reais (maior óbice do texto anterior) agora é tido como CONCORDÂNCIA;
Usucapião em unidade autônoma em condomínio edilício dispensa o consentimento dos titulares de direitos reais, bastando a notificação do síndico, que, silente, também incorre pela concordância.
Sendo o desconhecido ou não encontrado, o registrador promoverá a notificação por edital, mediante dupla publicação, pelo prazo de 15 (quinze) dias cada um, também interpretado o silêncio do notificando como concordância.
Estando o registrador em dúvida, poderá requerer novas provas mediante justificação administrativa material (apresentação de documentos) e fática (nova constatação por ata notarial).
1 Cf. KÜMPEL, Vitor Frederico, Usucapião extrajudicial, in DEL GUÉRCIO NETO, Arthur; DEL GUÉRCIO, Lucas Barelli, O direito notarial e registral em artigos. São Paulo: YK, 2016, pp. 478-479.
 
2 Referindo-se à usucapião extrajudicial, assevera Henrique Ferraz Corrêa de Mello que “o centro gravitacional desse processo é o consensualismo, ou seja, a falta de litigiosidade (…)” (MELLO, Henrique Ferraz Corrêa de. Usucapião Extrajudicial. São Paulo: YK, 2016, p. 323)
 
3 Art. 59, inc. V, da Constituição Federal.
 
4 Art. 62, caput, da Constituição Federal.
 
5 Recorde-se que, havendo qualquer alteração no texto de uma Medida Provisória (MP), a matéria deve integrar um Projeto de Lei por Conversão (PLV). Depois de aprovado definitivamente pelo Senado ou pela Câmara, esse PLV é remetido à sanção do presidente da República.
 
6 “A usucapião não se perfaz, portanto, sem um plus, ou seja, sem uma espécie de composição amigável entre o requerente e todos aqueles eventualmente atingidos pelo reconhecimento da prescrição aquisitiva. Por isso, quem se dirige ao oficial registrador chamando pela usucapião extrajudicial já sabe, ou deve saber, de antemão, quais serão as chances de êxito nessa via, diante da necessidade de obtenção de prévio consentimento expresso de todos os interessados” (MELLO, Henrique Ferraz Corrêa de. Usucapião Extrajudicial. São Paulo: YK, 2016, p. 323).